Geração transformada

"Meia-noite e vinte", de Daniel Galera, é um retrato das relações atravessadas pela tecnologia e pelo pessimismo
Daniel Galera, autor de “Meia-noite e vinte”
28/05/2017

Andrei, Aurora, Antero e Emiliano são os protagonistas de Meia-noite e vinte, novo livro de Daniel Galera. Na juventude, os personagens dividiam o Orangotango, uma espécie de zine online que circulava no fim da década de 1990 e ganhou fama na cena cultural. Os anos passaram e uma notícia trágica faz com que eles voltem a se encontrar: o assassinato de Andrei, em um assalto nas ruas de Porto Alegre.

O reencontro para o enterro do amigo é o gancho para uma série de descobertas e dramas do grupo, que seguiu diferentes rumos na vida — Aurora é bióloga e pesquisadora, Emiliano é jornalista e Antero é publicitário. Já Andrei — ou Duque, como ficou conhecido — morreu como um grande prodígio literário, o único dos quatro a seguir um caminho artístico que, ao que parece, todos almejavam na época do Orangotango. Escritor talentoso e reconhecido, ele conseguiu reunir fãs e a admiração entre seus pares, mesmo em um ambiente visto de maneira crítica pelos personagens. Em determinado trecho, por exemplo, Emiliano define o mundo literário brasileiro como “um pátio de recreio em que crianças mimadas com ranho saindo do nariz deduravam o narcisismo despolitizados umas das outras”. Para além das reminiscências sobre os caminhos profissionais de cada um, o livro dá logo no início o tom de que todas essas crises, unidas à morte de Duque, têm um gosto diferente, amargado pela presença incômoda das redes sociais — mas não só isso.

Um dos maiores talentos da literatura brasileira contemporânea”, era o aposto que o texto lhe concedia. “Duque, como era chamado pelos amigos.” Havia uma hastag #AdeusDuque oferecendo consulta instantânea às manifestações de choque e tristeza de seus leitores e amigos nas redes sociais. Não tive coragem de clicar nela.

Daniel Galera constrói no imaginário do leitor a época em que os quatro eram jovens, usando referências a bandas de rock favoritas, vídeos precários que estavam “bombando” entre adolescentes com acesso à internet, e até a ideia de “bug do milênio” — a expectativa de que, na virada de 1999 para 2000, os sistemas de informação sofreriam uma pane geral. A mistura de referências é fundamental para compreender as transformações que os personagens atravessam ao longo dos anos.

O mundo em que eles vivem agora é outro, permeado pelo vício em internet, individualismo e vaidade. Um mundo em que o bug, ou a ideia de uma nova era, de um fim do mundo, caminha ao lado deles, trazendo certa insegurança a respeito do futuro e, ao mesmo tempo, nostalgia. Esse contexto convida o leitor a pensar sobre eventuais impactos que a tecnologia da comunicação tem nas relações humanas e nas artes.

Emiliano, o jornalista, se vê diante de um desafio: ele é convocado por um editor, no dia do enterro de Andrei, a escrever uma biografia do amigo. Num primeiro momento, a missão é motivo para um drama de consciência. Mas, posteriormente, se torna uma grande busca que traz não só mais esclarecimento sobre a personalidade de Duque, mas revelações sobre o próprio jornalista.

Política e drama individual
No pano de fundo da trama também estão os protestos contra o aumento do preço das passagens de ônibus, que causaram grandes debates em 2013 — e é um tema ainda um tanto ausente da ficção brasileira. Esses acontecimentos não são decisivos na história, mas ajudam a levantar uma outra questão: de que maneira as transformações políticas e históricas repercutem nos indivíduos.

Já fazia alguns anos que a movimentação de Porto Alegre àquela hora da noite tinha algo de clandestino. Sair às ruas era uma ousadia, talvez até um ato político.

Os acontecimentos políticos participam de Meia-noite e vinte, mas não são necessariamente protagonistas: eles estão ali mais para revelar a intimidade dos personagens (e sua maneira de ocupar a cidade ou círculos sociais, por exemplo) do que para dizer algo sobre o país.

Após a marcha, porém, quando as dezenas de milhares de pessoas dispersaram, eu caminhei à procura de um táxi em meio a latas de cerveja vazias e cartazes com palavras de ordem deixados para trás, os joelhos doendo e as panturrilhas endurecidas de ácido lático, desde a Brigadeiro Faria Lima até a metade da Rebouças e, ao chegar em casa, fui tomada por uma sensação de futilidade e desperdício. Tive a convicção de que nada mais iria mudar, que nada mais podia mudar.

Nessa teia social complexa em que vivem os personagens, acrescenta-se ainda o comportamento obsessivo com relação à internet. Antes de morrer, Duque deixou com a namorada uma lista de recomendações que incluíam apagar todos os seus perfis, inclusive textos seus publicados em sites. Mas não se trata de um comportamento isolado. Na realidade, o livro parece se referir a uma geração entusiasta de palestras do TEDx, por exemplo, que “viralizam” nas redes com discursos otimistas — em paralelo com um mercado de trabalho que na verdade é injusto e excludente. Há ali um debate não apenas sobre o que essa geração deseja na vida, mas sobre o que aprendeu a desejar por causa das circunstâncias.

Pessimismo
Em uma das melhores provocações da obra, Aurora questiona o Mito de Sísifo, obra escrita por Albert Camus em 1941. Nele (explicando resumidamente), Sísifo é condenado a carregar uma enorme pedra até o topo de um morro. Chegando lá, a pedra despenca e ele precisa recomeçar o trabalho, e assim eternamente. Essa história pode ser lida como uma metáfora sobre o vazio da insistência humana em algo que nunca dará certo. Para Aurora, esse mito não sobreviveria nos dias de hoje. Ela acredita que Sísifo tinha sorte de viver na Antiguidade, pois, agora, conheceria demais a pedra, a montanha e a si mesmo para continuar se entregando a essa tarefa sem sentido.

Talvez a pesquisadora Aurora seja o personagem mais complexo de Meia-noite e vinte, que tem mais consciência da crise que os cerca. Ela enxerga algumas pistas de esperança em um sinal ou outro, mas mantém certo pessimismo. Algumas vezes, Aurora ajuda a despertar o sentimento de “fim dos tempos” nos outros personagens. Algo que funciona, evidentemente, como uma metáfora para uma renovação individual.

Um novo mundo
Esse é o primeiro livro de Galera após o aplaudido Barba ensopada de sangue. Permanece a escrita tradicional e a destreza com pequenas reviravoltas de roteiro. Mas os personagens de Meia-noite e vinte são mais deprimidos. A sexualidade é outro tema muito presente na história, acompanhada sempre de uma dose de bizarrice, e até de melancolia. O livro é escrito com várias vozes, que ajudam o leitor a montar o quebra-cabeça da trama — e onde o premiado autor também se revela habilidoso.

Meia-noite e vinte tem alguns elementos com influência da realidade — nos anos 1990, Daniel Galera integrava o time de autores do zine Cardosonline, que teve grande impacto sobre a produção literária da época e marca um período de certo experimentalismo no que se refere às plataformas online de publicação.

O título “Meia-noite e vinte” pode ter diferentes interpretações para quem lê, mas todas devem se aproximar da ideia de mudança de tempo, de um novo dia. Na história, é uma referência a uma festa de virada de ano que o grupo de amigos passa reunido, no fim dos anos 1990. Também pode ser um jeito de falar sobre um mundo que acabou e as pessoas só perceberam um tempo depois. Um novo “bug do milênio”, a espera por algo grandioso em que todos acreditavam e não virá.

Meia-noite e vinte
Daniel Galera
Companhia das Letras
202 págs.
Daniel Galera
Nasceu em São Paulo (SP), em 1979, e viveu por muitos anos em Porto Alegre (RS). Escritor, tradutor e ex-colunista do fanzine Cardosonline, publicado entre 1998 e 2001. Também é autor de Dentes guardados (2001), Mãos de cavalo (2006), Cordilheira (2008), Barba ensopada de sangue (2012) e do álbum em quadrinhos Cachalote (2010), em parceria com o desenhista Rafael Coutinho.
Gisele Barão

É jornalista

Rascunho