Poemas de Maria Amélia Dalvi

Leia os poemas "Beira-mar", "Penedo", "Pátria", e "Quando eu for cachorro" de Maria Amélia Dalvi
Maria Amélia Dalvi, autora de “No cangote do Saci: lendas do Brasil”
27/05/2019

Beira-mar

É uma avenida que divide
de um lado navio, de outro palácio
a senha deste coração que nunca
sabe se reina soberano ou flutua.
Vitória é uma cidade-ironia —
celebra no nome derrota que a forja.
Assim sou eu, Maria: mundo-esfera.
Erra desgraçadamente, se acerta.

…..

Penedo

para Damião e Ruan
esses dois, assassinados

Eu me sinto assim, um sujeito
feito do bruto, de beleza e altura;
um sujeito sem data, tão fundo
banhado num mar escuro.
(Meu nome inteiro é Penedo.)

Essas águas geladas, estranhas,
dão passagem aos navios —
vejo que pescam, há murmúrio,
e há os que vão sempre de luto.
(Sim, sou grande, com medo.)

As mães. Elas choram meninos,
ouço daqui do alto estampidos:
esperança sequer na Piedade;
ser pedra e saber: meu castigo.
(Daremos degredo à realidade?)

…..

Pátria

pindorama,
aqui, tudo segue
ao contrário

(eu aguardo
meu retorno
aos ovários).

perdi o bonde
ou essa praga
pregressa

— achaque —

estuporou
e justiça
nunca chega:

essa chaga
não fecha?

…..

Quando eu for cachorro

Quando eu for cachorro
vou dormir com meu corpo
entre suas pernas.
Cabeça, tronco, orelhas
encaixados nas suas curvas
— cada breve respiração muda
como se fosse eterna.

Porei todo o meu medo à prova
quando você trancar a porta
saindo de casa, o olhar incerto.
Eu me entreterei com brinquedos:
comida, cochilos, bocejos, coceira
— farei com que acredite:
maior desejo é que você regresse
(mesmo se for mentira).

Entenderei sem ficar magoada
as interrupções de nossas conversas;
esperarei sem me exasperar
(curtindo sua dedicação
eternamente furtiva):
fecharmos uma pauta completa.

Roerei um pouco, de leve,
suas coisas favoritas —
que é pra eu apor minhas marcas em tudo,
lembrando que o amor,
mesmo denso, é breve.

Havendo dias de chuva
tremerei de preguiça
com você entre cobertas;
pedirei que não levante,
esteja sempre à mão, à vista:
e apenas me ame.

Trarei meus trágicos
olhos de compreensão
à maneira de uma oferta,
nas vezes em que você estiver
às raias do desespero;
então morderei seu braço
com impiedoso carinho
e direi, em silêncio,
que prefiro o mundo
com você bem perto.

 

Maria Amélia Dalvi

É capixaba, tem 35 anos, trabalha como professora universitária e pesquisadora. Em 2018 estreou na literatura com o livro infantojuvenil No cangote do Saci: lendas do Brasil, em coautoria com o ilustrador Daniel Kondo. Este ano estreia na poesia com o livro Poema algum basta.

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