Literatura, para alguns escritores, é um blindado que eles dirigem em alta velocidade, para outros é uma roupa de grife que exibem nos eventos sociais.
Literatura, para alguns escritores, é um fantasma invocado pra assombrar os vivos, para outros é uma tatuagem espetacular no avesso da pele.
Literatura, para alguns escritores, é um vício disruptivo que eles gostariam de abandonar, para outros é um superpoder que salva do infortúnio muitas existências.
Literatura, para alguns escritores, é uma usina automatizada sem fins lucrativos, para outros é um calendário que incendiou todas as datas comemorativas.
Vida social literária
A perdição do sonhador Dom Quixote e da sonhadora Emma Bovary foi a paixão pelos romances. Não pela arte do romance, mas pela realidade ficcional que eles veiculam. No século 20, a perdição da sonhadora Cecilia de A rosa púrpura do Cairo foi a paixão pelos filmes. Não pela arte do cinema, mas pela realidade ficcional que os filmes veiculam. Mais recentemente, a perdição do sonhador Dave Lizewski foi a paixão pelos quadrinhos de super-herói. Não pela arte dos quadrinhos, mas pela realidade ficcional que eles veiculam.
Minha situação é um pouco diferente, apesar de envolver semelhante paixão sonhadora, nefelibata… Estou relendo um livro de crônicas literárias de Affonso Romano de Sant’Anna: A sedução da palavra. Essa coletânea mexeu comigo, na época em que foi lançada — último ano do século 20 —, e está mexendo novamente. A vida literária desenhada nas breves memórias do cronista é uma realidade espetacular, um fenômeno deveras sedutor.
No final da adolescência, foram relatos desse tipo — habitados por pessoas sensíveis, inteligentes, afetuosas, fascinantes, apaixonadas, significativas — que me atraíram para a literatura. A armadilha estava sendo armada… Na casa dos trinta, eu já escrevia havia algum tempo, minha gaveta estava repleta de contos e poemas, mas eu não procurava, não encontrava nem por acidente escritores pra beber e conversar… A assombrosa vida social literária era uma realidade paralela que eu só conhecia dos livros. Então eu sentia que precisava atravessar o espelho, então eu sentia que precisava trocar minha rotina tacanha e angustiada por esse mundo mais sofisticado, por essa exuberante confraria de espíritos livres. Mas hoje eu me pergunto: fui engabelado? Ainda jovem, caí na conversa utópica dos feijões mágicos? Do espelho falso? Propaganda enganosa?!
A verdade é que, nos anos seguintes, envelheci, me tornei escritor, frequentei muitos grupos, participei de inúmeros eventos no brasil e no exterior e não encontrei o mundo literário sofisticado, exuberante, das saborosas crônicas do Affonso e de uma dúzia de outros sedutores que escreveram apaixonadamente sobre a sofisticada e exuberante vida literária no século 20. Talvez eu não tenha sido enganado. Talvez essa sofisticada e exuberante vida literária tenha realmente existido, mas entrado em extinção na virada do século. Ou talvez ela ainda exista, mas não pra mim. Não para os escritores de temperamento desconfiado, que suspeitam da própria sombra. Talvez seja a miopia. Sempre que observo a vida literária que me rodeia, meus óculos só me permitem ver uma rotina pequena, tacanha e angustiada. A situação só não é um desastre completo graças à companhia esporádica de meia dúzia de criaturas raras. De escritores talentosos que resistem a embarcar no Titanic da mesquinharia, do oportunismo e da hipocrisia estruturais. Quando converso com esses poucos, a utopia de um mundo mais sofisticado — de interlocuções sensíveis, inteligentes, afetuosas, fascinantes, apaixonadas, significativas — volta a fazer muito sentido.
Hoje eu fico imaginando se a galera jovem, que cresceu na era das redes sociais, também alimenta alguma fantasia utópica, romântica, sobre a vida literária. Me parece que não há mais espaço para a inocência quixotesca. O cinismo sufocou os sonhadores. Não conheço nenhum livro contemporâneo que desenhe a vida social literária com a mesma intensidade das crônicas do Affonso Romano de Sant’Anna e de uma dúzia de outros sedutores que escreveram apaixonadamente sobre o assunto.
Pobres aliens
Ontem eu tive mais um sonho lúcido envolvendo escritores… Estava com Cixin Liu numa cafeteria de Tubiacanga, capital de Pasárgada. Falámos um idioma bastante compreensível aos dois, não era nem chinês nem inglês nem português. Eu dizia a ele o quanto eu aprecio sua magnífica trilogia Lembrança do passado da Terra.
Nessa hora chegou Isaac Asimov, com um sorrisinho cínico: “Mas você percebeu que a premissa dessa trilogia já havia aparecido em meu conto Homo sol, certo?”. Ao acordar, corri para reler o conto do gajo.
É verdade. A premissa é a mesma.
No conto e na trilogia temos uma civilização alienígena tecnologicamente superavançada preocupadíssima com o planeta Terra. Apesar de os humanos serem tecnologicamente atrasados, nossa espécie sanguinária, aloprada, autodestrutiva, maníaca, gananciosa, por isso mesmo apresenta um desenvolvimento aceleradíssimo. Os pobres aliens logo percebem que em cem ou duzentos anos seremos capazes de dizimar todos eles facilmente.
Diferença entre autor e escritor
O famigerado Decio Pignatari lançou no programa Roda Viva uma definição que muito me intrigou. Foi em 1989. Umberto Eco fazia ainda imenso sucesso com O nome da rosa e acabara de lançar o segundo romance, O pêndulo de Foucault. No programa, Decio afirma que “Umberto Eco, semelhante a Henry Miller, é um autor, não um escritor”. E explica a diferença entre os dois: “O autor depende exclusivamente do assunto que está tratando, enquanto o escritor não depende somente do assunto que está tratando, pois ele tem uma coisa especial chamada escritura. E a escritura permanece, independentemente do tema tratado. O escritor pode até tratar de um tema batido, que muitos já trataram, porque ele oferece algo mais: a escritura. E o que é essa escritura? Um problema… ou seja, alguma coisa no modo de escrever que faz com que haja sempre uma informação nova a cada leitura. Há uma virtude na escritura, que está sempre oferecendo uma informação nova. Ao passo que o autor se esgota logo na primeira leitura”.
Tipologia
A literatura brasileira divide-se em três modalidades:
§ Literatura newtoniana
§ Literatura relativística
§ Literatura quântica
Estatisticamente, oitenta por cento dos escritores brasucas fazem literatura newtoniana.
Quinze por cento fazem literatura relativística.
Cinco por cento fazem literatura quântica.
Literatura newtoniana: prosa e poesia regidas pela causalidade clássica, cotidiana, de linguagem & assunto objetivos, realista-naturalistas.
Literatura relativística: prosa e poesia regidas pela causalidade barroca, psicológica, de linguagem & assunto subjetivos, impressionistas.
Literatura quântica: prosa & poesia regidas pelos paradoxos, pelas incertezas & ambiguidades da linguagem e do assunto insólitos.
Eu gosto de acreditar que não existe diferença de valor entre os três tipos de literatura.
Por ser mais rara, a literatura quântica não é necessariamente mais importante do que as literaturas newtoniana e relativística.
Até porque na esfera das três literaturas existem obras excelentes, medianas, medíocres e ruins.
Um obra-prima newtoniana ou relativística é tão valiosa quanto uma obra-prima quântica.
A sociedade necessita de todas as obras-primas que seus escritores conseguirem produzir.