Memória de mulher

Conto inédito de Eltânia André
Ilustração: Dê Almeida
30/07/2017

Ainda que a memória me chegue com lacunas, ela desencadeia a sensação recorrente de náusea. Lembro-me da tia pendurando lençóis no varal, o cheiro do sabão em pó, o anil deixando o suave azul nas peças brancas a quarar, ela punha capricho naquele trabalho que se repetia na rotina da casa. O terreiro pequeno de chão batido, naquela época, parecia-me imenso, o velho e útil tanque de cimento aguardando seus dedos com unheiros, algumas ervas cresciam em bacias e carcaças de pneus, um pé de limão numa extremidade e na outra um mamoeiro subnutrido — cenário de paz. Imagino-a (preciso preencher espaços vazios) com um belo sorriso quando me avistou, foi logo buscar o bambu para levantar o varal e deixá-lo bem esticado para que as roupas já limpas receberem todo o sol de verão. Não sei de onde ele surgiu, mas estava possuído pela alma ávida de um Belzebu. Nem me viu, tão pequenina, colada à parede de chapisco com meu vestidinho amarelo que quase deixava transparecer a calcinha — roupas nascidas da velha Singer de minha mãe costureira a quem não faltava estilo — cabelos pretos com corte indígena, sapatos brancos com meias de lacinhos.

Antes mesmo que ela tivesse chance de fugir dali ou eu compreender que aquilo que aconteceria seria um divisor de água na minha vida, ele foi arrastando-a pelos braços, aos tropeços subiu a pequena escada que dava para a porta da cozinha em feroz agitação. Ele vociferava expressões que não entendia, aliás tudo era-me novidade naquela infância. Você não presta nem para vigiar a sua filha, a desgraçada estava aos beijos com aquele mulato ocre no final do Beco do Bento — a frase ainda viva ressoa daquele passado. Eu tremia muito, mas consegui seguir os berros, ele encurralou-as na parede de azulejos encardidos do banheiro e dava-lhes tapas em meio a ameaças de morte. Furiosa e insubmissa, a filha ensaiava cuspir-lhe na cara, mas de tão nervosa a baba descia pelo seu queixo e pescoço. Horrorizada, eu espiava apenas com um olho, tapei o outro assustada com aquele homem. Ressurgiam de outras eras o medo e a revolta. Meu priminho chegou correndo e chorando, pediu ao pai que parasse, logo obedeceu ao seu semelhante mesmo naquela idade de brincar de bilosca e carrinho de rolimã. Fiquei ali feito uma conchinha de gente, encolhi-me o máximo que pude agasalhando-me como uma ostra, em seguida reconheci o ronco de sua surrada Lambretta e senti que alguém me pegava no colo, sem saber a quem pertencia aquele pescoço, agarrei-me a ele, enquanto ia me acalmando. Os lençóis estavam no chão e novamente sujos, caíram quando da luta da tia para escapar às agressões, pois ela apoiou-se no varal como se fosse possível se fixar nele e livrar-se daqueles tentáculos opressores.

A minha prima, a Sandra, era um charme com suas sardas de boneca e sua irreverência, não abaixava a cabeça, sentia-se vitoriosa com um objeto nas mãos trêmulas… desgraçado, bem feito, arrebentou o relógio que queria tanto e que comprou mês passado, eu não vou desistir do Tunim, viu mãe? Com um martelo de amaciar carne, num riso entre lágrimas, estraçalhou o Mondaine comprado a prestações na Joalheria Meia-Pataca.

Meses depois, quando os quatro estavam voltando de um churrasco num sítio de amigos, provavelmente por causa do excesso de álcool ao volante, o Fusca azul capotou na entrada da cidade e pai e filha morreram na hora. Morávamos no alto do morro num bairro próximo à entrada da cidade e no final do dia, como era de costume depois que a minha mãe terminava de varrer o terreiro com a vassoura de mato que ela própria fazia, parávamos a olhar a estrada que ziguezagueava por entre as colinas, num aclive em forma de ferradura, onde o sol raquítico na tarde se despedia lançando ares de melancolia. Hora estranha em que todas as tardes nossos olhares buscavam os arredores, como se imaginando coisas e sonhando com o futuro. Mãe, por que o tio Tuíca fez aquilo? Não sei, filha, ele é nervoso, e pensa que as mulheres têm o couro duro. Um bruto. Começava a entender que eu era mulher e o que era ser mulher num mundo habitado por homens como o tio. Avistamos uma ambulância pressurosa que apontou no declive da estrada, e ela disse-me que uma corrente de arrepios percorreu todo o seu corpo. Pensei que no fundo uma voz ditava-lhe pressentimentos, afinal tínhamos parentes velhos e doentes, mas a existência traz outras surpresas que — mal supomos — estão a caminho. Bem a lua ainda não havia tomado o lugar do sol nos altos do Miguel a realidade chegava com seu peso: recebemos a notícia que aquela Kombi branca do hospital estava levando nossos parentes. A esposa e o filho sofreram no corpo lesões leves. Todos ficaram tristes pela tragédia. Porém, não consegui lamentar a morte do tio, mas durante meses não fechava as portas de casa, nem do banheiro, pois habitara-me a estranha sensação dele ainda presente e tive medo de que ganhará um poder de assombrar a mulheres vida afora.

 

Eltânia André

Nasceu em Cataguases (MG). É autora de Meu nome agora é Jaque (contos, 2007).

Rascunho