No dia 4 de outubro, o projeto Paiol Literário — promovido pelo Rascunho, em parceria com o Sesi Paraná — recebeu o escritor XICO SÁ. Nascido no Cariri (CE), em 1962, Xico Sá começou a carreira como jornalista no Recife, atuou como repórter investigativo e publicou livros de contos e crônicas, como Chabadabadá (2010) e Modos de macho & modinhas de fêmea (2003). Atualmente vivendo no Rio de Janeiro (RJ), é cronista da Folha de S. Paulo e lançou em 2012 seu primeiro romance, Big Jato. Na conversa — uma edição especial do Paiol Literário na Bienal do Livro de Pernambuco — com o escritor Rogério Pereira, Xico Sá fala da felicidade e da maldição do cronista, comenta o processo de escrita do primeiro romance, critica a indústria e o jornalismo cultural no Brasil e pede mais humor e leveza na literatura contemporânea.
• Feito de histórias
Ninguém vive sem contar ou ouvir histórias — seja de que estilo for, seja a Ilíada ou a novela das oito. Não há possibilidade de existência sem narrativa, sem a história do porteiro, do vizinho, sem viver uma outra história. É uma razão básica — como comer. Não é nem porque gostamos tanto de histórias, é porque não há outra opção. A vida já tem sua cota de angústia, o grande mal-estar de viver — com alguns momentos geniais e maravilhosos, mas se não fosse a ficção, não haveria sobrevivência. Ou a gente está inventando um canto para escapar do mal-estar do mundo, ou não há possibilidade de vida.
• Estante horizontal
Minha casa na infância nunca teve livros. E quando teve era sempre deitado, porque livro didático a gente costuma colocar assim, não de pé. Então, todas as histórias vinham pela oralidade. Eu tinha um avô muito contador de histórias. No Cariri, a tradição do cordel é fortíssima, então eu sabia de cor o Romance do pavão misterioso, aqueles romances que reproduziam o mundo dos trovadores franceses, da Idade Média. Tem cordel no Nordeste para qualquer grande história do mundo. Então, a minha formação foi essa. O livro é um acontecimento da escola. Dei sorte de ter um professor que me dava dois tipos de livro: um para ler naquele momento e outro para guardar. E o cara me deu Os frutos da terra, do André Gide. Eu, com seis anos, “que diabo é isso?”. Guardei o livro. Até perdi nas mudanças, mas depois comprei para entender por que diabos tinha recebido aquele livro de presente. Então, dei sorte com esse professor, com os encontros, com a escola. Os livros que me pegaram foram os do Graciliano Ramos, mas antes passei por Monteiro Lobato, José Mauro de Vasconcelos, os cronistas. Mas a idéia de livro é da escola em diante. O ambiente era uma casa sem nenhum livro, como eram todas as casas na região onde eu nasci.
• Silêncio e introspecção
Às vezes, alguém contando, fazendo narrativa oral era tão ligeiro que a gente entrava na aventura mas não dava tempo de inventar a nossa história em cima daquela história. E era uma região de muito barulho — o Cariri é muito barulhento, todo mundo fala ao mesmo tempo, uma babel maluca, todo mundo contando uma história. Então, [o contato com os livros] foi a invenção do silêncio: agora estou sozinho, tenho que imaginar essa história. O livro era um silêncio absurdo em relação àquele mundo, era uma fuga do barulho que era o lugar onde nasci. Lembrava solidão, retiro, você e você mesmo. Os primeiros livros foram nesse pacto: sair daquele barulho, de alguém estar sempre contando uma história, e se deparar com uma coisa silenciosa e entrar naquela história sozinho. Meu avô dizia: “Hoje vou ler para vocês o Romance do pavão misterioso”. Aí pegava o cordel do José Camelo e começava, ou qualquer cordel de Leandro Gomes de Barro, que é um clássico também. Mas a recepção era muito coletiva, eram quinze meninos ouvindo aquilo, tirando onda, cutucando, peidando — o que dispersava a audiência. Então, a narrativa oral era sempre muito barulhenta, muita gente, muito agoniado, num certo sentido. E quando eu entrei no livro, tinha todas as histórias do mundo, só que era eu e o silêncio, o que era muito confortável. Era sensacional não estar no meio daquela confusão toda para ouvir, ler uma história.
• Comoção e assombro
Hoje, procuro comoção. Não precisa ser o livro todo nem uma página inteira, mas um parágrafo que eu diga: “Caceta, que diabo é isso?”. Gosto de ler os contemporâneos, os antigos. Gosto muito de entrar na livraria, pegar metade de um livro, metade de outro, todos os que foram lançados naquele mês — em busca de uma comoção, de um assombro. É difícil, mas a gente encontra. E quando isso acontece, é uma razão para estar por aqui. Então, fico buscando esses parágrafos — ou essas linhas, ou essas frases. Livro nenhum tem a obrigação de ser bom por inteiro, nenhum autor tem a obrigação de ser virtuoso em cento e tantas páginas. Tem a obrigação de comover em uma linha. Se tem uma frase boa, está valendo. Por isso que às vezes eu nem leio por inteiro, procuro pelo meio, pelo fim, mas em busca dessa comoção.
• Vida acima da obra
Eu mais ando e falo do que escrevo. Bebo muito e escrevo socialmente… É um pouco a minha biografia. Faço o que o autor tem que fazer: defender seu livro, divulgar sua plataforma política de existência. Faço todas as feiras: só numa semana eu estava em Santos, na Tarrafa Literária; ontem, em São Luís, na FeliS; e hoje, aqui. Gosto de fazer essa rota cigana da literatura. E sou favorecido por não respeitar muito a literatura, não ter uma relação de solenidade e de disciplina: se der, vai ser legal fazer bons livros, mas se não der, melhor ainda, porque terei vivido melhor. Não me dou a obrigação — principalmente depois que fui envelhecendo — do grande livro; me dou a obrigação da grande vida. E às vezes a literatura atrapalha muito. Tem gente que leva a sério demais e acaba perdendo o rumo da existência por conta da obsessão da obra-prima. Tenho essa irresponsabilidade que me favorece, por não perseguir uma grande história, mas tentar contar várias. Talvez seja um sinal de que desisti da obra-prima, mas prefiro achar que é um sinal de que optei por outro canto, por viver o que se pode chamar de a bela vida — ou tentar imitar o que se convencionou achar o que é uma bela vida.
• Cadê o humor?
É riquíssima [a produção literária brasileira contemporânea]. Há muito resmungo: “Ah, tem muita besteira”. Tem também, mas eu acho muito rica, variada, do país inteiro — embora a gente conheça só seis, dez nomes, que são repetidos nos grandes jornais. Você vai a São Luís e encontra bons autores locais, com variados estilos, preferências, repertórios. O que eu sinto falta — lembrando um ensaio do José Paulo Paes — é de um pouco de literatura de entretenimento. A gente ainda é muito sério, muito literário, de forma exagerada. Esse ensaio passa por vários países e mostra que tem o escritor mais literário e tem literatura de entretenimento — você vê fartura das duas coisas no mundo inteiro. E aqui, por querer dar mais importância à literatura, por não ter uma produção importante em relação ao mundo, a gente quer ser mais literário. Mas faríamos uma coisa infinitamente melhor se fosse mais escrachado. Às vezes você pega meninos jovens com frases que parecem… Shakespeare. E podia esse menino fazer uma esculhambaçãozinha. É muito ourivesaria. Falta um efeito mais Oswald de Andrade, uma coisa meio 1922. A gente sempre é a Geração de 45, nunca a de 22. Pô, a gente mora num país de um humor absurdo, e quase nunca vemos esse humor na literatura. Façam-nos rir mais.
• Literatice
Big Jato ainda é muito chato. Se pudesse, eu raspava a literatura e o tornava mais natural, de forma que o leitor não sentisse que tem um escritor ali. O grande livro é quando o leitor não vê o escritor. Pega o Philip Roth: não existe um escritor por trás daquilo. É uma grande narrativa, e ele não precisa se exibir — também, depois de cinqüenta livros e um sucesso da porra, é fácil… Quando consegue ser menos literário e ninguém percebe que tem um escritor por trás do livro, a gente alcança nosso melhor momento. Eu amava a metalinguagem nos livros, aquela coisa do Machado [de Assis] — “meu caro leitor”, “os cem leitores desse livro”. Mas hoje, acho que quanto mais tirar esse negócio e o leitor não perceber o que tem ali, você é um autor melhor. É uma impressão muito nova para mim mesmo, porque eu era totalmente favorável à gracinha da metalinguagem, ao escritor que puxa uma cadeira para o leitor. Sou favorável a isso no mundo da crônica — tem que ficar restrito a ele. Não escreveria mais Big Jato da forma como escrevi. Como era o meu primeiro romance, talvez eu quisesse mostrar que sou um romancista, que li uma coisa, que sou influenciado. Mas uma vez quebrado isso, acho que conseguiria fazer uma coisa mais Reinaldo Moraes. Meu sonho é ser Reinaldo Moraes.
• Na lixeira
Mudaria tudo, porque você manda para a editora pela última vez e começa o pesadelo: podia ter melhorado aqui, podia ter melhorado ali. Reescreveria inteiro, mudaria quase tudo: forma, o final. Teria outro entendimento do livro. Mas não sofro com isso porque não releio, a não ser num evento, quando tenho que ler um trecho. Joguei muita coisa fora que recuperaria agora. O livro tem cento e poucas páginas, mas escrevi umas quatrocentas, quinhentas. E quando tenho que ler algum trecho, lembro do que joguei fora, do outro romance que tinha dentro dele. Mas é loucura do escritor achar que era melhor a parte que foi jogada fora.
• Maldição do cronista
Eu tinha uma história antiga de cronista — mil anos como tal, um nome de certa forma consolidado, me chamavam para os lugares como cronista, o leitor me imagina e eu também me imagino assim. Havia um temor muito grande da minha parte de estar sendo apenas cronista também no romance. E havia a vontade de matar a maldição do cronista: o cara que consolida o nome como cronista no Brasil normalmente não faz nenhum romance, e quando faz, ninguém cita. Ninguém cita os de Otto Lara Resende, e o cara foi um puta romancista também. Vou fazer novos romances, mas não mais com aquela fome juvenil — embora aos cinqüenta — de dizer “sou também romancista”, querendo me inscrever como escritor, por conta do vira-latismo da crônica no Brasil. É o gênero mais lido, mas é o mais desimportante. Quantos cronistas foram para Frankfurt? É o que o meu porteiro lê, mas não tem respaldo na formação literária brasileira, não é considerado na hora de se decidir algo mais sério na nossa literatura. Big Jato me encorajou a ser mais cronista, na verdade: já que mostrei que posso escrever um romance, matei essa vontade e agora posso ser mesmo cronista, e vez por outra escrever um romance.
• Livro de verdade
Era um bocado disso [escrever um romance em busca de maior reconhecimento como escritor]. A cada livro de crônica que você lança, do parente ao teu vizinho e ao leitor, se diz: “E o livro mesmo, quando vai sair?”. Esse livro [Big Jato] foi para resolver certa queixa dos parentes. E já que o lancei, vou me permitir viver da minha vagabundagem eterna de cronista. Estou mais leve… Era um pouco de cobrança de mim mesmo, muito dos meus amigos que são romancistas, feito Paulo Scott, Joca Terron, Ronaldo Bressane, Marçal Aquino. Ali, na cerveja, os caras falavam: “Pô, pára dessa preguiça, escreve um romance”. Porque eu ficava só contando as histórias e nunca botava no papel. Então, é resultado de um bocado de coisas: duma cobrança minha, claro; do meu tio, que ia aos lançamentos e perguntava quando sairia “o livro”; era eu querendo me inscrever na literatura, por conta do desrespeito ao cronista. E eu já tinha essa história na cabeça. Tinha escrito um conto meio tacanho sobre ela e o retomei.
• Barraca
Rubem Braga fala que o romancista constrói uma casa, vai morar nela e é uma vida, e o cronista arma a barraca, desarma, vai embora, arruma outro canto — e cada dia é uma história. Gosto de resolver a parada no dia, não deixar nada dormindo e ter que retomar — o que também é um vício do jornalismo. Tenho necessidade, por conta do hábito e de ganhar a vida com isso, de ter um assunto e escrever sobre ele naquele dia. Se pudesse escolher entre isso e uma longa construção de um castelo, eu escolheria a barraca: montar, desmontar, montar, desmontar e matar a vida no dia. Mas esse livro foi um processo muito longo, e aprendi com ele. Escrevi muito rápido, mas o processo inteiro foi de oito anos, desde o conto que deixei guardado. Estou escrevendo outro romance agora. Mas sou tão cronista que o romance é uma coisa encostada, algo que vem depois de tudo. Ainda não tenho a disciplina de romancista.
• Esquizofrenia
Eu me identifico como vagabundo. Não sei direito o meu lugar: tento ser escritor, aí capricho um pouquinho; aí, tento ser vagabundo e capricho um pouquinho… É muito razoável que não me tenham como escritor, dou muito motivo para isso. Chateia como chateia uma derrota do meu time. Tem dias que você pega sua antologia de ressentimentos e diz: “Pô, mas não me vêem como isso…”. Tenho uma necessidade louca de mostrar que sou escritor; mesmo numa crônica vagabunda tento provar isso. Acabo sendo um bocado de coisas — um cara que vai para a televisão, que escreve crônica sobre futebol… Tenho uma esquizofrenia no modo de estar no mundo, uma pressa. Estou fazendo um romance, mas não me agüento sem um panfleto diário — seja na crônica, seja um libelo qualquer. Não tenho a disciplina para ser só escritor.
• Romance
[Big Jato] É muito autobiográfico, mas uma autobiografia muito adulterada. Quando veio a ficha catalográfica, estava só como “memórias autobiográficas”. Tomei um susto do cão, porque aí eu estaria mentindo para a humanidade inteira. Afinal, não é inteiramente memória autobiográfica. E eu precisava escrever um romance. Aí, emendamos e virou também “romance brasileiro”. Mas tinha uma preocupação: “ele está apenas contando uma história que viveu no Cariri”. O exercício não foi de apenas contar uma história que eu vivi, foi de ficção pura. A forma como conto é de ficção. Os elementos são da minha vida, o cenário — e talvez se escreva minimamente melhor sobre o que se conhece. Eu temia que ficasse parecendo só “ah, é a vida do cara, a infância no sertão”. Quem entendeu foi a minha família: ela tomou como um grande romance, porque não se via em quase nada. Vêem que aconteceu lá, mas não obrigatoriamente com eles. Então, eles entenderam que era um delírio sobre a minha vida — que era um romance.
• Mal-estar
Uma leitora disse uma coisa muito bacana: “Eu sou o velho do seu livro”. Uma menina de vinte e poucos anos, agradável, linda: “Eu sou aquele velho, não quero falar, só resmungo”. Você conta uma história achando que está dizendo uma coisa, e o mais sensacional é quando é lido de maneira totalmente enviesada, como essa menina fez. Ela entendeu que eu não estava falando só sobre o meu pai, mas sobre um jeito de estar no mundo, de não querer comunicar, de só querer resmungar. E se identificou com esse mal-estar. O que gosto mais no livro — a verdade é que não percebi tanto durante a escrita, senão teria estragado, colocando de forma mais forte — é um fundo existencialista, como quando o cara diz que não sabe como entrar no dia, que é igual a entrar numa roupa mal cortada. Desse fundo eu gosto hoje. Mas fui avisado pelos leitores, que gostam muito desse mal-estar que o livro tem, e não só do humor — que tem também, obviamente.
• Escritor anistiado
Tenho a imagem muito vagabunda. Sou muito esculhambado, me auto-esculhambo. Então é mais difícil provar que sou um escritor do que muita gente. Mas fui eu que criei essa imagem, então, como diz minha mãe: “Ah, negão, te vira. Tu que inventou esse jeito de ser no mundo, então, te garanta”. Teve uma crítica do Raimundo Carrero que eu disse pronto, está cumprida a missão. Por causa do entendimento que ele teve do livro, da maneira como ele leu: como se fosse um romance picaresco, a divisão de capítulos que ele falou que lembrava Graciliano Ramos e era pura influência de Graciliano. O cara fez uma leitura generosa e muito bonita, mas o que me serviu não foi nem falar bem do livro, mas ter entendido o que eu quis dizer, a minha voz de escritor. O velho cronista sentiu-se anistiado e salvo naquela hora. Depois, os leitores: a menina em São Luís que veio dizer do velho e que conseguiu entrar no mundo do livro. Essas duas coisas foram muito importantes.
• Prateleira regional
A gente que é do Nordeste sofre uma maldição muito pesada: qualquer coisa feita no Nordeste, apenas porque a paisagem é o sertão, é colocada na prateleira do regional. Isso vale para música, que vira world music, mesmo sendo rock’n’roll. É uma maldição que o mercado quer pregar na sua testa para o resto da vida. Então, claro que você acha que vão tomar [seu trabalho] como mais uma coisa regional. Como escrevi já velho, não tive essa preocupação. Mas em coisas anteriores, às vezes, tinha a preocupação de ser mais universal, só para dar uma resposta de que não obrigatoriamente uma coisa nordestina ou sertaneja é só de lá, mas é algo universal. O que é uma besteira. Eu estava esquecendo a lição número um de Tolstói, de que quanto mais você fala do seu buraco, do seu beco, você está falando de forma mais universal. É um erro quando a gente tenta ser universal com algum truque. No Big Jato, tinha a vantagem de que peguei um sertão de transição, que começa a receber as coisas do mundo: a máquina de sorvete, o cinema, a música dos Beatles. É um sertão já misturado com um bocado de coisas, aí acaba tendo essa conversa com um repertório mais universal, digamos. Mas ele seria universal sendo o livro mais matuto, mais guardado do universo. Acho que isso é uma coisa só de mercado, de prateleira. E da crítica brasileira, que estabeleceu que Rachel de Queirós, Graciliano Ramos, José Lins do Rego são do romance regionalista. Estão condenados ao regionalismo. Mas Angústia é o livro mais russo do Brasil. É mais russo que os russos. Por que o escritor de São Paulo não é regionalista da Moca? Ele é universal só por ser de São Paulo? Ele já nasce universal. A gente nasce regional tentando mostrar que é universal. E vai levar cinco parágrafos de porrada em qualquer crítica comparando ao mundo sertanejo, etc. É um erro monumental de enquadramento. Mas hoje acho lindo esse rótulo “regional”. É moderníssimo ser regional.
• Fuga do rótulo
Tem o rótulo, mas mudou pra cacete: Raimundo Carrero consolida uma obra morando no Recife, sendo escritor pernambucano, nordestino. Isso já quebrou, não dá para ficar nesse “mimimi”, cair no conto de coitadinho porque somos daqui. Acho uma sacanagem o enquadramento, que faz com que muitos escritores que poderiam ser mais regionais e melhores fujam e comecem a escrever uma coisa totalmente maluca, achando que estão fugindo do rótulo. O moleque poderia ambientar o romance no seu mundo, mas, com medo do diabo da prateleira do regional, com medo de ser a nova Rachel de Queirós, com medo de estar apenas reescrevendo O quinze, muda de assunto e quer ser Isaac Asimov. Aí bota o romance lá para Vênus.
• Modernidade capenga
Enquanto estiverem batendo em professor, nós não vamos sair do canto nunca. Vai ser o nosso lugar no mundo. Ou o cassetete, ou o giz ensinando alguma coisa. Não é só a solenidade literária que afasta [o leitor], a figura do escritor muito sério nunca afastou. Se o cara escreve um livro bom, pode nunca aparecer numa feira, pode ser Dalton Trevisan, ficar lá no canto dele, e as pessoas vão gostar do livro. O que afasta é a formação. O mal da história de leitura no Brasil é a escola, a maneira como a gente trata isso na escola. E o mais perigoso é que a gente já vai passar para outra etapa. Nossa modernidade é capenga. O Brasil pode dar um salto para outro canto, um canto tecnológico, sem ter passado pela leitura, pela formação de leitores. Isso é um prejuízo monumental. A gente vai ser moderno demais sem ter passado pelas lições básicas da humanidade. Se nós somos escritores e leitores mas não temos paciência para uma leitura mais demorada, mais longa, imagina quem não passou por esse processo, quem nunca sentiu prazer em ler um livro — nunca vai ter.
• Ajuda do repórter
Eu só queria ser escritor. Mas apenas Jorge Amado vivia de literatura no Brasil. É uma trajetória tradicionalíssima na literatura brasileira: ou você ganha a vida como jornalista, ou como funcionário público. Caí na redação e ela me tirou muito o tempo, a dedicação, a força para ser escritor. E demorei para retomar isso. [O jornalismo] Ajudou muito na técnica de escrever rápido. E quando vou escrever, tenho a história já construída na cabeça. Como tem certa pinta autobiográfica, Big Jato teve uma apuração depois, não do que dizia ou como era um personagem, mas de como era aquele lugar naquele tempo. Aí entrou o repórter, que me ajudou muito na recuperação do Cariri de 1974 — da paisagem, dos filmes, daquele cenário. É totalmente apuração de jornalista. E na crônica, o fato de ser repórter ajuda: o ouvido, a apuração, estar sempre perguntando — isso é muito favorável na hora de ir para a literatura.
• Reflexo
Toda a oralidade que eu falei, das histórias iniciais, está aí [em Big Jato]. O ritmo que coloco na crônica é muito da prosódia nordestina, das histórias que ouvi, não importa qual seja o assunto. E essa parte mais picaresca, ela é toda da literatura de cordel, dos anti-heróis: do João Grilo, Pedro Malazarte. Meu personagem do tio beatlemaníaco é inteiramente um anti-herói da literatura de cordel: um cara que não quer trabalhar, que gosta de ver o suor dos outros mas nunca dá um dia de serviço para ninguém. Quando vai para uma penitenciária agrícola e é condenado ao trabalho, estar preso, para ele, está ótimo, mas ter que trabalhar é um inferno. E ele está certo. Vou dizer que está errado?
• Conselho ao jovem escritor
O primeiro — e vale não só para quem quer escrever, mas para quem quer viver — é ler. Inclusive nós, escritores, esquecemos de uma lição “001”, que é ler mais. Daria um conselho muito baseado na minha trajetória: tentar ser menos sério, desacreditar um pouco de si mesmo e da literatura, e ir fazendo; e daria um conselho totalmente contra mim: seja mais disciplinado. Invejo muito a disciplina de alguns escritores: faz um livro, faz outro, tem certa coerência. Invejo por eu não ser coerente com nada — com obra, transição de um livro para outro, a própria forma de trabalhar. Nisso tenho uma inveja tremenda, principalmente dos mais jovens. Aquela velha história do Nelson Rodrigues: jovens, envelheçam; e eles podem dizer: velhos, sejam disciplinados e coerentes. Esta é uma grande lição para todo mundo.
• Os mesmos dez
O Brasil levou [para a Feira do Livro de Frankfurt] uma boa mostra do que se produz hoje. Um timaço. Está indo gente do Brasil inteiro e os caras que vão são bons escritores. Tenho críticas a uma coisa ou outra. Existe uma máquina de repetir os mesmos nomes: eles se elogiam entre si, aquilo se reproduz, a Companhia das Letras publica, a Folha reverbera, o Instituto Moreira Salles… Há uma sociedade midiática — juntando editora, jornal —, uma usina simbólica no Brasil que repete os mesmos nomes, normalmente caras que estão no Rio, em São Paulo. A própria indústria poderia ser mais criativa, oxigenar mais essas listas. As apostas são muito concentradas em poucos nomes. Às vezes é uma sociedade de negócios — uma editora é sócia do dono do papel, o outro é sócio da divulgação, o outro faz um filme baseado no livro. Existe essa usina, mas não é tão mafiosa como se imagina, é mais espontânea. Até sou beneficiado por essa repetição, por ter o nome muito exposto. Minha queixa é por quando encontro um baita autor no Maranhão e ele não está em lugar nenhum, em lista nenhuma — e nunca vai, porque está à margem. Claro, a gente critica a lista da Folha, de O Globo, do Estadão, da grande mídia — o mundo oficial da literatura —, mas é importante que aquele menino do Maranhão esteja nela para ser reconhecido, para vender mais livro, ser publicado por uma editora melhor, conseguir um contrato melhor. O que essas listas — um sub-canône feito por essas publicações — não são é democráticas, porque vendem os mesmos autores, acham que dar a capa da “Ilustrada” no sábado para um escritor desconhecido não vai ser legal, então se repete o mesmo Milton Hatoum, a mesma coisa. Não são autores ruins — são maravilhosos. Mas são os mesmos dez.
• Autor ativo
Enquanto autor, a gente não pode ficar como o torcedor do Botafogo, reclamando da vida eternamente. Tem que sair disso, ir para outro canto, inventar os nossos próprios meios de divulgação. Porque editora nenhuma defende tanto o autor como se imagina. Se eu deixar meu livro para a editora cuidar, estou lascado. Ninguém vai defendê-lo. Faz-se o release, marcam-se algumas entrevistas, faz-se uma festa — isso na primeira semana. Depois já apareceu outro autor, um norte-americano que vai vender mais que tu, e tu vai ser esquecido. Aparece um Cinqüenta tons de cinza toda semana, e eles têm que cuidar do que dá dinheiro. Então, nós temos que fazer nossos “tons de cinza”. A editora tem apostas pontuais, por época, mas também é mínimo e fica naquele tempo. É aquela velha história: teu livro passa meia hora naquele tabuleiro inicial, mas dali a quinze minutos…
• Jornalismo óbvio
O jornalismo cultural no Brasil é muito acomodado, sem reportagem. Não há uma escola nos cadernos de cultura de investigar. Isso vale também para descobrir a cantora da vez, tentar fazê-lo antes que a cadeia óbvia a reconheça. E tem a coisa da marca da editora: é óbvio que os editores dos grandes jornais, das capitais, quando chega um livro da Companhia das Letras, da Cosac, etc., automaticamente reservam um espaço para aquilo. A mente deles está tomada por aquela marca. Um mesmo livro meu — o mesmo conteúdo, escrito pelo mesmo homem —, se é publicado aqui, no Recife, pelas Edições Bagaço, que é uma boa editora, vai ser difícil ter espaço num jornal do Rio ou São Paulo, se não vem embalado por uma grande editora. O livro já nasce condenado à margem. As editoras querem publicar coisa de qualidade, mas se você já tem um nome, publica sem ter obrigatoriamente qualidade. Na Companhia ainda tem mais critério, mas numa Record eles querem só o nome, porque vendem os três mil exemplares e já está resolvido para eles. Não precisa nem ler o seu livro. É reprodução do nome e pronto. Mas o leitor gosta de saber se tem novidade em outro estado, outro lugar. Só que a coisa só chega depois que a indústria já publicou, vendeu, mandou mil releases, já empacotou o cara. Nunca chega no primeiro livro que o cara publicou por uma pequena editora. Eu tomei conhecimento do João Filho, escritor de Bom Jesus da Lapa, na Bahia, lugar improvável, fora do circuito mais literário, porque alguém me falou, publicou no blog. Isso é um papel de jornalismo cultural. Antes de ser publicado o livro, já começou a pipocar coisa dele porque alguém se interessou, ouviu, pediu material. Se o jornalismo cultural fizesse isso minimamente, a gente estaria feliz. Mas é um jornalismo viciado em receber release e então publicar. Ou esperar a chancela da indústria, das grandes editoras. Nunca de apresentar um cara. O Rascunho consegue contemplar autores do Brasil inteiro, você lê muitas vezes nomes de que nunca ouviu falar. A gente precisa desse tipo de coisa.
• Sem receitas
É um absurdo qualquer receita. Não tem receita para uma boa crônica, um bom romance, o que for. Pode ser sobre qualquer coisa, pode ser inteiramente autobiográfico e ser bom ou ruim. Importa a forma como você vai defender o assunto, discorrer sobre ele. Lembrei de João Antônio e seu Afinação da arte de chutar tampinhas, um conto/crônica espetacular sobre alguém que sai chutando tampinha no Rio de Janeiro. E se Rubem Braga tivesse ouvido os conselhos que davam aos cronistas na época, ele não seria nada. Não perseguiria uma borboleta amarela pelo centro do Rio de Janeiro e não escreveria uma de suas melhores crônicas.