Poesia e imobilidade

A leitura dos poemas de Paul Bowles desperta espanto e sentimento nobre da ignorância
Ilustração: Bruno Schier
26/07/2016

Puro espanto, misturado ao sentimento nobre da ignorância: eis o que desperta em mim a leitura dos Poemas, de Paul Bowles, selecionados e traduzidos por José Agostinho Baptista para a editora portuguesa Assírio & Alvim. Ao ler Bowles, torno-me um aventureiro: não sei para onde vou, não sei o que busco, nada sei a meu respeito. Atordoado, tropeço em um dos poemas: Viagem ao Egito. Também eu, há quase vinte anos, estive no Egito, país que, naquela época, me pareceu absolutamente incompreensível. O que dizer do Egito de hoje? O que dizer do Egito de 1929, quando Bowles escreveu seu poema?

Persigo seus versos, guiado pela pura emoção, pelo puro instinto — tento seguir os conselhos de Manoel de Barros, quando ele escreve: “Nosso conhecimento não era de estudar em livros./ Era de pegar, de apalpar, de ouvir e de outros sentidos./ Seria um saber primordial?”. Os versos de Manoel estão em Menino do mato, livro de 2010. Pois é justamente essa leitura primitiva que ele propõe, feita de maneira um tanto irracional, que os poemas de Bowles nos pedem. Exigem, para ser mais exato. Poesia construída, antes de tudo, apesar de imagens cruas, por súbitos clarões. Por ilusões. Pura miragem — ao ler, atravessamos um deserto.

Não há outra maneira de ler os poemas de Paul Bowles senão aferrar-se às palavras como se elas fossem paisagens, ou objetos largados sobre uma mesa, à nossa espera, à nossa disposição. Acreditar nos impulsos que as palavras detonam. Aceitar os cenários turvos, mas sedutores, que elas descortinam. Começa Bowles: “Fazer o que quisermos,/ fazer o que é preciso;/ assim falam os egípcios”. Aceitar o que o instinto nos pede, seguir nosso caminho, sugerem os egípcios de Bowles, sem nos preocupar com as causas, os efeitos, as consequências de nossos atos. Ler livremente. Mas, a rigor, quem alcança de fato tal liberdade?

Seguir nosso desejo, enfim. E de que outra coisa, senão do desejo, é feita a poesia? Sem ele, o desejo, a escrita se torna mera missão automática, se transforma em uma simples transcrição de raciocínios e de argumentos. Não devemos nos preocupar com aquilo que não nos compete: “E se a esfera roda sozinha/ não é por ordem sua”, Bowles alerta. Aceitar o que é, mesmo que seja incompreensível. Aceitar que a paisagem está sempre cortada por tiras escuras, que a embotam e encobrem. Diz o poeta: “E incessantemente os raios negros/ desciam do sol,/ os raios finos e negros”. Não há como nos desviar. É preciso suportá-los e viver a partir disso. Raios negros, Bowles poeta nos ensina, também desenham a existência. Servem para realçar a luminosidade da vida. Por contraste, vivemos.

“Não me incomodei, suplico-vos, Monsenhor/ No Egito fazemos o que queremos”. Aprender a ser o que se é, e partir disso construir a poesia e a vida também. Aceitar certa imobilidade enervante que caracteriza o humano — como em algumas páginas antes, em um poema simplesmente batizado Poema, do mesmo ano de 1929, Paul Bowles nos adverte. A imobilidade fala, outra vez, da aceitação da ignorância. Daquilo que não se pode penetrar — que não se deve penetrar, ainda que isso fosse possível. Espécie de imensa parede que nos detém e nos desenha. O céu que nos protege — de que Bowles nos fala em seu célebre romance.

“As coisas permanecerão assim para/ Sempre. Nada/ se despedaçará.” É preciso acostumar-se, e partir do que se tem para, enfim, escrever. Para enfim ser. “Nada/ Escapará e nenhum/ Corpo destruirá as ideias e nenhum/ Ser será destruído”. Afastando-me momentaneamente dos poemas, entrego-me aqui, um pouco, à divagação. Na edição de maio da revista Continente, do Recife, leio uma entrevista do artista pernambucano Francisco Brennand que me ajuda a pensar. Depois de visitar o ateliê de Nise da Silveira, no Centro Psiquiátrico Pedro II, no Engenho de Dentro, Rio, lugar sagrado em que arte e existência se devoram, Brennand reconhece: “Tudo aquilo em que eu acreditava como indispensável à formação de um artista não representava absolutamente nada diante dos insondáveis mistérios do inconsciente”. A arte (a poesia) vem de outro lugar. Podemos acumular saber, devorar livros, escalar teorias. Podemos projetar, prever, arquitetar, dominar. Na hora da poesia, nada disso nos serve. Nada mesmo.

As formações do inconsciente se caracterizam justamente pela ausência de forma. O inconsciente não sincroniza com nosso tempo lógico — há uma imobilidade que o constitui. Tudo isso não só deve ser incorporado quando nos defrontamos com a arte (Brennand), mas também quando fazemos arte (poesia). Continua Bowles em seu poema: “Tudo continuará assim para sempre. Nenhuma/ Coisa se transformará nem se moverá”. É diante dessa inércia que caracteriza o real, que o define, que o poeta trabalha. É diante dela que Paul Bowles escreve seus versos. Poemas de puro espanto — susto não só do poeta, mas também de seu leitor. Sentimento atroz que os liga talvez para sempre.

Versos que pedem leitores dispostos apenas a ver — ou, como nos diz Manoel de Barros, a “desver”. Isto é: a ver a mesma coisa como se fosse outra. Ainda é a coisa que está ali. Ainda é ela que permanece imóvel a nos desafiar com sua presença inevitável. Aos leitores de poesia, resta deixar-se invadir pela força bruta das imagens. Por seu poder devastador. Por sua força de convicção. Só assim não decoramos o poema com nossos pensamentos e com nossos preconceitos. Só assim estamos, de fato, diante da poesia. Não há outra maneira de ler, ao não ser permitir que a palavra nos invada e nos dobre, que ela nos submeta. Aceitar essa submissão — eis a leitura plena.

Grandes poetas — Paul Bowles — têm o poder de fundar mundos inexistentes. Têm o poder de nos arrastar para perspectivas e mirantes onde nunca pisamos. Em nosso mundo banal, cheio de arrogância e de futilidade, dominado por pequenos poderes devastadores, a poesia surge para perfurar o insuportável. Ela nos coloca diante da claridade do real. Uma cortina despenca. Uma janela se abre abruptamente. A luz devassa nossos olhos. É o real que se apresenta, enfim, diante de nós.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

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