A multiplicidade da leveza e do riso

Milan Kundera é capaz de unir em sua ficção ensaio irônico, narrativa, fragmentos autobiográficos, fatos históricos, arroubos de fantasia
Ilustração: Erick França
30/09/2017

Na década de 1980, exemplares de A insustentável leveza do ser passavam de mão em mão entre adolescentes e universitários. O sucesso de Milan Kundera, recentemente reeditado no Brasil continua. O que há neste enredo de meia dúzia de personagens presos a um momento histórico já superado, que ultrapassa gerações, 40 idiomas e centenas de resenhas?

Nem só de insustentável leveza vive Kundera: suas peças de teatro e livros de poesia são menos conhecidos, mas os onze romances e sete livros de ensaios frequentam as listas dos mais vendidos. Para alguém que se diz um autor sem mensagem, este tcheco de 88 anos tem muito a dizer, sempre atual e urgente. “O romance é o paraíso imaginário dos indivíduos. É o território em que ninguém é dono da verdade, mas em que todos têm o direito de ser compreendidos.” Este paraíso imaginário, criado e recriado por ele tantas vezes, tem abrigado grande número de leitores que há tempos já descobriram a falácia das verdades absolutas. A ambiguidade em sua obra, sublinhada há alguns anos por Maria Célia Martirani neste mesmo Rascunho, a certeza de que não há verdade final, é talvez a primeira chave para a leitura de Kundera.

Nascer na República Tcheca em 1929, apenas cinco anos após a morte de Kafka, poderia reduzi-lo a um “imitador do inimitável”, mas resultou, em vez, em uma mentoria póstuma indissolúvel. Kundera debruçou-se com empenho sobre a obra de Kafka. Dele apreendeu o que só o romance pode fazer: semear dúvidas sobre os caminhos que restam ao homem face ao mundo em que vivemos. Assim como Kafka escrevia febrilmente nos anos pós-Primeira Guerra Mundial, sem poder imaginar que o que viria depois seria ainda muito pior, também Kundera começou a escrever na Tchecoslováquia soviética pensando viver o ápice dos traumas de seu país. Desde seu primeiro livro, A brincadeira, publicado em 1967, reagiu à ditadura comunista com uma crítica baseada em profundo individualismo em vez de ideias puramente políticas. Tornou-se persona non grata do regime e viu a carreira e a voz sufocadas a ponto de, em 1975, exilar-se na França e adotar este idioma como sua nova pátria. A perda da posição de docente no Instituto para Estudos Avançados de Cinematografia e o banimento de seus livros situou Kundera na pele de Tomas, personagem central do romance que viria a escrever poucos anos mais tarde.

Milan Kundera reconhece em suas raízes centro-européias a maior influência sobre seu pensamento: Cervantes, Musil, Bocaccio, Rabelais, Janacek. Mas nos Estados Unidos, Nabokov, russo refugiado do garrote soviético, causou grande impacto sobre Kundera, no uso do humor, na força civilizatória da erudição, no repúdio a qualquer forma de totalitarismo e controle da mente e acima de tudo, no desprezo pelo kitsch (poshlost, em russo): a exposição da intimidade, ostentação, sentimentalismo, todo culto à pessoa do escritor. Essa crítica forma uma imagem assustadora das décadas de 1960 a 1990, mas reflete profeticamente o mundo de hoje. Ele, no entanto, insiste que, assim como Kafka, para escrever, volta sua atenção ao passado e não ao futuro.

Seu romance mais recente, A festa da insignificância, poderia resumir-se em uma frase:

Há muito tempo entendemos que não era mais possível revolucionar esse mundo, nem reorganizá-lo, nem frear seu curso calamitoso. Só havia um modo possível de resistir: não levar esse mundo a sério.

Leveza insuportável
O mundo nesse romance é uma alegre Paris, superficial e insignificante — de uma leveza insuportável. Não aborda a cultura de Praga, que ele conhecera e sabe estar irrevogavelmente perdida, mas do Jardin de Luxembourg, com seus bustos de pensadores, escritores, esculturas históricas desfiguradas, como que a homenagear a morte da cultura, a céu aberto no coração de Paris. Aos personagens humanos que aí se encontram falta sempre algo imprescindível: a um falta a mãe, que o abandonou; a outro falta propósito, a ponto de simular um diagnóstico de câncer; a um terceiro faltam perspectivas, que disfarça fingindo-se paquistanês; a um deles falta humor, que persegue sem sucesso; e finalmente ao último falta segurança, que fantasia suprir com pensamentos filosóficos de fundo de quintal. Alfredo Monte aponta, em seu blog, que neste romance “Kundera ama seus personagens, contudo não se deu ao trabalho de nos fazer amá-los também”. Não são personagens amáveis, mas sua insignificância é primorosamente construída, assim como a leveza convicta de Sabina, de A insustentável leveza do ser. Nestes, tudo é fingimento, armadilha da imagem, pinceladas superficiais da vida. Sabina, por sua vez, apesar de sua insuportável leveza, ausência de empatia, traição a todos que toca, deixa cicatrizes inclusive no leitor, porque tudo nela é ingênuo, sua força revela-se, ao final, da maior vulnerabilidade.

A festa da insignificância veio após um período de quase 15 anos desde a publicação de A ignorância, em que um casal tenta retornar a Praga pós-comunismo, e se depara com as armadilhas da memória, nostalgia (fruto da ignorância, daquilo que não se tem notícia) e destino (fruto do acaso, que a memória insiste em menosprezar). Irena e Josef são queridos ao leitor, porque seus dramas são os nossos: o amor diluído, o alcoolismo, a cruel visita do tempo. Assim como no romance da insignificância, há todos os elementos pelos quais Kundera tem sido acusado ou elogiado. A começar pela definição de romance.

Um romance é uma longa peça de prosa sintética baseada no jogo com personagens inventados. Esses são os únicos limites.

Sintético, explica, é o desejo do romancista de entender o assunto por todos os lados, na maior plenitude possível. A força de síntese do romance é capaz de combinar ensaio irônico, narrativa, fragmentos autobiográficos, fatos históricos, arroubos de fantasia, todos unificados como as vozes na música polifônica. A unidade do livro não necessita do enredo, só do tema. Quanto à arquitetura, na entrevista a Christian Salmon em 1983, Kundera confessa que tentou várias vezes escapar dos dois arquétipos formais de composição que não o abandonam: a polifonia, que une elementos heterogêneos a partir de sete unidades, ou a farsa, composição homogênea, teatral, beirando o inverossímil, a partir de cinco unidades. Os romances produzidos ao longo destes 50 anos encaixam-se no primeiro caso, segundo o autor, não porque esteja “cedendo a qualquer afetação supersticiosa em relação a números mágicos, nem fazendo cálculos racionais, mas por uma incons­ciente e incompreensível necessidade”.

Polifonia
A estreita relação com a música fornece a base da narrativa. Kundera é estudioso de teoria musical e da música polifônica, tem a necessidade de “ouvir” o ritmo de cada passagem. A numeração dos sub-capítulos é meticulosa e poderia ser acompanhada por indicação de compasso: adagio, presto, etc., dando ao leitor o não menos importante papel de maestro ou solista. Aqui, o projeto literário do compositor é de romances “construídos primordial­mente sobre um número de palavras fundamentais, como a série de notas de Schoenberg”, ou de Janacek. O objetivo do despojamento de tudo o que não é essencial é de “captar a complexidade da existência no mundo mo­derno num só livro sem perda em clareza arquitetônica”.

Exemplo do uso da polifonia para trazer os sonhos e a imaginação onírica encontra-se em A vida está em outro lugar, no qual um poeta medíocre que cresce na Tchecoslováquia ocupada pelos nazistas encanta-se pelo comunismo e escreve palavras de ordem em vez de versos. Também está presente em O livro do riso e do esquecimento, tido como um de seus maiores romances, misto de memórias, filosofia e História em que sete relatos aparentemente autonômos de erotismo e imagens oníricas da vida de um homem compõem um tema com variações. Quando perguntado se é um romance, respondeu: “Sim. Um romance é uma meditação sobre a existência, vista através de personagens imaginárias. A forma é liberdade ilimitada”.

Os mesmos temas aparecem repetidamente, muitas vezes em pares de contrapontos: anjos e demônios, leveza e peso, vida e morte, identidade e exílio, prazer e realização, amor e sexo, fanatismo e ceticismo absoluto. E há os temas circulares ou abertos, como a vida além das fronteiras (do amor, da arte, da pátria) ou a História como um retorno contínuo. Pela densidade dos temas fica claro que na busca por “entender o assunto por todos os lados, na maior plenitude possível”, Kundera às vezes opta por sacrificar traços pessoais dos personagens. A fidelidade é ao tema, à multiplicidade de respostas possíveis para qualquer pergunta essencial.

O riso é um de seus instrumentos favoritos, utilizado feito um caleidoscópio que produz ínumeras imagens, reveladoras da atitude metafísica de quem ri. Ele ensinou aos leitores que há dois tipos de riso: o demoníaco, sardônico, irreverente, que proclama que tudo perdeu seu significado; e do outro canto da sala da vida o riso aquiescente, alegre, dos anjos fanáticos, tão convencidos da importância de seu mundo que estão preparados a enforcar qualquer um que não compartilhar sua alegria.

Anjos do paraíso da igualdade dos gêneros acusam Kundera de machismo, citando a ocorrência de personagens femininas submissas e violência no sexo. Mas o riso de cada um, independentemente do gênero, revela-se muito mais coerente como medida dos personagens. Ao final de A festa da insignificância, Paris está povoada de alegres anjos que riem e cantam em coro. Comportamento sexual, sim, é critério importante: “comigo tudo termina em grandes cenas eróticas. Tenho a impressão que uma cena de amor físico gera uma luz extremamente brilhante que de repente revela a essência dos personagens e resume a situação de suas vidas”. Ecos de Nabokov, também aqui.

Milan Kundera também tem contribuído muito para o entendimento do método criativo, seu e de outros autores. A arte do romance, uma pequena jóia em sete ensaios, aborda aspectos pouco reconhecidos na obra de Cervantes, Proust, Musil, Kafka e tantos outros. Cristiano Ramos, ao resenhar Um encontro, outro livro de ensaios, neste Rascunho, confirma: “[…] seus textos teóricos quase sempre fogem dos lugares-comuns, evitam o mais-do-mesmo que ronda esse tipo de publicação”. Kundera ensina o que aprendeu. Desenvolveu a maestria de unir personagens diversos, fazendo com que suas jornadas se cruzem. As palavras ditas por um ressoam nos pensamentos de outro, cenas não relacionadas são ligadas por palavras temáticas, o que dá a sensação de simultaneidade. Muitas vezes miniensaios em espirais que se enrolam alimentam uns aos outros. Por sua influência ou não, aqui no Brasil esta técnica também tem sido utilizada com originalidade por alguns autores, como Michel Laub, por exemplo.

Significado na vida
Kundera consegue a compressão ao servir-se de um mesmo símbolo para vários temas, sem prejuízo do entendimento. O famoso exemplo imitado inclusive no cinema, é o chapéu coco de Sabina, de A insustentável leveza do ser. Uma herança do avô, representa para ela o erotismo e a rebeldia, a ponto de ficar indissociável de sua imagem. Sabina, amante de Tomas, é a mais “leve” dos personagens, a mais sexualizada, a menos interessada em realização. Só se dá conta de que perdeu tudo que tinha e tudo que foi ao final, no inverno da cigarra. Em contraponto, Tereza, esposa, cuja mala pesa muito, é vergada pela luta para agregar significado a tudo. Seu amor pelo infiel Tomas é uma realização. Quando ele carrega a mala para dentro da casa, está tacitamente aceitando o peso que esse amor trará. Para Kundera, assim como para Nietzsche, esse peso é positivo: já que só se vive uma vez, que haja significado na vida.

O personagem de Kundera enfrenta também os demônios externos do totalitarismo. Com humor ácido e orgias memoráveis, O livro do riso…, publicado já no exílio, escancarou aos franceses o efeito da ditadura no dia a dia dos tchecos: crianças, anjos, esperança, nostalgia e sentimentalismo são emissários do otimismo alucinógeno. Os regimes totalitários, em sua opinião, são todos iguais: comunismo, fascismo, ou qualquer ismo. Prova disso é a arte que produzem: sempre kitsch, sem originalidade, embebida em emoções. Segundo Philip Roth, Kundera demonstra “em muitas de suas histórias que eventos políticos são governados pelas mesmas leis que os particulares, de modo que sua prosa é uma espécie de psicanálise da política”. A invasão de Praga pelos tanques russos em 1968, por exemplo, é tratada como o estupro de uma linda cidade, onde o governo sentencia seus homens e mulheres mais inteligentes ao silêncio ou exílio.

Kundera sabe que a Techecoslováquia foi traída pela mesma civilização que ajudou a criar: foi entregue a Hitler em 1938, antes da invasão “estrangeira” pela Europa oriental. Naquele momento, a Europa ocidental estava muito ocupada olhando seu próprio umbigo para se opor, e arrancou de si o coração.

Se o coração da Europa não está mais em seu corpo, não importa se você vive em Praga ou em Paris […] porque não se pode estar em seu lar em um mundo exilado de si próprio para sempre.

Pode se dizer que Milan Kundera fez — e faz — pela Tchecoslováquia o que Gabriel García Márquez fez pela América Latina e Solzhenitsyn pela Rússia, mas sublinha que é romancista, antes de escritor político, francês antes de tcheco. Recebeu os maiores prêmios literários do mundo, e está sempre na lista do Nobel. Em 1985 recebeu o Prêmio Jerusalém pela Liberdade do Indivíduo na Sociedade, que o colocou na companhia de Borges, Ionescu, Coetzee, Sabato, Sontag, Lobo Antunes e em 2017, Knausgaard, entre outros. A importância atribuída por Kundera a esse prêmio foi tal que incluiu seu discurso de aceitação como ensaio de fechamento em A arte do romance. Resumiu de forma contundente sua visão da liberdade no romance, do valor da ironia, ambiguidade, distanciamento como a grande herança da literatura ocidental. Observou que o prêmio é prova de que o coração cosmopolita da Europa ainda bate.

Se o prêmio mais importante que Israel concede é destinado à literatura internacional, não é obra do acaso, mas de uma longa tradição. […] Se os judeus, mesmo depois de terem sido tragicamente decepcionados pela Europa, continuaram fiéis a esse cosmopolitismo europeu, Israel […] surge aos meus olhos como o verdadeiro coração da Europa, estranho coração situado além do corpo.

E foi mais longe: “a tolice moderna significa não a ignorância mas o não pensamento das ideias recebidas”. Explicou por que odeia o kitsch: “é a palavra que designa a atitude daquele que quer agradar a qualquer preço e ao maior número possível”. Esse discurso, proferido há 30 anos, ecoa palavras de Broch, escritas há 80! E não aprendemos ainda. Quem consegue se refugiar do kitsch hoje? Quantas horas desperdiçamos apagando mensagens de “você pode ser tudo que quiser”, “ouça seu coração”, “bom dia, pessoas felizes!”…? Estamos cercados de anjos cantando, que nos dizem o que pensar. Aí entra o terceiro tipo de riso: O homem pensa, Deus ri, diz um provérbio judaico. Deus ri porque o homem nunca é aquilo que pensa ser. Se pensa que chegou à verdade, pense outra vez. Não há nada de leve nas palavras de Kundera.

A insustentável leveza do ser
Milan Kundera
Trad.: Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca
Companhia das Letras
335 págs.
Milan Kundera
Nasceu em 1929 na cidade de Brno, Morávia. É escritor tcheco naturalizado francês. Recebeu muitos dos maiores prêmios literários no mundo, é sempre citado como candidato ao Nobel, e foi traduzido a mais de 40 idiomas.
Vivian Schlesinger

Escritora, tradutora e mediadora de debates literários. Autora do livro de poemas Papaya na madrugada.

Rascunho