Instruções urgentes para sobreviver aos tempos de guerra

Dicas de um tempo distante muito valiosas na agitação dos dias atuais
Ilustração: Matheus Vigliar
29/10/2019

Uma amiga me deu há 12 anos um presente que eu sempre achei ótimo, mas que jamais esperaria (nem ela talvez) que fosse se tornar tão útil para todos nós. Trata-se de um libreto intitulado How to keep well in Wartime, que poderíamos traduzir por Como viver bem durante a Guerra. A autoria cabe ao Dr. H. A. Clegg, um prestigiado médico pneumatologista dos tempos da Segunda Guerra, ligado ao Hospital Estatal londrino. Distribuído como folheto em 1943, por iniciativa conjunta do Ministério de Informação e do Ministério da Saúde da Inglaterra, foi editado na forma de livro pela primeira vez apenas em 2007, quando a minha amiga o comprou. Foi publicado então pelo Imperial War Museum, e muito bem impresso por uma gráfica italiana, a Graphycom.

No opúsculo original, um brevíssimo prefácio foi escrito pelo próprio ministro da Saúde, Ernest Brown, o que dá ideia da importância atribuída a ele. Brown era um dos principais dirigentes do National Liberal, uma dissidência do Partido Liberal, de centro-direita, que ocupou a pasta durante os anos terríveis de 1941-1943, fazendo parte do governo de coalizão de Winston Churchill. Por isso mesmo, em vez de parafrasear esse prefácio, permito-me traduzi-lo aqui para que percebam a razão estratégica que o Gabinete Churchill atribuiu à publicação:

Durante três ano de guerra total, a teimosa boa saúde da nação tem sido inestimável para nosso esforço de guerra. Mesmo assim, em termos nacionais, nós ainda estamos perdendo cerca de 22 milhões de semanas de trabalho a cada ano por doenças comuns e frequentemente passíveis de prevenção como resfriados e gripes, dispepsia, doenças da bílis, neurastenia, reumatismo, furúnculos e outras condições infecciosas. Algo que se calcula equivalente à perda de 24.000 tanques, 6.750 bombardeiros e 6.750.000 fuzis por ano, sem mencionar as dores e incômodos que sofremos como indivíduos. Por mais que fizéssemos, não poderíamos eliminar completamente essa perda, mas podemos fazer algo para reduzi-la. E agora que estamos no ponto de virada da guerra é mais importante do que nunca fazer tudo que pudermos para nos manter aptos — aptos a acelerar a vitória e enfrentar as tarefas que restam à frente. Mas manter a saúde em pleno vigor pede esforço consciente de cada um de nós. Neste livrinho, o Dr. Clegg definiu as salvaguardas simples, as regras do bom senso e os bons hábitos que devemos incorporar e tornar parte de nossas vidas diárias. Fazendo isso ajudaremos a nossa própria saúde assim como ajudaremos a nação a manter-se apta a lutar.

Ser saudável, portanto, nas palavras do ministro da Saúde da Inglaterra, faz parte das estratégias mais básicas do esforço de guerra: tanto para sobreviver a ela, como para vencê-la. E uma vez que nós todos, de uma hora para outra, nos vimos sendo empurrados para dentro de uma guerra mais ou menos declarada, fiquei matutando um pouco e cheguei à conclusão de que uma tradução desse livrinho nos poderia dar algum norte estratégico para a nossa própria sobrevivência. Com essa esperança, lancei-me à tarefa de traduzir na coluna deste mês o seu primeiro capítulo, cujo título é Be regular in your living habits, ou seja, algo como: Mantenha regularidade em seus hábitos.

Vamos, pois, ao que diz o diligente Dr. Clegg, um médico seriamente comprometido com o sistema público de saúde:

Um relojoeiro vai lhe dizer que um relógio vai se manter mais preciso se lhe for dado corda na mesma hora todo dia. O sol nasce e se põe em intervalos regulares. Com regularidade infalível a primavera vem depois do inverno. A natureza nos dá um exemplo ao ser regular em seus hábitos. Se nos rebelamos contra ela e somos irregulares em nossos hábitos, acabamos pagando por isso a longo prazo.

 Não pense que para ser saudável você tem de ser um desses “caras musculosos”. Um mundo feito de campeões pesos-pesados seria um lugar muito chato. O que se quer é um funcionamento tranquilo do corpo e da mente. Uma irregularidade espasmódica de comportamento, de atividade, perturba-o e a todos os que estão à sua volta.

É por isso que a primeira regra de saúde é ser regular nos hábitos vitais — comer, dormir, descansar, trabalhar, esvaziar as entranhas. Sobre a base de hábitos regulares, a autodisciplina, sem a qual ninguém pode tomar parte completa numa comunidade civilizada, fica mais fácil. Claro, regularidade demais pode se tornar um pouco chato, mas há bastante espaço para uma fuga ocasional. Uma decisão de última hora para participar de uma excursão, ir a um piquenique, visitar um amigo frequentemente aumenta o prazer do momento.

“Isso tudo soa muito bonito” — você poderia dizer, especialmente se for uma mulher ou uma mãe — “mas está acontecendo uma guerra aqui. Houve um ataque aéreo na última noite. As crianças têm de sair cedo para que eu possa ir para a fábrica. E meu marido vai trabalhar ainda mais cedo. Nós estamos bem longe de tudo isso”.

A mulher em casa tem mil e uma dificuldades para encarar. O homem também tem as suas ansiedades familiares, e ele quer assumir tudo como tarefa sua. A saúde dela, a saúde dele, a saúde de suas crianças são tão importantes para a nação a que pertencem, quanto para eles mesmos como indivíduos. Assim o esforço extra que pode ser necessário para conservar os hábitos familiares tão regulares quanto possível em face de tais dificuldades vale bem a pena.

Em seguida a essa premissa maior de manutenção de hábitos regulares, o Dr. Clegg trata de especificá-los com instruções que recobrem o dia inteiro a começar da manhã. Segue o libreto:

Comece bem o dia. Tente comer na mesma hora todo dia. Isso é particularmente importante para as crianças. Em qualquer caso, tenha sempre uma boa largada tomando o desjejum pontualmente, e cedo o suficiente para dar a todos da casa a chance de ir ao banheiro antes de ir para o trabalho ou para a escola.

Leram isso com atenção?

Metade dos problemas gastrointestinais que as pessoas têm começa porque elas não dão chance às suas entranhas para abrir-se adequadamente após o desjejum. Um café da manhã apressado, engolido mais do que mastigado, sem tempo suficiente para uma visita ao banheiro, e já precisando sair correndo para pegar o bonde, o trem ou o ônibus… — que péssimo começo para um dia de trabalho!

Se você está incomodado com o intestino preso, corrija isso com dieta, hábito e exercício. Não tome remédios para esse tipo de coisa a menos que o médico ache necessário. Coma mais vegetais. Beba um copo de água como primeira coisa na manhã, e se dê algum tempo.

Com essa advertência, o Dr. Clegg fecha o primeiro capítulo de seu manual de sobrevivência. Em resumo: os bons hábitos, baseados em sua regularidade, começam estritamente pelo hábito de ir ao banheiro logo no início da jornada. A grande batalha da guerra se trava no intestino. Logo, não se iludam: um homem enfezado não passa de um homem carregado de fezes. Furioso, porque perturbado pelos gases acumulados, ele terá dificuldades em superar as duras batalhas diárias exigidas nos tempos de guerra.

Alcir Pécora

Crítico literário, é autor de Teatro do Sacramento (1994); Máquina de gêneros (2001) e Rudimentos da vida coletiva (2002). É organizador de A arte de morrer (1994), Escritos históricos e políticos do Padre Vieira (1995), Sermões I e II (2000-2001); As excelências do governador (2002); Lembranças do presente (2006); Índice das coisas mais notáveis (2010); Por que ler Hilda Hilst (2010). Editou as obras completas de Hilda Hilst (2001-2008), Roberto Piva (2005-2008) e Plínio Marcos (2017).

Rascunho