O que o corpo narra

Os disfarces corpóreos vão do utilitário ou cosmético ao artístico
Ilustração: Dê Almeida
01/06/2017

“Singularmente, as pessoas têm em geral um corpo abandonado, conformado ou deformado pelos acasos, aparentemente sem nenhuma relação com seu espírito ou maneira de ser; ou têm um corpo mascarado pelo esporte, com a aparência daquelas horas em que tira férias de si mesmo.” Este trecho d’O homem sem qualidades é um dos inúmeros que merecem ser extraídos do livro — para que se pense longamente a respeito. Robert Musil nos leva pela trilha onde encontramos Merleau-Ponty com sua Fenomenologia da percepção: uma estrada que faz refletir sobre a ficção no físico, a narrativa no corpo.

A mensagem circula de variadas maneiras. Através de sintomas, feições, cicatrizes, rugas, gestos, o corpo recebe — e divulga — a sua inscrição no tempo, a pátina das vivências que o alteram de forma definitiva ou célere. Mas o corpo também finge, oculta, cria: daí sua capacidade inventiva. Além de confessar, o corpo fabula, e é nesse território simbólico que ele vale como ficção. A doença, o gozo, a própria morte (por, digamos, uma catalepsia patológica) pode ser enganosa.

Os disfarces corpóreos vão do utilitário ou cosmético ao artístico. Alguém já disse que o homem moderno pode assim ser dividido: cabeça, tronco e carro. Próteses, extensores, diversos tipos de modificadores tecnológicos constroem hoje o corpo-máquina.

Provavelmente, no campo da experimentação transumana, o australiano Stelarc é um dos nomes de maior destaque — sobretudo depois de ter convencido uma equipe de três cirurgiões a implantar uma orelha sintética em seu braço. A tal orelha foi inclusive dotada de microfone com transmissão wireless, o que de fato a capacitou a funcionar como um aparelho auditivo, captando os sons do ambiente, e isso a partir de um lugar (o do braço) que se distingue da posição de escuta do próprio Stelarc.

Diretor de um laboratório de anatomias alternativas na Curtin University, Stelarc diz que sempre esteve interessado no corpo como um meio de evolução arquitetônica. E sua discussão, sobre os limites para a intervenção no físico humano, faz pensar nos disfarces, nos diversos tipos de travestimento que subentendem a pergunta: até que ponto o corpo já não corresponde ao eu ou à identidade? Há quem diga que ultrapassa o valor de suporte e se torna, ele próprio, linguagem.

O corpo é o Real, mas também pode ser outra coisa. Utilizado ao mesmo tempo enquanto matéria-prima e resultado em experiências da body art, eleva cada performance ao discurso de renúncia ao mercantilismo e crítica à sociedade capitalista — ainda que essa não seja a intenção confessa do artista.

Günter Brus, por exemplo, colocava como seu princípio fundamental a “anulação do ilusório”. Negava a representação e a narração em suas atividades, querendo tão-somente expor-se como elemento da ação artística, numa espécie de tableau vivant. Ele trabalhou na chamada autopintura até a autodeformação. Com a mortificação, Brus intentava liberar o corpo das ficções e reduzi-lo a “carne sem subjetividade”. Entretanto, a dor é diegética, não somente sensação ou instinto; ela sugere enredos, e eles são inclusive inevitáveis. A proposta do artista-mártir resgata mitos, surge com veemência simbólica. E o símbolo é um componente substituto, portanto uma invenção.

Outra personalidade da década de 1960, integrante do grupo Wiener Aktionsgruppe, foi Rudolf Schwarzkloger, que inclusive chegou à “morte por meios plásticos”. Ele admitia a inventividade do corpo, ao declarar: “Todos os corpos são apenas aparências, imagens da imaginação, estados de espírito criado a partir de sua própria vontade”. Dessa maneira, embora o acionismo vienense buscasse uma “estética da destruição”, ou antes, “ações puras” que tinham a única finalidade catártica da libertação através de um tipo de dor dionisíaca, sempre houve nestas experiências um traço ficcional.

Figura pioneira na body art — e que abriu o caminho para a presença das mulheres nesta esfera —, foi a francesa Orlan. Afirmando o próprio corpo como “lugar de debate público”, ela se distancia de práticas masoquistas para preferir a denúncia das pressões culturais, políticas e religiosas sobre o corpo. Tendo passado por várias cirurgias estéticas (transmitidas ao público, com o valor de performance), ela ainda trabalha com fusões físicas realizadas em computador, na busca de metamorfoses. Estes trabalhos já se classificam na bioarte, que envolve, dentre muitas possibilidades, esculturas-quimeras e fotos digitais manipuladas para criar mutantes, híbridos estéticos.

A base do trabalho de Orlan — a crítica à beleza enquanto obrigação social — alavanca as obras de Gina Pane, Ana Mendieta e Carolee Schneemann. Quase sempre a dor surge como evidência da objetualização da mulher, num universo falocêntrico. E o corpo é posto em seu caráter substituível e manipulável — reinventado.

Dizem os psicanalistas que a obra de arte não pode ser uma pura presentificação da Coisa, por mais que o “narcisismo psicótico” de certas atividades contemporâneas pareça indicar o contrário. Vilma Cocoz, no artigo El cuerpo-mártir en el Barroco y en el Body art, explica melhor: “Sendo a arte um modo de alcançar o real pelo simbólico, sua eficácia não está na via de ataque aos símbolos, mas no uso de sua potencialidade criadora. Só aceitando essa condição a obra artística morde o real”.

Como assinala Cocoz, todos estes artistas utilizaram-se do “espaço fingido da cena; por muito explícito e escandaloso que se proponha, a arte depende da estrutura da linguagem, da implementação e desenho dos temas, quer dizer, de um simulacro. Ademais, a conservação das obras (em fotos ou filmes) elimina precisamente um elemento considerado específico destas ações: o fazer em espaço e tempo reais”.

O que quer que esteja ligado — simbolicamente ou não — à nossa anatomia pode ser incômodo, ou mesmo estranho ao limite. Então, se algum aspecto parece indesejável, queremos recriá-lo. Noutra opção, aceitaremos caminhar com ele (enquanto presença fixa) e, à maneira de Clarice Lispector n’A descoberta do mundo, diremos: “Meu corpo, esse serei obrigada a levar. Mas dir-lhe-ei antes: vem comigo, como única valise, segue-me como um cão”.

Tércia Montenegro

Escritora, fotógrafa e professora universitária. Dentre outros livros, publicou o romance Turismo para cegos (Companhia das Letras), vencedor do Prêmio Machado de Assis 2015, da Biblioteca Nacional.

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