Odisseia particular

Em "Enquanto os dentes", Carlos Eduardo Pereira apresenta uma história urgente e poderosa sobre relações humanas e acessibilidade
Carlos Eduardo Pereira, autor de “Enquanto os dentes”
29/10/2018

Sou um ávido apreciador de inícios de livros. Aquela frase que abre o romance ou conto e logo me impacta. Deixa-nos em choque. Com o gosto de sangue na boca. Olhos cerrados, na ânsia de descobrir primeiro o que raios está acontecendo com a trama. Intimamente pratico rankings sem sentidos e mutáveis sobre livros, cinema, música ou até mesmo de bares. Um deles é o de melhores começos de livros. Lá estão Cem anos de solidão, com a lembrança do Coronel Aureliano Buendía, diante do pelotão de fuzilamento, quando o seu pai o levou para conhecer o gelo. Como não ficar admirado com a primeira frase de Notas do subsolo: “Sou um homem doente… sou mal”. Até mesmo esbarrar com o clássico conto A imitação da rosa, de Clarice Lispector. E se apaixonar logo de cara com As meninas. E jamais esquecer os recentes inícios de Oito do sete, de Cristina Judar, e O peso do pássaro morto, de Aline Bei. Duvida? Vai lá, abra a primeira página de seu livro favorito.

Certeiro, sem pestanejar, nesta minha lista imaginária entrou recentemente o trecho inicial de Enquanto os dentes, estreia literária de Carlos Eduardo Pereira. Vai vendo: “Antônio não fuma há cinco anos. Ou quatro anos, dez meses e vinte e oito dias. Desde a manhã do acidente que o condenou à cadeira de rodas”.

A obra acompanha o trajeto do personagem, Antônio, pelo Rio de Janeiro, até a casa de seu pai, onde voltaria a morar depois de anos. Esta odisseia do romance de Pereira é árdua e, por vezes, desafiadora. Como se estivéssemos sentados na cadeira do protagonista e seguíssemos por muitos caminhos precários, que sutilmente são denunciados devido a um país ainda escasso com políticas públicas de acessibilidade. Mas o que transforma o livro em um dos melhores que li nos últimos meses é a sua forma de trabalhar a linguagem para destacar os anseios e sentimentos de Antônio durante sua peculiar rotação das rodas da cadeira. A mente borbulhando de dilemas e incertezas de um cadeirante observando as atitudes interpessoais: pena ou boa vontade? A perspectiva sóbria de quem necessita permanecer sempre atento com o quadro compacto da situação complicada de se encaixar na sociedade.

A odisseia de Antônio é problemática, incerta e, não muito, frágil interiormente. Sua viabilidade de retorno para a casa do pai, homem que não o via há vinte anos, de gesto rigoroso, é o que mais gruda com o título da obra. A leitura de segurar os dentes. O ranger de raiva, rancor, de possuir o medo e a angústia de reconciliar, viver no mesmo teto com a pessoa que sempre foi implacável em sua liberdade habitual e sexual.

Devaneios no aspecto da memória, Enquanto os dentes extrapola, visualmente, a nossa imaginação em uma cidade e sociedade em bancarrota. Pereira não perdoa, as situações passadas são narradas como se um em poucos segundos fossem desaparecendo. Um flash que atormenta as engrenagens humanas de Antônio. Pereira aborda estas passagens com certo desdém, pois, sendo um passado de um tempo em que se encontrava de pé, hoje desmorona pelas imagens descolorindo de um cadeirante. Objetos abandonados ou colocados como obsoletos, por motivos financeiros e, até mesmo, por desapego.

O antigo apartamento tinha muitos quadros, pinturas e fotos impressas, do próprio Antônio. Com o tempo, foram fincando apenas as marcas das molduras nas paredes. Havia também coisas que não estavam expostas, uma pilha que ficava num canto do ateliê e foi diminuindo aos poucos. Depois que virou cadeirante, Antônio teve que vender tudo, quadro por quadro, numa feirinha de antiguidades e outras coisas que acontece em torno de um coreto onde costumam fazer uma roda de chorinho nos domingos de sol.

Acompanhamos os traços psicológicos fragmentadas que são abordados por Antônio durante seu caminho. Linguagem literária muito utilizada, mas que no romance de Pereira é fundamental para mostrar as formas características da personagem.

No artigo Sujeitos trágicos, publicado no livro Formas breves, Ricardo Piglia nos apresenta um paralelo da psicanálise e literatura, onde o monólogo interior é o ponto importante da narrativa. No artigo empregado na escrita de James Joyce, e que incluo no romance de Pereira. Piglia escreve:

Não se tratava para Joyce de refinar a caracterização psicológica dos personagens, como se costuma crer, trivialmente, que seria o modo de a psicanálise ajudar os romancistas, oferecendo-lhes melhores instrumentos para a caracterização psicológica. Não: Joyce percebeu que havia aí modos de narrar e que, na construção de uma narrativa, o sistema de relações que definem a trama não deve obedecer a uma lógica linear; e que dados e cenas remotas ressoam na superfície do relato e se enlaçam secretamente. O chamado monólogo interior é a voz mais visível de um modo de narrar que percorre todo o livro: associações inesperadas, jogos de palavras condensações incompreensíveis, evocações oníricas.

A sensação de deslocamento, o retorno parental forçado, são absorvidos e compartilhados ao leitor. O desencanto de Antônio anda de mãos dadas com a situação atual do país. Sem representatividade política, onde a política cultural é desmontada, com infinitas oscilações. Até hoje perseguida. Veladas censuras. Sem apoio ou contribuição. Chamas que queimam o passado cultural. Vivendo do perigo diante do pensamento conservador, bem retratado pela persona do pai, tendo, consequentemente, como nome uma patente militar: Comandante. A caminhada angustiante de encontro a esse retrocesso mental e educativo. Uma decisão sem volta. Onde fazem com que outras alternativas sejam encarceradas. Esta interpretação, muito bem desenvolvida por Pereira, justifica a sequência do vômito durante a travessia da embarcação. Tenta-se evitar a ânsia, o vômito, mas já é batalha vencida. O jorro travado na garganta de Antônio é fundamental para estampar esta marca sombria e sem data para cessar, ou enquanto o dente segurar.

Ele sente uma pontada de enjoo e pensa que sempre foi assim, desde menino, quando rodava de carro ou explorava as dependências das embarcações em movimento nos passeios de domingo. Primeiro vem a salivação, a boca cheia do líquido amargo vindo da porção superior do estômago, engasgando a sequência de canais até se acumular na língua, que Antônio tenta conter inutilmente, confiando na barreira dos molares, caninos, até de sisos, confiante de que vão conter a enxurrada. Se esforça para deter a inundação apoiado na muralha de dentes. Se agarra às placas de contenção, mas não tem jeito, é um esforço inútil. Antônio sempre perde a batalha.

Grandes autores
Certo dia, escutei de um colega, cético, que “ninguém lê escritores brasileiros. Ninguém está nem aí para escritores nacionais”. Levei um susto e recebi com profunda tristeza esta mensagem de uma pessoa que também trabalha na área literária. O que mais me entristeceu, além de sua fala equivocada, é a certeza de que NINGUÉM — em caixa alta — lê escritores ou escritoras nacionais. For God sake, que absurdo. Temos um menu infinito de excelentes autores e autoras produzindo — de variadas vertentes — e transformam a nossa cultural. Aponto ainda que são obras de incríveis linguagens e tramas.

Com o romance de Pereira não é diferente. Temos nele a relação conturbada entre pai e filho, as angustiantes memórias, assim como de linguagem bastante impactante. Não é fácil utilizar o fluxo de consciência em uma narrativa. As ideias em fragmentos se encaixando de forma errada, confusão que a lembrança fornece. A situação ou um objeto é o engate para entrar na porta deste fluxo. Somos levados por um narrador na linha tênue da conturbada relação humana. O narrador que puxa a cadeira, ativa a memória e apresenta ao leitor as mais íntimas marcas de vivência: “Antônio sente o cheiro de urina. Lembra que a última vez que mijou foi ainda no antigo apartamento, mas a calça molhada de chuva vai disfarçar a mancha. Se estivesse uma noite clara ou, pior, se fosse uma tarde de sol, certamente passaria vergonha”. Na sequência surge a ativação do fluxo de consciência muito bem empregado pelo autor. “Ele costumava dar desses vexames na infância. A mãe levava o colchão manchado para o quintal e depois recolhia, momentos antes de o Comandante voltar do happy hour.”

Carlos Eduardo Pereira, em sua estreia, mostra-nos que já tem um grande fôlego para abordar uma narrativa instigante e importante para a literatura contemporânea. Aponto para o trabalho preciso da linguagem de narrar as lembranças, ou como Cristovão Tezza no texto de orelha denomina sendo a “máquina de memória, da personagem. Contraponto à odisseia de Antônio, está um realismo de momento chave entre a psicologia e literatura. Este momento transformado em romance de experiências. Os dentes cerrados de Antônio/Carlos. Por isso, a obra de Pereira é uma das mais importantes dos últimos anos, o autor usou de sua condição na possibilidade de construir uma história marcante. Celebro a chegada de mais um excelente autor, onde a literatura tem destes mecanismos: urgentes e necessários.

 

Enquanto os dentes
Carlos Eduardo Pereira
Todavia
96 págs.
Carlos Eduardo Pereira
Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1973. Enquanto os dentes é o seu primeiro livro.
Jorge Ialanji Filholini

É autor de Somos mais limpos pela manhã (Demônio Negro, 2016), finalista do Prêmio Jabuti, e Somente nos cinemas (Ateliê Editorial, 2019).

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