Múltiplos narradores

A técnica para o uso de vários narradores no romance
Ilustração: Carolina Vigna
26/07/2016

“Estávamos em aula, quando entrou o diretor, seguido de um novato, vestido modestamente, e um servente sobraçando uma grande carteira. Os que dormiam despertaram e puseram-se de pé como se os tivessem surpreendido no trabalho.”

Assim começa o romance Madame Bovary, de Flaubert, com a surpresa do narrador plural, algo que não se conhecia na metade do século 19, reconhecido como o século de Ouro do romance. Narrador plural, esclareça-se didaticamente, é apenas o narrador na primeira pessoa do plural, que fala por todos os outros narradores. No mundo contemporâneo talvez não haja estranheza, mas na época parecia inconsequente que um narrador se apresentasse assim. Ainda não existia sequer o narrador múltiplo, que não é sinônimo do primeiro, ambos criados por Flaubert. Os narradores múltiplos são personagens que assumem a intimidade da história e contribuem para revelá-la.

Sim, um romance pode e deve ter mais de um narrador, desde que o leitor não perca a unidade da história. Para isso, é óbvio, o escritor precisa ter o absoluto controle narrativo. O pernambucano Maximiano Campos usa esta estratégia no romance já clássico Sem lei nem rei. No princípio, dispensa o narrador — onisciente ou oculto — e passa a narrativa para os protagonistas através da técnica “o olhar do personagem”, trabalhando com os cenários e com a construção do personagem na perspectiva da “criação indireta do personagem”. O seja, o narrador abdica da criação e da condução do personagem que assume todos os movimentos. Para isso, basta ver. Ver e questionar.

Observe bem como isso acontece com extrema simplicidade: “Lamparina esticava a passada. Lembrava-se de sua terra, do verde das canas, do massapê lambuzado pelos pés opilados dos seus companheiros”. Dessa forma o personagem entra na história sem comando, movido pela lembrança, que é o seu olhar psicológico e coloca-se na história. Enquanto o personagem anda a lembrança constrói o personagem e enquanto pensa ele próprio cria o se caráter, lhe dá personalidade.

Percebemos, então, que o cenário em Maximiano Campo é muito mais do que um cenário é a revelação do seu conflito interior:

A estrada não terminava mais, não era bem uma estrada, nem caminho, parecia mais um corredor de avelós cheio de minúsculos dedos apontando para ele, para cima, para baixo, para todos os lados. Diziam que o leite daquilo cegava; dedos do diabo, dedos acusadores…

E assim o cenário revela o conflito interior, deixando de ser apenas paisagem, o registro cenográfico transformado em drama, atingindo a função de elemento narrativo ou de uma espécie muito rara de monólogo:

Viu novamente diante dos olhos todo o quadro que tentara afastar: a sua mulher morta, as filhas debruçadas sobre o corpo da mãe. Depois, quando matara o vigia do senhor do engenho. A ira do homem dono de terras e honras, que o perseguia com a polícia e a fidelidade da classe às perseguições.

O mais importante é que o autor encontrou uma bela solução técnica para que seu romance não se transforme apenas em documento geográfico, como é da natureza teórica do Movimento Regionalista, que renovou a seu modo e à sua maneira, com uma perspectiva, digamos, mais Armorial, cujo objetivo estética é a recriação, a invenção, e jamais a cópia da região. É preciso sempre estar atento a esta mudança de ponto de vista, de forma a enriquecer não somente a obra do autor, mas sobretudo a literatura universal, e não somente regional ou nacional.

É preciso considerar também “o desenvolvimento do personagem” e “a ilustração do personagem em diálogo”, tudo com a dispensa do narrador oculto ou convencional. Se no exemplo anterior o “olhar do personagem” constrói o cenário e o conflito interior, o diálogo narrativo apresenta e aprofunda o personagem na voz de outro personagem:

— Lá vai o negro Tibiu, todo enfatiotado, montado em cavalo de sela. O negro vive de contar histórias, mas é afilhado do coronel, e veio como cria da casa. Dona Anunciada fez todo o que era vontade do negro. Os cabras têm raiva do negro, mas ficam com medo dos “quindins” do coronel. Também pudera… Era Florentino, que falava com um certo despeito.

— Pudera porque, Florentino…

— O moleque vive daqui pra vila a contar todo o que é fuxico, vive a descobrir o defeito dos outros. Enche os ouvidos do coronel com invencionices e o pior é que o coronel acredita nos negros. Aquilo é uma peste pra levantar falso batendo nos peitos e jurando por todos os santos é como quem vai e já volta. Agora inventou de trazer recado para Rita de um tal de Veremundo, vaqueiro daqui. Mas não quero minha filha metida com vaqueiro. Afinal de contas ela tem o ginásio. Este negro está passando da conta. Aquilo vai assim com aquela cara de leso, quando voltar traz mais notícia do que jornal. Tanto descobre como inventa. É um caso, seu Antônio.

Além disso, percebe-se, com clareza, a estrutura dialogal que influenciou, decisivamente, a prosa do Movimento Regionalista, predominante na obra de José Lins do Rego, com destaque para o ciclo sertanejo, formado pelos romances Pedra bonita e Cangaceiros. Aliás, o próprio Maximiano reconhecia e exaltava a influência literária do autor de Menino de engenho.

Raimundo Carrero

É escritor. Autor, entre outros, de Seria uma noite sombria Minha alma é irmã de Deus. 

Rascunho