Um ato de amor

"A caderneta vermelha", de Antoine Laurain, coloca a literatura no mesmo patamar da vida e dos prazeres
Antoine Laurain, autor de “A caderneta vermelha”
25/02/2017

Um pequeno mistério: Laure, uma jovem desconhecida, é assaltada de madrugada, em frente ao prédio onde morava, tem sua sacola roubada. Na bolsa, óbvio, tudo que elas, as bolsas, costumam carregar. E Laure, sem as chaves do apartamento, dorme no hotel em frente ao seu prédio. Ao amanhecer, Laurent Lettelier, um livreiro, encontra em cima de uma lixeira a sacola desprezada. Tem mistério, então tem curiosidade. E Laurent vasculha a bolsa: espelho antigo, perfume, algumas fotos, um livro autografado por Patrick Modiano. Na dedicatória o nome, Laure; e uma caderneta vermelha, uma Moleskine, com inúmeras anotações, ideias, o bastante para encantar o livreiro. Um diário? Provavelmente. Fascinado, Laurent decide investigar e tentar encontrar aquela jovem misteriosa. Apesar da inexistência de documentos que identificassem a proprietária, Laurent começa as buscas pela leitura da caderneta vermelha. Ali estão os pensamentos mais íntimos de Laure, o que ao livreiro prestes a se apaixonar representavam um contato bastante próximo. A paixão não tardaria. Esta é a sinopse de A caderneta vermelha, de Antoine Laurain. Repare, atento leitor, temos LAUrain, autor; LAUre e LAUrent, personagens.

A caderneta vermelha narra uma história aparentemente simples. Isso decorre do fato de ser uma história tocante com personagens nada superficiais. Importante destacar que o autor faz de Patrick Modiano, escritor ganhador do prêmio Goncourt e do Nobel, um personagem secundário, o leitor perceberá nesse ponto estender-se o fio que ligará, com muita angústia, Laurent e Laure.

Voltemos aos acontecimentos. Laure dormiu. O assalto deixara suas marcas e coube aos funcionários do hotel perceberem isso, assim como interromper aquele sono suspeito.

Meia hora mais tarde, Laure era retirada numa padiola de rodinhas que percorreu apenas uns trinta metros pela calçada até chegar à ambulância vermelha. As palavras “hematoma”, “traumatismo craniano” e “coma” foram pronunciadas.

A intenção de Laurent era entregar a bolsa a algum departamento de achados e perdidos, delegacia talvez. Deduzira que a infeliz proprietária faria um boletim de ocorrência. O plano do livreiro não se consumou e, mesmo sem uma explicação que o convencesse, levou a bolsa para casa. Sua índole não lhe permitiria deixar na rua os pertences daquela desafortunada desconhecida. Mas como encontrar a proprietária?

Laurent não empreenderá sozinho tamanha busca, sua filha terá papel importante, escritores também participarão, um amigo de Laure oferecerá pistas, e não posso negar a participação de Belfegor, o gato dessa mulher misteriosa que não encontra dificuldades para travar amizade com o livreiro. Vale acrescentar que Laurent também tem um gato, Pútin.

Pútin, pronunciou devagar o veterinário, entrando na sala de espera. Duas senhoras com cachorrinhos interromperam a leitura de suas revistas e se entreolharam. A primeira levantou as sobrancelhas, com ar consternado, a outra balançou a cabeça, pobre animal, murmurou. Assim que foi tirado da caixa de transporte, Pútin fez sua cara de demônio e bufou para o veterinário.

Prazer necessário
Apressado leitor, sei que está antevendo o desfecho. É provável, mas até lá muitos acontecimentos tornarão a leitura de A caderneta vermelha um prazer dos mais simples e necessários. E justamente por isso, dos mais raros.

A escrita de Laurain, aparentemente singela, flui e exige atenção devido à quantidade de detalhes e descrições da encantadora Paris. Mas eu disse aparentemente singela porque não existe o que consiga ser totalmente singelo e ao mesmo tempo ser bom. Assim ocorre com a história de amor que o leitor antevê, os passeios pela cidade de Paris e os comentários acerca da literatura. Comentários nada enfadonhos, nunca técnicos, observações comuns àqueles que gostam de literatura e da companhia dos livros. Uma obra que merece estar na lista daquelas que revelam encontros amorosos.

Embora tivesse outros livros no apartamento, aquela estante guardava aqueles de que mais gostava. Até tomava o cuidado de não fazer coabitarem autores que não se entendiam. Assim, Céline não podia ser colocado junto de Sartre, nem Houellebecq junto de Robbe-Grillet.

Rimbaud, Stendhal. Apollinaire, Breton, Maquiavel, Le Clézio, Simenon, Murakami, Jean Cocteau, alguns dos autores citados ao longo da história, valem para despertar a curiosidade do leitor. Quem sabe ler o que a personagem lia? Os autores arrolados em A caderneta vermelha são de primeira necessidade, mas advirto: causam dependência.

A caderneta vermelha coloca a literatura em primeiro plano, ou melhor, a arte no mesmo patamar da vida e dos prazeres. Confere à arte o protagonismo discreto que colabora para aproximar o leitor da série de eventos em A caderneta vermelha. Deixa ao leitor a possibilidade de viver acontecimentos semelhantes, seja na trágica relação do homem com as ruas violentas de nossas cidades, seja na possibilidade de “perseguir” um imaginário, no entanto viável pois sabemos que existe, amor.

A caderneta vermelha é um romance com estrutura de romance policial, baseia-se numa investigação, uma busca, envolto magistralmente nas sombras das narrativas noir. Aqui a sombra, o véu, é o escritor Patrick Modiano, atuando como personagem e anjo da guarda. Apesar de a história começar com um ato violento e ter sequência dentro do “vazio violento”, o desaparecimento de uma personagem, A caderneta vermelha é um exemplo de narrativa otimista; traz ao primeiro plano as artimanhas do acaso e de como é possível apaixonar-se. Mesmo que jamais se tenha visto o motivo de arrebatadora paixão. Mas seria imprescindível? Para Laurent, não. Para ele, um homem apaixonado pela literatura, pelas palavras, a intimidade que os escritos de Laure lhe trouxeram foram suficientes. Laurent vive a possibilidade de um amor, de um sentimento que emana da possibilidade, a ausência de um corpo que jamais esteve a sua frente, não o impede de sentir-se cada vez mais solitário em seu apartamento habitual vazio e silencioso. Um célebre conto de fadas utiliza um sapatinho de cristal na busca pela amada, agora a pista é uma bolsa, uma bolsa e seus significados.

Sim, tudo vai recomeçar como antes, murmurou Laure, só que nunca mais vou achar minha bolsa. A senhora compra outra… Não, jamais vou poder comprar tudo o que estava ali dentro. Ninguém pode comprar de novo uma parte da sua vida. Isso deve parecer ao senhor uma bobagem, eu sei, mas é assim.

Laurain escreveu um conto de fadas moderno, inclusive com a violência característica de nosso momento, o amor de um “detetive erudito, tímido e desajeitado”; e uma mulher… Um conto de fadas que logo adquire as cores da realidade.

Paciente leitor, disse acima que A caderneta vermelha baseia-se numa investigação, uma busca…, perdoe. Preste bem atenção, encontrará duas investigações, duas buscas e um final espetacular.

A caderneta vermelha renova a literatura, repleto de criatividade, um incentivo a quem escreve. Uma narrativa espantosamente simples.

A caderneta vermelha
Antoine Laurain
Trad.: Joana Angélica d’Avila Melo
Alfaguara
135 págs.
Antoine Laurain
Nasceu em Paris em 1970. Recebeu o Prix Drouot em 2007 por seu primeiro romance Ailleurs si j’y suis. A seguir publicou Fume et tue (2008) e Carrefour des nostalgies (2009). Em 2012, Le chapeau de Mitterrand foi um dos grandes sucessos literários na França.
Luiz Horácio

É escritor. Autor de Pássaros grandes não cantam, entre outros.

Rascunho