Gonçalo M. Tavares

Autor utiliza o humor e a ironia com rigorosa habilidade e disciplina
Gonçalo M. Tavares, autor de “Atlas do corpo e da imaginação: teoria, fragmentos e imagens”
01/05/2007

Gonçalo M. Tavares nasceu em Angola em 1970, ganhou o Prêmio Revelação de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores em 1999, pelo volume Investigações. Novalis, e publicou seu primeiro livro em 2001, intitulado Livro da dança. No ano seguinte Gonçalo publicou mais três obras: O senhor Valéry, O homem ou é tonto ou é mulher e A colher de Samuel Beckett. Novos prêmios vieram. Muitos novos livros vieram, quase todos escritos antes de sua estréia e só agora publicados. Para certa parcela da crítica Gonçalo M. Tavares é um dos escritores mais originais da literatura portuguesa contemporânea. Há também quem afirme o contrário: que Gonçalo não é sequer um escritor. Pesquisando na internet, encontrei blogueiros insatisfeitos que dizem que ele é, na melhor das hipóteses, apenas um bom blogueiro. Que ele escreve posts, não poemas, contos, romances ou dramas. De fato, Gonçalo não é sinônimo de consenso. Seus poemas às vezes são prosa, sua prosa às vezes são poemas. Seus contos e seus romances às vezes são ensaios, seus ensaios às vezes são pequenas ficções para as crianças, histórias que às vezes funcionam muito bem no palco. Poesia, prosa, ensaio, teatro: tudo vem de seus inúmeros cadernos, nos quais a matriz dessa literatura sublime e divertida é primeiramente registrada. O humor e a ironia são ferramentas que Gonçalo usa com rigorosa habilidade e disciplina. Certa vez, falando sobre isso, eu perguntei a ele:

O modo mais eficiente de se defender do mau gosto e da banalidade reinantes é mesmo ridicularizando os alicerces da sociedade de consumo?

Ele respondeu: Sim, por vezes julgo que a melhor maneira de destruir não é avançar com violência. Pelo contrário, a ironia é um método, digamos, pacífico, tranqüilo, que não se exalta, mas é extremamente corrosivo. O humor é também perturbador. Ridicularizar um determinado poder despótico pode ser mais eficaz do que combatê-lo com soldados e armas. De qualquer maneira, a ironia permite e parte de um afastamento em relação aos acontecimentos, e julgo que esse afastamento é necessário para se ver melhor o que está acontecendo. Perto demais ficamos cegos e a banalidade toma conta de nós. Recuar uns passos me parece pois um bom método.

Eu: O questionamento filosófico também é bastante freqüente nos teus poemas. O rigor reflexivo da filosofia ainda está em condições de pôr em xeque as arraigadas crenças do avassalador senso comum?

Ele: Pensar é ainda um dos atos de resistência do ser humano. Não concebo qualquer ato humano sem o pensamento, mas é evidente que este pode se expressar de muitas formas. Na antiguidade clássica, a filosofia e a poesia estiveram juntas, eram a mesma coisa, mais tarde se separaram. Juntar as duas de novo é voltar às raízes, não é ser vanguardista.

Eu: O cotidiano sem brilho e as figuras pequenas da metrópole estão muito presentes em teus poemas. A poesia ainda é a melhor maneira de conferir beleza e dignidade a esse cotidiano e a essa gente?

Ele: A vida é dura. A vida não é fácil. Mas não vejo a literatura apenas como a forma de escape da vida. Penso que a literatura deve encantar — criar mundos autônomos que permitam respirar outro ar — e tento fazer isso, falando agora de prosa, com os meus senhores do bairro: o senhor Valéry, o senhor Brecht etc. Mas ao mesmo tempo a literatura é, e deve ser sempre, um espaço de desencanto, de apontar o dedo ao que não está bem no mundo real. Por vezes a poesia não deve mostrar apenas a beleza, por vezes ela deve mesmo mostrar a feiúra que existe por aí. Julgo que a poesia que só mostra a beleza é uma poesia que mente, pois o mundo é isso, mas não é só isso.

Livros do poeta
No Brasil: O senhor Calvino, O senhor Kraus, O senhor Juarroz, O senhor Brecht, O homem ou é tonto ou é mulher — todos publicados pela Casa da Palavra; Jerusalém (Companhia das Letras); 1 (Bertrand Brasil). Em Portugal: A máquina de Joseph Walser (Caminho); Investigações. Novalis (Difel); Livro de dança (Assírio & Alvim), entre outros.

Poemas de Gonçalo M. Tavares

O livro

De manhã, quando passei em frente à loja
o cão ladrou
e só não me atacou com raiva porque a corrente de aço
o impediu.
No fim da tarde,
depois de ler poemas em voz baixa numa cadeira preguiçosa do jardim
regressei pelo mesmo caminho
e o cão não ladrou mais porque estava morto,
e as moscas e o ar já haviam percebido
a diferença entre um cadáver e o sono.
Ensinam-me a piedade e a compaixão
mas o que posso fazer se tenho um corpo?
A minha primeira vontade foi a de lhe pregar
um pontapé, nele e nas moscas, e gritar:
Venci-te.
Continuei o caminho,
o livro de poesia debaixo do braço.
Só mais tarde pensei, ao entrar em casa:
não deve ser nada bom ter ainda a corrente
de aço ao redor do pescoço
depois de morto.
E ao sentir a minha memória lembrar-se do coração,
esbocei um sorriso, satisfeito.
Essa alegria foi momentânea,
olhei à volta:
tinha perdido o livro de poesia.

As panelas

— Não é só Deus que se encontra entre as panelas,
também a sujidade faz aí seu ninho.
São palavras irônicas, de racionalista,
que até posso ser eu em certos dias.
Porém hoje chove: não pára de chover.
Receio voltar a casa e não encontrar
o que lá deixei .
Mexo nos livros, os livros sempre.

Apesar desse medo decido voltar.
É uma hipótese como as outras.
Não pára de chover.
Atravesso correndo as ruas
e tropeço: caio na calçada.
Levanto, chego a casa.
A minha mulher diz-me:
— Estás sujo.
Eu respondo:
— De Deus.

Os velhos

Dois amigos aproximam o rosto
para aproximarem os corações.
São dois velhos: trocam confidências.
Com muitas pessoas à volta reparo:
ninguém aproxima o ouvido da conversa,
não há curiosidade.
Penso: se fossem dois jovens a aproximarem o rosto
veria nos outros a mesma indiferença?
A vida é importante enquanto se é forte,
depois o necessário é suportar,
a cada início do ano sentir a alegria
de comprar a agenda certa.

O adultério

A mulher hesita entre o adultério e uma conversa.
Percebo: na mesa fala baixo e sorri muito
para um homem que não é o seu marido.
Mas ainda há tempo. Por enquanto nada foi feito.
Os pensamentos felizmente são reversíveis.
A mulher ao sair do café
poderá ser atropelada: um embate violento, vamos supor.
Poderá, então, quem sabe, permanecer seis meses no hospital,
com o marido ao seu lado, e as revistas;
todos os dias no horário permitido.
E, se tal acontecer, essa mulher não será adúltera.
O homem que não é o seu marido tem um terno escuro,
uma gravata cinzenta atravessada por uma sutil linha branca.
Está contente consigo próprio, é evidente, e com a gravata.
Vejo-os sair do café. Despedem-se. Faço uma pausa,
suspendo os meus projetos e observo-a a
atravessar a rua para o outro lado.
Um carro passa a grande velocidade
mas ela já se encontra no passeio, protegida.
Do outro lado diz adeus com um movimento excitado.
Ela desaparece por um lado, ele pelo outro.
Encontrar-se-ão de novo: isso é certo. Em outro dia.
Num lugar menos óbvio.
De regresso a mim mesmo penso no que é o destino,
e no que é o tempo,
e sei, tenho a certeza clara: aquela mulher vai sofrer.

A notícia

Porém a técnica entrou demasiado na existência,
não deixou atrás a luz branca.
Os cientistas que estudam a origem das coisas
utilizam instrumentos,
coisas que não existiram na origem. Quem
eles querem enganar?
Loucos cheios de termos confusos
e muita pressa. Numa frase
explicam dois milênios.
Começa a chover.
A cidade é variada: um homem peregrina sentado,
escrevendo.
Quatro homens jogam cartas;
uma mulher profunda, civilizada, esvazia uma garrafa
de vinho. Porque está só.
E o curto intervalo na guerra permite finalmente
o beijo longo.
Dois namorados falam de Dante,
do outro lado uma bomba explode.

Registro de um momento

Sobre cidadãos empolgados
a infância exerce ainda a sua força.
Não se trata de um museu individual,
a memória é algo mais:
depende do modo como os outros batem
no piano desafinado
fingindo ser música o que é afinal
um ataque noturno.
Vejamos, ninguém brinda
ao lado dos excrementos do touro,
o lugar para certa exuberância é guardado
pelo pudor, de um lado,
e do outro pelo desejo de beleza.
Nada é belo por completo: para lá da tua alegria
há o início de outra coisa:
o cabelo de uma velha cai muito,
e invocam o nome de uma doença como quem
repete a palavra diabo.
No céu (tranqüilo), entretanto, olha-se para outro lado
(ou não há olhos).
Outro corpo, de físico abundante, tropeça e
é ajudado pelos que não caíram.
Descrevo o que seria se, excitado,
me levantasse da cadeira para ajudar quem caiu,
mas permaneço sentado.

Explicações científicas

Explicam cientificamente as decisões de um planeta,
porém não há laboratório capaz de estudar
a razão por que o homem se levanta
da cadeira quinze minutos depois
de ter bebido café.
Descuidou-se a biblioteca: esqueceu acontecimentos mínimos.
Só há livros sobre reis e invasões, enormes discursos,
nem uma única página sobre as palavras
bom-dia, da peixeira ao jovem comprador.
Ninguém conhece um fato por dentro, ou uma ação,
como se conhece uma coisa.
Quem vem do nascimento vai para a morte,
são como dois lugares fixos,
cuja distância entre eles depende do acaso, quase sempre,
raramente da decisão do homem triste
que se suicida.

A força

Nunca vi anjos nem aprendi orações
como aprendi versos, mas desde cedo
certa conspiração calma recolhida na parte
de trás da existência me foi dando
conselhos monocórdios, pontuais.
Uma força constante que
afastada dos dias e do seu ruído próprio
me acompanhou. Nada de religioso, nenhum Deus,
nenhum temor, nenhuma adoração,
chamemos à coisa: disciplina. E assim está bem.
O mundo avança e acontecem coisas,
E o meu corpo recolhe-se e faz o que tem de fazer.

 

Valério Oliveira

É escritor e poeta. Autor, entre outros, de Todos os presidentes.

Rascunho