Confirmo. Ainda não foi escrita & publicada a história secreta de Diadorim. A história em que Diadorim descobre sua verdadeira natureza incorpórea.
Confirmo também. Ainda não foi escrita & publicada a história secreta de Riobaldo, Capitu & Bentinho. A história em que esses protagonistas descobrem sua verdadeira natureza incorpórea.
Num momento de crise profunda, as contínuas paredes de texto e a incessante textura das páginas manifestaram consistência, ganharam corpo material. Então, abracadabra! Diadorim & Riobaldo, Capitu & Bentinho tiveram uma poderosa epifania. Sua verdadeira natureza puramente intelectual se revelou em detalhes. Mas essa revelação aconteceu longe dos olhos dos leitores.
Confirmo. Sob o efeito mágico do pó de pirlimpimpim, foi a feiticeira Emília, ilustríssima Marquesa de Rabicó, quem abriu as portas da percepção e a consciência de centenas de personagens para sua verdadeira natureza literária. “Não somos feitos de cabeça, tronco & membros”, a mais requisitada cortesã do Reyno das Bonekas de Pano começou dizendo, “mas de palavras, frases & períodos. Nossos átomos são diferentes, nós somos constituídos de a-bê-cê-dê-ê-efe-gê-aga-i-jota-cá-ele-eme-ene-ó-pê-quê-erre-esse-tê-u-vê-dabliu-xis-ípsilon-zê”.
Confirmo também. Os últimos a saber foram Lori Lamby e o Menino Maluquinho, que aceitaram com tranquilidade. Os dois já desconfiavam… Ceci & Peri também.
Macunaíma & Macabéa tiveram uma crise de ansiedade, mas durou pouco. Mandrake e o Capitão Rodrigo, para desespero geral, tiveram um violento ataque de pânico e precisaram ser contidos & medicados.
No mundo da literatura, autoconsciência é coisa muita séria, é coisa muito rara. Zunzunzum zás-trás! A feiticeira Emília, ilustríssima Marquesa de Rabicó, continua divulgando a verdade libertadora, enquanto no céu artificial da metrópole verbal um signo malicioso resplandece.
Um bat-sinal. Um portal para a real realidade:
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Nossos Lúciferes
Nessa época, quase todos o insultam. Os poucos que não o insultam preferem, entre bocejos, o caminho da indiferença.
Eu continuo assistindo a tudo sem me manifestar publicamente. Sou o fantasma dos natais futuros.
Paris, 29 de novembro de 1947, estúdio da Radiodiffusion Française.
No final de um longo depoimento cheio de estática & gemidos, repleto de amor & fúria, o homem elétrico se transforma em pedra.
Um mineral de composição desconhecida, impenetrável, em voto de silêncio absoluto.
No final da transmissão radiofônica Para acabar com o juízo de Deus — zás —, o homem elétrico Antonin Artaud se transforma numa enorme rocha de formato oval: um misantropo menir.
Um mineral quase alienígena, plantado numa planície verdejante, avesso a qualquer contato humano.
Separados por um intervalo invencível, outros menires de idêntica natureza ocupam essa planície verdejante:
Van Gogh
Lima Barreto
Virginia Woolf
Arthur Bispo do Rosário
Maura Lopes Cançado
Stela do Patrocinio
Estamira
Geólogos altamente capacitados tentam perfurar esses menires, querem levar amostras para os laboratórios, mas as brocas de diamante se desfazem ao menor contato.
Terapeutas das mais variadas tradições tentam se comunicar com os silenciosos habitantes da planície verdejante, mas tudo o que conseguem obter é o silêncio das profundezas cósmicas.
Nos feriados e nos finais de semana, crianças correm & brincam na planície. Quando encostam a palma da mão na superfície dos menires, as pedras começam a pulsar afetuosamente.
Esse leve tremor é um sorriso mineral? Uma risadinha?
A vida que se esconde nas rochas impenetráveis ainda reconhece a vida que se manifesta nessas pequenas criaturas saltitantes movidas a leite, sol & vento.
Logo a pulsação da pedra evolui para uma vibração arfante que comunica qualquer coisa de muito verdadeiro.
Uma sensação cristalina de gratidão.
Um encorpado prazer incorpóreo, sem tempo nem espaço.
Uma felicidade clandestina.
Aproveitem bastante, meus amores, meus pequenos mamíferos, na puberdade todos vocês perderão a habilidade natural, espontânea, de interagir com as pessoas-menires, meio mortas meio vivas.
Eu continuo assistindo a tudo sem me manifestar publicamente. Sou o fantasma dos natais futuros.
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Um tempero variável?
Graças à Biblioteca de São Paulo, finalmente estou lendo a espetacular antologia organizada pela incansável Eliane Robert Moraes, Antologia da poesia erótica brasileira. Nessa obra há um pouco de tudo: pornografia, irreverência, paródia, sátira, escracho… menos erotismo. A prazerosa leitura dessa antologia está confirmando o que eu sempre suspeitei: o erotismo jamais ocorre na literatura. É fácil encontrá-lo na pintura, na fotografia, no cinema, nas séries, nos quadrinhos, no teatro ou na dança. Sem o sentido da visão e-ou da audição, o erotismo vira outra coisa: pornografia e-ou irreverência, paródia, sátira, escracho etecetera e tal. (Bom… Não dizem que o erotismo está mais na mente do receptor que no corpo da mensagem? Talvez isso signifique que a presença ou a ausência do erotismo na literatura é um tempero deveras variável de leitor pra leitor.)
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Cartão vermelho
Leminski morreu aos quarenta e quatro do primeiro tempo
Lima Barreto morreu aos quarenta e um
Kafka aos quarenta
Poe aos quarenta
Lorca morreu aos trinta e oito
Florbela Espanca morreu aos trinta e seis
Byron aos trinta e seis
Maiakovski aos trinta e seis
Ana Cristina Cesar morreu aos trinta e um
Augusto dos Anjos morreu aos trinta
Emily Brontë aos trinta
Sylvia Plath aos trinta
Torquato morreu aos vinte e oito
Keats morreu aos vinte e cinco
A literatura dessa galera não teve a oportunidade de estacionar na vaga de idoso