Carta aberta a Benjamin Moser

Segundo os autores desta carta, o Prêmio Pulitzer de Biografia para o escritor norte-americano é uma farsa
Benjamin Moser, ganhador do Pulitzer pela biografia de Susan Sontag
20/05/2020

Nádia Gotlib
Lisa Paddock
Carl Rollyson
Magdalena Edwards

Tradução: Leandro Salgueirinho

13 de maio de 2020

Por duas razões distintas, mas intimamente relacionadas, ficamos estarrecidos ao saber que Benjamin Moser havia ganhado o Prêmio Pulitzer de Biografia por seu livro Sontag: her life and work (Ecco) [Sontag: vida e obra, Companhia das Letras, 2019]. Primeiramente, como muitos críticos apontaram, o que Moser apresentou como a descoberta principal de sua biografia — que Susan Sontag teria sido a autora exclusiva do livro Freud: the nind of the moralist (1959), assinado pelo sociólogo Philip Rieff — é, na melhor das hipóteses, uma má compreensão da noção de autoria e, na pior delas, uma distorção calculada dos fatos no intuito de angariar publicidade.

Janet Malcolm, em sua resenha para a The New Yorker, escreve: “[Moser] solta essa bomba: afirma que Rieff não escreveu o seu grande livro — Sontag o fez. De forma alguma Moser comprova sua afirmação”. Com o humor característico, Malcolm segue:

Pelo viés de Moser, todo escritor que foi muito editado não pode mais reivindicar ser o autor de sua obra. “Traga-me reescrito!”, late o editor ao telefone da redação, em comédias dos anos trinta sobre o mundo dos jornais. No mundo de Moser, reescrever vira escrever.

Na Salmagundi Magazine, David Mikics descreve o truque empregado por Moser da seguinte forma: “[Ele] insiste, repetidamente, que Sontag foi a única autora de The mind of the moralist. Ao citar o livro, ele diz ‘Susan descreveu’ ou ‘Susan observou’, jamais dando qualquer crédito a Rieff. Na verdade, Moser rouba o livro de seu autor real”.A distorção efetuada por Moser não deve ser interpretada como uma tentativa justa, senão abertamente zelosa, de restituir os direitos autorais a uma mulher. Muito pelo contrário, Moser tem usado repetidamente o seu próprio papel como editor e “reescritor” para roubar de mulheres o crédito por seus trabalhos.

Em um ensaio publicado em 16 de agosto de 2019 na Los Angeles Review of Books, Magdalena Edwards descreve sua problemática experiência trabalhando com Moser, que deveria atuar como o editor de sua tradução [para o inglês] do romance de Clarice Lispector O lustre [The chandelier, New Directions, 2019]. Moser tentou fazer com que Edwards fosse demitida com o argumento de que “ele teria que reescrever todas as linhas” da tradução, assumindo então o processo de revisão e recebendo, ao fim, crédito como cotradutor do romance. O ensaio detalha um padrão de comportamento por parte de Moser, incluindo o modo como ele se apodera das ideias de outros tradutores e biógrafos de Clarice.

A apropriação mais evidente de Moser beira o plágio. Como os pesquisadores brasileiros demonstraram, sua biografia de Clarice Lispector publicada em 2009, Why this world [Clarice, uma biografia, Companhia das Letras, 2017], reproduz a estrutura do livro Clarice, uma vida que se conta (Ática, 1995), de Nádia Gotlib, a primeira biografia de Clarice publicada no Brasil, além de copiar vários insights críticos da autora.

“Quantos exemplos documentados de vexatória conduta acadêmica e tentativas de plágio são necessários para o Conselho do Prêmio Pulitzer tomar conhecimento e interromper sua ação?”

No caso de Sontag: her life and work, Moser cometeu outra grave ofensa a seus antecessores. Em junho de 2019, Carl Rollyson e Lisa Paddock, coautores de Susan Sontag: the making of an icon (W.W. Norton, 2000; edição revista e atualizada, University Press of Mississippi, 2016), escreveram uma carta para a Ecco, editora de Moser, solicitando a retirada de comentários sobre episódios que não ocorreram e que caluniavam Rollyson e Paddock. As escandalosas passagens foram, afinal, retiradas anteriormente à publicação oficial da biografia pela Ecco, em setembro de 2019, mas então já tinham circulado em forma de provas tipográficas. O estrago estava feito.

Benjamin moser_bio_Susan_Sontag

Outras considerações
Quantos exemplos documentados de vexatória conduta acadêmica e tentativas de plágio são necessários para o Conselho do Prêmio Pulitzer tomar conhecimento e interromper sua ação? Seria de esperar que as preocupações expressas por uma série de escritores publicados em uma série de publicações de prestígio levantassem a questão sobre se a biografia de Susan Sontag escrita por Moser incorpora a excelência que o Prêmio Pulitzer pressupõe.

Mas a falta de escrúpulos acadêmicos é apenas uma parte do problema. O assédio moral de Moser a mulheres tradutoras e biógrafas não se limita ao papel. Em agosto de 2019, a tradutora e estudiosa Susan Bernofsky compartilhou suas experiências no Twitter: “Eu mesma já fui intimidada por [Moser]: fisicamente retida por um aperto de mão abrupto e verbalmente ameaçada. Ele é ao menos 30 centímetros mais alto do que eu. Pareceu violento, e claramente quis mostrar isso”. E, em maio de 2020, depois que o Pulitzer para Moser foi anunciado, Bernofsky expressou as suas profundas preocupações em uma postagem pública no Facebook:

É desanimador ver um grande prêmio (especificamente a recém-anunciada biografia Pulitzer) ir para um valentão que me agrediu e ameaçou fisicamente, além de ter dado vazão a sua misoginia sobre mulheres mais jovens, que eu conheço, porque isso significa que agora tal pessoa terá ainda mais poder no mundo literário, será solicitada a participar de júris de prêmios e bolsas etc., contribuindo tanto mais para o, infelizmente, ainda bastante alto quociente de masculinidade tóxica no mercado literário. Ele plagia até mesmo as mulheres! Provoquei sua ira ao defender uma mulher cujas realizações profissionais ele tentava eclipsar (excluindo-a inteiramente de uma série de três eventos públicos para um livro importante — posteriormente vencedor do Prêmio Nacional de Tradução — que ela traduziu).

O Prêmio Pulitzer não só concede a Moser um enorme prestígio, um prêmio em dinheiro de 15 mil dólares e a promessa de adiantamentos maiores para futuros contratos de livros, como também lhe proporciona maior poder sobre colegas mais jovens e menos estabelecidos. Dada a conduta pregressa de Moser, aqueles que se manifestaram têm motivos para ficar apreensivos. Estamos em risco, principalmente porque nossos próprios editores, agentes e colegas com frequência nos aconselharam a manter silêncio.

Devemos proteger o tecido social e ético de nossa comunidade. Precisamos cobrar de nossas instituições quando elas nos desapontam. Mas isso é sobre muito mais que um prêmio literário. Trata-se de duas escritoras brilhantes, Clarice Lispector e Susan Sontag, cujo legado está agora nas mãos de um homem com um péssimo histórico de roubo e intimidação a colegas do sexo feminino.

Qual atitude Sontag e Lispector poderiam esperar do Conselho do Prêmio Pulitzer? Acreditamos saber a resposta, mesmo que seja difícil ouvi-la.

*** Carta também publicada na Los Angeles Review of Book. 

OS AUTORES

Carl Rollyson
Coautor de Susan Sontag: the making of an icon (W.W. Norton, 2000; edição revista e atualizada, University Press of Mississippi, 2016).

Lisa Paddock
Coautora de Susan Sontag: the making of an icon (W.W. Norton, 2000; edição revista e atualizada, University Press of Mississippi, 2016).

Magdalena Edwards
Cotradutora de The chandelier (New Directions, 2018), de Clarice Lispector, e pesquisadora visitante do Instituto Latino-Americano da UCLA.

Nádia Gotlib
Autora de Clarice, uma vida que se conta (Ática, 1995; 7a edição revista e atualizada, Editora USP, 2013).

 

Magdalena Edwards

É escritora, tradutora e atriz. Nasceu em Santiago, no Chile, e mora atualmente em Los Angeles, na Califórnia. Graduou-se em Harvard com uma tese sobre o poeta chileno Raúl Zurita e é doutora em Literatura Comparada pela UCLA, onde escreveu sua tese sobre Elizabeth Bishop.

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