Instruções urgentes para sobreviver aos tempos de guerra (3)

Na guerra de então, como na de hoje, não há arma mais potente que o arejamento
Ilustração: Rafael Cairo
30/12/2019

Como sabem os leitores do Rascunho, estou tentando traduzir um folheto intitulado How to keep well in Wartime, de 1943, distribuído pelo Ministério da Informação da Inglaterra durante a Segunda Guerra Mundial. O objetivo do folheto era fazer com que a população, sofrendo com os bombardeios nazistas e todo tipo de racionamento, ainda assim conservasse o espírito firme e o corpo disposto às batalhas diárias que tinham pela frente. Nas duas colunas anteriores, traduzi os dois primeiros capítulos do folheto; dedico-me nesta ao terceiro, cujo título é Get You Share of Air and Sunshine [Aproveite o ar e a luz do sol].

Dr. Clegg, o médico pneumologista autor do folheto, inicia o capítulo referindo os transtornos trazidos pela necessidade de impedir que as luzes fossem avistadas do lado de fora dos edifícios, a fim de evitar a localização dos alvos pelos inimigos: “O blecaute torna menos fácil conservar os cômodos bem ventilados. Mas há um ou dois pontos óbvios que nem sempre lembramos. O primeiro é que, desde que não haja um vento forte, não é necessário fechar as janelas ao cerrar as cortinas durante o blecaute. Isso depende de como as cortinas estão colocadas. Você pode se certificar do quanto as correntes de ar atrapalham o escuro saindo e olhando de fora para as suas janelas. Se a sua cortina preenche apenas o espaço exato da janela, será preciso usar um dos vários dispositivos que podem dar boa ventilação e, ao mesmo tempo, garantir o blecaute, baseados no fato de que o ar pode contornar os cantos, mas a luz, não”. De qualquer maneira, ainda mais “se você mora numa quitinete”, é importante que “areje o cômodo até que ele esteja livre de qualquer tipo de fumaça antes de você se deitar”.

Em seguida, Dr. Clegg explica “por que a ventilação é importante”: “Você precisa prestar muita atenção à ventilação. Não há dúvida de que nos sentimos melhor — e é melhor — se os cômodos onde trabalhamos, comemos e dormimos estão bem ventilados. Dores de cabeça, moleza, falta de apetite podem todas resultar de um cômodo abafado, especialmente quando a secura é gerada por um aquecedor. É ainda mais importante que o ar esteja ventilado do que fresco.

Lembre-se de que você mesmo é um forno, continuamente abastecido por alimentos. Na combustão deles pelo corpo por exemplo, pelos músculos quando você faz atividade física , é liberado calor. Você é um animal de sangue quente e o seu corpo se conserva numa temperatura acima da do ar ao redor. A temperatura normal, como se sabe, é 36,8° C, quando tomada embaixo da língua (já a do fígado fica em torno de 37,7° C). Assim, uma média confortável interna aos ambientes de lojas, escritórios ou salas de estar ficaria em torno de 15,5°-18,3° C.

Bem, para que os leitores brasileiros não desacreditem do Dr. Clegg, lembro que o homem é britânico e que a temperatura média de Londres, hoje em dia (que é bem superior à média da dos anos 40) é de 23° no alto verão, atingindo a média de 4° a 5° no inverno. Assim, o conforto que ele garante aos cidadãos britânicos entre 15 e 18 graus não é despropositado para eles. Já para nós, habitantes dos trópicos, adaptemos a recomendação para 20-25° C. Anotem a sequência da explicação: “Sendo o seu corpo mais quente do que o ar ao redor, você sempre perderá calor, assim como água quente junto com água fria se torna menos quente. Já a água fria naturalmente se tornará mais quente”.

Dr. Clegg insiste também que “ar parado significa lugar abafado: Se você não perdesse o calor produzido pelo corpo você morreria de insolação; iria simplesmente ferver. O principal meio de perder calor é a evaporação da água da pele e dos pulmões. Quando você está muito quente, perde tanta água que se formam gotas visíveis na sua pele — o suor. Se o ar está muito úmido, não há como receber a umidade do seu corpo. E se está parado, da mesma forma, não conseguirá dissipar o calor que você está exalando. Com o ar úmido, a sua temperatura tenderá a subir e você se sentirá quente, abafado e desconfortável. Então mantenha o fluxo de ar. Se o trabalho na fábrica ou na fundição demandar uma temperatura mais alta que 18,3° C, você precisará mais do que nunca de ar fresco, quando não estiver trabalhando”. Claro, 18° não são a temperatura ideal para travarmos a nossa guerra tropical. Como disse antes, vamos adaptá-la para 20-25 graus. O que importa reter é: “Nas salas de estar de casa, mantenha a ventilação e a temperatura num nível moderado; cômodos superaquecidos são desaconselháveis tanto do ponto de vista da saúde como da economia de combustível”.

O tópico seguinte diz respeito a “Banhos de sol e ar: Você é sortudo se pode passar suas breves férias anuais numa explosão de sol. Mas sendo férias ou não, aproveite toda oportunidade que tiver para arejar a sua pele. O ‘banho’ de ar é tão importante como o ‘banho’ de sol. Pode-se tomar sol no jardim ou à beira-mar. Vale lembrar que a maioria de nós passa as férias em casa. O toque do sol e do ar na pele nua é estimulante e tonifica, sobretudo se você tem má circulação. Os raios ultravioletas do sol agem na substância gordurosa da pele e a transformam em vitamina D, a vitamina antirraquitismo. Isso faz com que as crianças tenham ossos fortes e bem formados. Se estiver muito quente e você se sentar à sombra, os raios ultravioletas do claro céu azul ainda alcançarão a sua pele”. Ar livre e ventilado, sol sobre a pele: nisso, não estamos mal! Por outro lado, notem que o tópico explica o famigerado ódio de nossos inimigos atuais a praias limpas.

O último tópico examinado pelo Dr. Clegg neste capítulo diz respeito a “Precauções nos banhos de sol: Pode haver excesso mesmo numa coisa boa, e assim pode haver excesso ao sol; de fato, você pode ter uma insolação e a sua temperatura subir, como febre. Ou você pode se queimar, e aparecer bolhas na sua pele vermelha e inflamada”. Como no Brasil, nosso know-how de sol não é pequeno, além de nossa pele ser curtida, este é mais um ponto em que estamos bem. Mas convém ouvir o conselho de que “no próximo verão” —, em nosso caso, todo santo dia —, “comece a tomar sol gradualmente. E não faça isso na canícula, mas no início da manhã e no fim da tarde. Não se estire ao sol imediatamente após almoçar. Crianças pequenas e idosos devem tomar cuidado, e pessoas loiras devem se lembrar de que em geral podem ficar ao sol menos tempo de que as morenas. Aqueles com problemas no coração ou nos pulmões também devem ser cuidadosos, porque uma exposição indevida pode piorar esses problemas. Crianças pequenas e idosos devem cobrir a cabeça e a nuca. O banhista deveria começar expondo-se — primeiro um lado, depois o outro — por, digamos, dez minutos na primeira vez. Depois, conforme ele ou ela comece a ficar bronzeado, a exposição pode ir aumentando. Mas grelhar-se faz mal”.

Nem se grelhar, nem muito menos grelhar alguém. Na guerra de então, como na de hoje, não há arma mais potente que o arejamento.

Alcir Pécora

Crítico literário, é autor de Teatro do Sacramento (1994); Máquina de gêneros (2001) e Rudimentos da vida coletiva (2002). É organizador de A arte de morrer (1994), Escritos históricos e políticos do Padre Vieira (1995), Sermões I e II (2000-2001); As excelências do governador (2002); Lembranças do presente (2006); Índice das coisas mais notáveis (2010); Por que ler Hilda Hilst (2010). Editou as obras completas de Hilda Hilst (2001-2008), Roberto Piva (2005-2008) e Plínio Marcos (2017).

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