Há uma cena em O encontro na qual a protagonista, aos oito anos, caminha entediada pela casa da avó, abre a porta de um dos quartos e encara um velho amigo da família, aparentemente com o pênis para fora das calças, e um menino como que brotado deste membro, até ouvir uma voz ríspida: “Não vai sair daí?”. O menino é seu irmão mais velho, e o que ela pensou ser um pênis era na verdade seu braço nu, que se estendia para dentro do tecido da calça, de modo a formar uma ponte de carne entre ambos. Ao ver um garoto assustado que recua a mão, percebe que havia estragado tudo para cada um dos envolvidos.
Em A valsa esquecida, há um momento em que a narradora é flagrada ao beijar um homem que não seu marido. É a filha pequena deste homem que os aborda e, em seguida, ouve-se a voz de sua esposa. Do riso da menina se depreende sobretudo reconhecimento, mas também malícia, ou algo similar. E, no entanto, ao ser chamada pela mãe, ela inexplicavelmente parece julgar que tudo está bem, não obstante o que acabara de ver alguns degraus acima. Encara o pai e seu novo caso extraconjugal, sacode as mãos verticalmente e lhe deseja com sinceridade um feliz ano novo.
Duas mulheres de idades muito diferentes e maturidade muito semelhante narram cada um desses romances. Veronica, narradora de O encontro, tem 39 anos, duas filhas e um casamento estável. Gina, cujo ponto de vista guia A valsa esquecida, tem vinte e poucos, um marido jovem e um amante nem tão jovem assim. Ambas se referem a vestidos pelas grifes, especulam sobre como pensam os homens e empregam onomatopéias de modo igualmente regular. Todavia, não são tanto seus pontos opostos e em comum que dão identidade às suas narrativas, mas as situações em que se encontram.
A primeira lida com a recente morte do irmão, Liam, e a segunda tem um caso amoroso com o vizinho. Liam é apenas um dos doze irmãos da família Hegarty e o terceiro a morrer, depois de uma irmã adulta e um bebê de poucos meses, desconsiderando sete abortos espontâneos. Seán (o vizinho) é um homem mais maduro, casado há dez anos e — é sempre destacado — vive em confortável condição econômica. Um dos títulos refere-se denotativamente à reunião de uma família dividida em vários países, por ocasião de um funeral. O outro permanece obtuso ao fim do livro, podendo aludir, talvez, ao laço familiar nem sempre digno de grande atenção, inclusive no romance entre uma jovem e a filha de seu namorado.
Veronica descreve seu processo de escrita: durante toda madrugada, alternado com a limpeza da casa e uma garrafa inteira de bebida. Cada capítulo não intitulado, ainda que trate, em sua maioria, de acontecimentos distantes, é parte de uma narrativa em curso. Gina emprega um relato linear, não propriamente escrito, de um presente a que só chega ao fim da narrativa e ao qual faz, a todo tempo, referências, evidenciando a que desfecho se encaminha. Sua família não é grande e, na maior parte do tempo, está mais preocupada com vizinhos e amigos. Ora titubeia em relação a certos incidentes, mas jamais alude a algo que não tenha, de fato, acontecido — ao passo que Veronica refere-se a um impulso de testemunhar e detidamente se debruça sobre acontecimentos anteriores a seu nascimento.
Em sua deposição de ossos, como chama, Veronica começa por narrar detalhada e mentirosamente como se conheceram Ada Merriman e Lamb Nugent. Sua avó sentada em uma poltrona elegante, a uns quantos metros do homem rústico ao bar. Paira algo de romântico entre os dois até que atravessa a porta outro homem, amigo do primeiro, cumprimenta Ada com um chapéu invisível e muda o curso de tudo o que a família viria a ser. Este homem é Charles Spillane, avô de Veronica, e seu companheiro de sempre Nugent, o amigo da família que, com Charles falecido, viria a molestar seu neto Liam.
Não há ossos ou qualquer outra metáfora para as memórias de Gina Moynihan. Seu sobrenome, aliás, é mencionado por casualidade e acentua apenas o gosto por nomes e mulheres pouco atraentes que as une. Mas se vale uma contraposição, empregaria o dinheiro. É o conforto financeiro da personagem e da própria Irlanda que com discrição permeia a narrativa por inteiro. Seu marido é o ponto de partida: “Vamos começar com Conor. Conor é fácil. Vamos dizer que ele já tenha chegado, naquela tarde”, mas sua consciência supera completamente o remorso por traí-lo no momento em que conclui: “Conor era um sonhador”, e se descarta o personagem do enredo.
Além do mais, sua prosa é sofisticada e leve, curiosamente mais apurada que a de Veronica, em sua idade e perfil mais propícios. Enquanto que de parágrafos ao mesmo tempo curtos e marcantes, as duas desfrutam:
Nem acredito que estou livre disso tudo. Simplesmente não acredito. Que tudo o que você tem de fazer é ir para cama com alguém e ser flagrada e nunca mais tem de ver os parentes [do marido] de novo. Nunca. Pffft! Fim. É a coisa mais próxima de magia que já encontrei.
Pode-se pensar que existe algo leve na morte: nossas vidas nos parecem às vezes tão pesadas, mas a depressão que a cabeça de Charlie fazia no travesseiro era viva e profunda.
Um nível abaixo
O encontro alterna passado e presente, histórias próprias e alheias, de gerações anteriores e posteriores. A complexidade de A valsa esquecida fica por conta do que pode parecer suplementar: os nomes dos capítulos homônimos a canções mais e menos conhecidas, de Leonard Cohen, Shirley Bassey, Bob Dylan, 10cc, Ray Conniff, The Platters e outros treze, de modo a formar uma trilha sonora que poucos leitores terão o trabalho de realmente ouvir. O incidente entre Lamb e Liam é, como diversos episódios do romance, narrado de uma forma e depois de outra e, talvez, ainda uma terceira — no quarto, na garagem… —, à proporção que Veronica, sem qualquer tom fantasioso ou insano, decide mudar os fatos de sua memória ou imaginação, despreocupada em justificar suas escolhas. Para além do exemplificado, compartilham de camadas de leituras acessíveis à medida que se conhece de maneira mais profunda a cultura irlandesa. O que pode passar despercebido em leituras ingênuas, uma vez que escape a ironia do adjetivo “irlandês” tão empregado por ambas as narradoras, como fossem estrangeiras.
Aliás, duas Irlandas que não se encontram são o ponto mais sensível de irmandade entre os romances. O primeiro, em suas reordenações, estuda as relações entre o que se idealiza do país — até mesmo por seus habitantes — e o que, em verdade, existe, ou, pelo menos, como pode se entrever o que existe. O segundo, sempre sutilmente, revela uma Irlanda cujo território não basta a seus moradores, cidadãos da Europa, pouco familiarizados com a língua “nativa”, ao contrário do capitalismo globalizado, do botox e das estratégias do mercado imobiliário.
Outra semelhança a destacar é a lucidez inverossimilhantemente idêntica das duas, que abona tanto o trato do tema mais fútil quanto a suposta falta na criação de personagens diferentes. Inseridas em uma obra sempre comparada às tradições mais clássicas da ficção, suas vozes sustentam a rara qualidade de se assemelhar às de romances de costumes, sem, em instante algum, deixar de ser original.
Se a saga dos Hegartys, à semelhança do monólogo de Moynihan, possuísse apenas uma dimensão ficcional e não conciliasse seus diversos episódios ao processo de sua escrita, é provável que fosse um livro muito menos convincente. No entanto, o que se alcança não diz qualquer respeito à metalinguagem, mas, muito pelo contrário, é uma belíssima apreensão do que há de humano não propriamente na escrita, porém em algo menos sólido, que transita entre o testemunho, a imaginação e o julgamento.
O monólogo em questão, por outro lado, executa-se com precisão por — como já sugere o título — elevar um material simples a algo de relevância artística. A sucessão de fatos de pouco interesse — um início de relacionamento adúltero, dois divórcios lentos, uma transição de casa e rotina e um assentamento de uma nova monotonia, com o homem que, há pouco, embaralhara toda sua vida e então se torna a companhia costumeira, mas, sobretudo, com a filha deste homem, até o momento um pouco afastada da equação — serve de prova de que sensibilidade que se expressa de formas opostas no primeiro livro é também capaz de se deter em algo muito menos propenso à ficção. Uma temática — porque, lembre-se, o principal se encontra entre Gina e esta filha, já adolescente, com quem termina comprando maquiagem ao fim do livro — que alude a todas as temáticas de pouco peso estético e potencial estéril para metáforas.
Quanto a julgamentos, Veronica executa — ou é executada — de modo notável um romance que reduz os muitos prêmios literários recebidos a meros detalhes. Gina, por provar que o ponto de partida mais adverso pode ser também o mais frutífero, apesar da precisão e da linguagem virtuosística, não faz frente a seu predecessor. Ao passo que a escolha temática de Veronica é previsível e tradicional, seu sistema surpreende pela persuasão que atinge com uma estrutura em parte límpida e em parte obscura. Se A valsa esquecida investe na delicadeza e na modéstia, nem mesmo sob tal perspectiva obtém nível tão alto, e que isto se deva a este ou aquele motivo não fica evidente, precisamente pela qualidade que não deixa de ter. Ao olhar a obra como um todo, é grande mérito que se transite entre duas instâncias tão opostas com tamanha desenvoltura, mas contrapor uma a outra leva a uma só sentença.
Em Veronica se enxerga qualidades como o estoicismo de J. M. Coetzee articulado com mais graça e espontaneidade. Diante disso, Gina se apequena em uma bela voz que, em certa proporção, é apenas artifício para sustentar uma construção menos esmerada e relevante. Fugindo sempre de emoções mais derramadas, tem-se aqui o comedimento e amenidade. Mas o primeiro edifica uma obra literária das mais significativas dos últimos anos e o segundo mais um livro interessante e bem escrito a constar na bibliografia ainda curta de Anne Enright.