Mergulho de superfícies

"Pela boca da baleia", do islandês Sjón, é uma experiência literária interessante, mas sem se aprofundar nas questões apresentadas
Sjón, autor de “Pela boca da baleia”
31/10/2017

Se a busca curiosa pela alteridade é um dos motivos para a permanência da literatura — ou uma de minhas razões pessoais para continuar a ler tanto — esse parece ter sido o mote da Flip de 2017. A festa literária nunca foi tão diversa, nela nunca foi tão arriscado escolher o que acompanhar — a falta de grandes nomes fez dessa edição do evento um momento para se conhecer, não reconhecer, autores e ideias, uma escolha corajosa e empolgante da curadoria.

Se fôssemos escolher um escritor mais próximo do que pode ser considerado pop este ano, o islandês Sjón seria uma escolha fácil. Não pop à Irvine Welsh, com gírias mil e filmes cult na bagagem, mas um pop mais conceitual, de alguém que já escreveu músicas com Björk. Um homem quieto, deslumbrado com a natureza em Paraty, que veio falar de uma época rudimentar da história da ciência, um tempo em que ainda se acreditava na existência de unicórnios — até algum estudioso a desmentir empiricamente.

Jónas, o protagonista de Pela boca da baleia, tem a alcunha de O Erudito no ano de 1635. E sua história muito tem do mito cristão do profeta Jonas: alguém de grande conhecimento que passa um período isolado — seja nas entranhas de um grande peixe, seja exilado numa ilha — pensando no que fez ou não com todo aquele saber acumulado. Ler sobre esse “grande conhecimento” com alguma perspectiva histórica me fez imaginar como o contemporâneo será encarado daqui a alguns séculos, como tudo que desconhecemos nos deixará num limbo entre o tacanho e o mágico.

Mas a curiosidade pelo outro não é nada sem o diálogo. Foi interessante encarar a fé cristã — em especial a católica — não como o default incutido na sociedade, mas algo que sofria perseguição. Como em minha criação — protestante — não havia muita abertura para empatia no que diz respeito aos símbolos e rituais do catolicismo, sempre me é interessante quando — por meio da literatura — tenho um vislumbre do olhar do outro; no caso, do que a religião significa para muitos, em especial para os mais humildes.

O que compele essa multidão maltrapilha de um canto ao outro do país? Mendigar para ter o que comer e o que vestir, é claro. Para sentir a quentura de outra coisa além das próprias mãos. Para viver a compaixão. Para ser peregrino, não um estorvo na própria casa. Para desfrutar de uma pequena amostra do que há de bom na Terra. Por tudo isso. Sim, para ser um filho de Deus entre filhos de Deus, nem que seja nos raros dias que duram os festejos religiosos.

Mas é isto: um vislumbre. Difícil o enternecimento durar quando a realidade bate à porta e vemos uma exposição artística queer ser encerrada em Porto Alegre por pressão de grupos religiosos e conservadores — a notícia é do dia da entrega desta resenha, 10 de setembro de 2017. Outro vislumbre, este um pouco menos enternecedor: ver como o sexo feminino era encarado à época — e não ter muito o que argumentar quanto a isso, em se tratando de 1635.

Para ser franco, até então eu tinha tido pouca consideração pelo sexo oposto, cuja companhia eu julgava banal e chata. E tudo indica que a recíproca era verdadeira. Elas se entediavam com minha filosofia e eu me entediava com toda aquela conversa sobre tarefas do lar, mantimentos, criação dos filhos ou como quer que se chamem tais futilidades em torno das quais a vida delas orbita. E é claro que se murmurava que eu era imprestável para o casamento com as mulheres. E daí? Os outros jovens podiam ficar aliviados, pois eu não competiria com eles pela mão das moças. Entretanto, isso não os impedia de solicitar que eu fornecesse a eles poemas cheios de emoções ardentes pelo sexo oposto.

O recorte é interessante, há alguma sugestão de algo para além da heteronormatividade — “imprestável para o casamento com as mulheres”, o que é posteriormente negado — mas é aquilo: apenas um vislumbre do olhar desse outro, um olhar inclusive bastante difundido. É preciso saber a quem direcionar nossa empatia; pessoalmente, me interessa mais o que Sylvia Townsend Warner conseguiu retratar em Lolly Willowes e o recorte Alice Birch no roteiro do recente filme britânico Lady Macbeth, ambas explorando o olhar feminino em tempos que não tinham conquistado o direito a um teto todo seu, do que a experiência de Jónas no mundo.

Referências
Dois autores brasileiros me vieram à mente durante a leitura. O primeiro nome me veio no trecho mais banal possível:

Trata-se de um pensamento vil que já ocorreu a todos que alguma vez sofreram uma perda e que se perguntaram, no desespero: “Por que ele?”, “por que ela?”, “por que não esse?”, “por que não aquele?” ou “por que não o outro?”.

O nome era o de Elvira Vigna. E nesse momento percebo mais uma vez que ainda não dou conta de escrever sobre ela desde o seu falecimento. Mas a barganha com o universo, ela é real: trocava facilmente um bom punhado dos escritores contemporâneos nacionais por mais alguns anos de produção intensa dessa escritora.

O outro nome é o de Samir Machado de Machado, autor de Homens elegantes. Antes deste, o escritor publicou Quatro soldados (que teve reedição recente pela Rocco), obra muito semelhante à de Sjón. Há algo de fantástico na ambientação histórica (Samir ambienta seu compêndio de quatro novelas no Brasil Colônia) e também há algo de aventuresco nos relatos de ambos os livros (sendo o de Samir mais envolvente), que seguem uma estrutura bastante parecida — as obras são divididas em seções, com narrativas mais fechadas.

O que mais me chamou a atenção, no entanto, foi a bibliofilia dos personagens:

Assistir a um livro ser queimado é algo que me dói nos olhos… Nas chamas crepitantes, ouço o suspiro de quem compôs o texto, de quem reproduziu aquelas palavras, letra por letra, e o suspiro de quem as leu… Ouço como essa trindade respira como um único ser, inspirando e expirando, até que o fogo trague o fôlego dos pulmões e assim acabe com a união daquele ser que o livro nutrira, como o solo do qual emergem galhos de flores mais diversas…

A relação de Jónas com os livros lembrou-me de todos os percalços dos personagens de Samir em virtude do amor pela literatura — e, novamente, creio que o autor nacional foi mais bem-sucedido nesse aspecto.

Em suma: Pela boca da baleia é um bom romance, é uma experiência literária interessante e que me proporcionou alguns vislumbres. Mas esperava mergulhos mais profundos quando há um cetáceo no título.

Pela boca da baleia
Sjón
Trad.: Luciano Dutra
Tusquets
208 págs.
Sjón
Nasceu em 1962, na Islândia. Poeta e romancista, além de Pela boca da baleia, escreveu o romance A raposa sombria e as letras de Biophilia, oitavo álbum de Björk.
Arthur Tertuliano

É escritor e mestrando em estudos literários pela UFPR. Escreve no blog O Leitor Comum.

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