O romance monstruoso

"The making of americans", de Gertrude Stein, é tão grandioso quanto desconhecido
Ilustração: Gertrude Stein por Fábio Abreu
30/12/2017

Em uma de suas famosas e polêmicas entrevistas para a imprensa americana, no início dos anos 30, no tempo em que se tornou a primeira pop-star das letras mundiais (depois da publicação do best-seller A autobiografia de Alice B. Toklas), Gertrude Stein foi perguntada sobre quais considerava os mais importantes romances do século 20. Sem pestanejar, ela citou dois livros que, mesmo hoje, são indiscutíveis no hit parade da literatura: Ulysses, de James Joyce, e À la recherché du temps perdu, de Marcel Proust. A surpresa veio com a terceira narrativa citada, The making of americans. Se apenas alguns poucos franceses (escritores, claro; frequentadores do salão de Gertrude Stein, sem dúvida) sabiam da existência do livro, para os americanos era uma completa surpresa. Quando entenderam que o livro fora escrito pela própria Gertrude Stein, tudo ficou fácil: ah, a megalomania! Pois o que era A autobiografia de Alice B. Toklas se não isso, um exercício paroxístico de megalomania? Claro, transformar radicalmente o ato da narrativa confessional, como ela fez ao utilizar não a primeira nem a terceira pessoa, mas uma outra persona, a de Alice, sua companheira, para falar de si mesma, era um gesto modernista genial. Ouvir as histórias da Paris modernista, uma delícia. E a coisa ficou por isso mesmo: mais um ato megalô da excêntrica escritora americana, cuja pátria, na verdade, era Paris. A autora da frase perturbadora, da qual todos debochavam para evitar a tentativa de explicá-la (sim, estou falando dela, “a rosa é uma rosa é uma rosa é uma rosa”), aprontava mais uma das suas. Ninguém ousou contestá-la.

Até um tempo atrás, seria praticamente impossível para qualquer cidadão civilizado, por maior que fosse o seu desejo de conhecer esse livro, fazê-lo. Ainda hoje, o livro deve estar disponível em pouquíssimas livrarias do mundo. Você poderia ir a Paris, por exemplo, atrás de The making of americans, e dar com os burros n’água, como dizem nossos queridos patrícios. Em 1996, eu estive na livraria da Sylvia Beach e não encontrei nada além de uma fotobiografia de Gertrude Stein. E olha que a Shakespeare and Company era a livraria das livrarias modernistas. Mas, felizmente, os tempos mudaram. Hoje, acessando um site de compras e pedindo Priority (gastando alguns dólares, claro, mas não mais do que gastaria em uma livraria do mundo), você pode ter The making of americans na sua casa, em poucos dias. Se isso não é um dos maiores milagres da modernidade, eu não sei o que é. Podemos, finalmente, ter uma opinião própria sobre qualquer obra, sem passar pelos filtros (bem-intencionados, claro, mas sempre censores) de outras pessoas. Quando essas pessoas estão dedicadas a definir o famoso Paideia poundiano, o qual inclui alguns mas exclui muitos (e muitas coisas desses alguns), a vida do pobre aspirante a escritor torna-se um inferno. Falo por mim. Pedir The making of americans foi uma das tarefas mais difíceis da minha experiência literária. Havia todo um consenso sobre Gertrude Stein a ser vencido. No Brasil, o filtro rigoroso dos poetas de vanguarda determinava que só havia uma Gertrude Stein a ser considerada: a mais radical. A de algumas peças de teatro. De alguns textos. E ponto. O resto era o resto. Mas fiz o que minha intuição mandou. Pedi o livro. Passei meses a lê-lo. Não era possível ler mais nada. Tornei-me catatônico. Só pensava naquilo. Um dia, conheci Décio Pignatari, que morou em Curitiba por um tempo. E lhe falei do meu interesse por Gertrude Stein, em geral, e por aquele livro, em particular. Ele me olhou espantado: “Você leu aquilo?”. Quem esteve diante de Décio Pignatari sabe que suas perguntas eram terríveis. Nem lembro o que respondi. Mas a conversa parou por aí.

Entre os grandes
Qual o mistério desse romance? A inclusão dentre entre os dois outros foi apenas mais um gesto de excentricidade da escritora? Sou obrigado a dizer que não. The making of americans foi escrito de 1900 (quando Gertrude Stein chegou a Paris, vinda da América) até 1909, aproximadamente. Proust começaria seu romance, que tomaria os doze últimos anos da sua vida, mais ou menos nesse período, enquanto a obra-prima de James Joyce seria escrita depois da Primeira Guerra Mundial e publicada em 1929. Gertrude Stein o escreveu de 1900, quando chegou a Paris, até 1909, quando deu por concluída a empreitada. Já havia escrito a maior parte da obra antes de conhecer um jovem pintor espanhol de nome Pablo e sobrenome, bem, você sabe (o que mostra como é ridículo definir como cubista a escritura de Gertrude Stein. Mais lógico seria dizer que Picasso tornou-se um steiniano, em especial se lembrarmos que os primeiros quadros realmente cubistas de Picasso, aquele dos telhados de uma cidade da Espanha, foram mostrados em primeira mão para a dama dos salões da Rue de Fleurs, a qual, na ocasião, não teve dúvida em apontá-los como os marcos que, verdadeiramente, são).

Mas para entender The making of americans é preciso considerar outro fator: na literatura americana, não há mito maior do que aquele do tão falado “Grande Romance Americano”. Os americanos sempre aspiraram por isso. Ele, quem sabe, os colocaria no panteão das grandes literaturas europeias e russas. O romance de formação de um país. Mark Twain, com Huckleberry Finn, foi longe. Henry James e tantos outros fizeram a sua parte. Mas Gertrude Stein, além de nascer em outro tempo, era tão ambiciosa quanto Marcel Proust ou James Joyce. Aos desbravadores modernistas, não bastava produzir um romance de qualidade. Era preciso ir além. Da mesma forma que o francês e o irlandês, Gertrude Stein transformaria o romance em objeto, não apenas em um instrumento para contar uma história. Mais que isso: o romance como objeto no qual o tempo acontece não apenas em sentido cronológico, mas enquanto está sendo escrito.

Vemos isso no caso de Marcel Proust. Seu objeto é a memória, em particular a memória de um jovem frágil e sensível, adulado pela mãe e temente ao pai, filho de uma aristocracia rural, que se torna frequentador da nobreza do período. O primeiro capítulo do romance mostra o jovem abrindo os olhos e mergulhando no instante. Acompanhamos o narrador até o momento em que um simples biscoito, oferecido junto com o chá, provoca uma fratura na consciência do tempo, abrindo-a para o campo pouco explorado das lembranças pessoais. São sete volumes em que a memória do personagem-escritor é a memória de todo um tempo, ou de instantes que se distendem até alcançar a nossa vida, como se o tempo, subitamente, fosse abolido.

Performer
James Joyce, por sua vez, utiliza uma estratégia de outra natureza. Aqui o tempo não se distende, mas, isto sim, se comprime. Leopold Bloom, o personagem principal, é um funcionário público, casado com Molly Bloom, vivendo uma vida rotineira e pacata — até certo ponto, claro. No livro acompanhamos um dia na vida de Bloom. A memória se exercita no atrito com o presente. Os estranhos acontecimentos que se sucedem são aberturas sucessivas por onde a memória se precipita, mas, dessa vez, não em frases límpidas, cristalinas e de beleza estonteante como as de Proust. Pelo contrário: aqui, a feiura, a grossura, a gíria, a linguagem fraturada e caótica da vida urbana salta dos bueiros, como se a grande cloaca da literatura viesse à tona subitamente. O escritor deixa de ser o condutor de uma sinfonia perfeita (mesmo que dodecafônica, como em Proust), para se tornar um performer, um mestre de obras da linguagem. Esta, a linguagem, torna-se matéria, tem cheiro, cor, transpira. É como se sentíssemos a presença do autor naquilo que lemos, seu modo de respirar, suas indecisões, seus chistes e mudanças de humor. Nas oscilações mais cotidianas e banais de Leopold Boom está James Joyce, assim como nós, seus leitores

No romance de Gertrude Stein, também há uma aristocracia. Só que agora ela é americana, a família Ersland. Há, certamente, um anagrama sutil com o nome da autora. Ersland pode ser lido como A terra de Gertrude Stein, e não é difícil reconhecer nos personagens aqueles da história pessoal da escritora. Vemos a presença do pai de Gertrude Stein, um construtor de ferrovias e linhas urbanas, no patriarca da família Ersland. E Gertrude é implacável com ele, tanto quanto com a mãe Ersland. Martha Ersland é a mais nova de quatro filhos. Como Gertrude Stein. Mas as semelhanças factuais terminam aí. Não há uma história ou uma narrativa na obra. O método é impactante: um dos personagens é focalizado e, através dele, Gertrude Stein procede a uma rigorosa, sensível e, muitas vezes, cruel descrição psicológica. E o que torna o exercício fascinante é exatamente o que entedia muitos leitores e os afasta das primeiras páginas: a repetição. No caso de Gertrude Stein, repetição é um modo de aproximação. Talvez o único possível, ela parece dizer. Os personagens não são definidos a partir de suas reações diante de um acontecimento dramático. Ao contrário, nada parece acontecer. Até que, de repente, acontece. E o que acontece é uma luz jogada sobre um aspecto revelador, e muitas luzes jogadas sobre muitos aspectos reveladores, e um jogo de luz e sombra contínuo jogado sobre aspectos desveladores e encobridores.

Foi Augusto de Campos, que definiu The making of americans como um romance “monstruoso”. Segundo o tradutor de Mallarmé, era impossível que alguém tivesse lido “aquilo”. Era isso que Décio Pignatari estava me dizendo naquele dia. Mas mesmo com toda essa ganga bruta de dois gigantes, eu nunca desisti de The making of americans. Ele tem me ajudado a atravessar longas pontes e caminhos. E me ajudado a entender o que existe de mais incompreensível e encantador no mundo: o ser humano.

Se entendermos o “monstruoso”, de que fala Augusto, como algo sobre-humano, faz sentido. Se entendermos esse “monstruoso” como uma “estrovenga”, então estamos diante de um preconceito vanguardista. Vivendo num lugar mítico chamado Olson, a família Ersland permanece isolada do mundo, circundada apenas pelos negros. São eles os mais importantes na formação de Martha e seus irmãos. Com um pai grandioso e seco como um rochedo de Yormite, uma mãe medrosa e impotente diante da força devoradora do patriarca, Martha-Gertrude enxerga nos negros a riqueza. Encanta-se com o modo como escandem as palavras. O sorriso fácil, a fala sonora, a presença iluminadora. É nesse ambiente que as crianças crescem. Perto dos escravos libertos. A miscigenação, contra a vontade puritana, estabelece-se. E dá-se, assim a formação da América. Gertrude Stein era da Pensilvânia. Do norte da América do Norte, portanto, que constituiu a civilização americana. Mas The making of americans foi escrito em Paris, nos primeiros anos do século 20. O que o coloca ao lado dos outros dois grandes romances do nosso tempo é exatamente a sua monstruosidade, a ambição do seu desafio. O livro permaneceu no ostracismo até o final da vida de Gertrude Stein. Talvez você encontre algumas leituras de trechos do livro no youTube. No mais, silêncio. The making of americans repousa, o sono dos gigantes, esperando que o tempo propício surja, quando será lido e compreendido como, realmente, um dos três grandes romances do nosso tempo. Será que esse dia, um dia, chegará?

Gertrude Stein
Nasceu em 1874, em Pittsburgh (Estados Unidos) e morreu em Paris em 1946. Na capital francesa, manteve um círculo de amizade que contava como nomes como Pablo Picasso, Matisse, Georges Braque, Derain, Juan Gris, Apollinaire, Francis Picabia, Ezra Pound, Ernest Hemingway e James Joyce. Entre seus livros, estão A autobiografia de Alice B. Toklas, Três vidas, Paris França, O que você está olhando.
Antonio Cescatto

Nasceu em Curitiba (PR), em 1957. É escritor e publicitário. Autor de O mundo não é redondo (Travessa dos Editores)

Rascunho