Vôos livres

Tradução de Augusto de Campos para Emily Dickinson tem algo de “interpretação musical”
Emily Dickinson, autora de “Não sou ninguém”
01/05/2010

Um dos poemas selecionados por Augusto de Campos para compor a edição bilíngüe de Não sou ninguém, de Emily Dickinson, inicia-se pela estrofe:

I dwell in Possibility —
A fairer House than Prose —
More numerous of Windows —
Superior — for Doors —

Que, nas mãos de Augusto de Campos, assim ressurge:

Habito a Possibilidade —
Casa melhor que a Prosa —
De Janelas mais pródiga —
Superior — em Portas

Na língua inglesa do primeiro verso, um dos paradoxos sobre os quais se ergue a escrita dissonante de Dickinson (1830-1866): in Possibility/impossibility. Paradoxo que, de resto, projeta-se sobre o diálogo entre os versos originais e os da tradução de Campos. Em se tratando de quem se trata, parece relevante recordar que Dickinson não publicou mais que dez poemas em vida e legou uma obra vasta e controvertida, que não organizou e que foi resgatada do fundo de uma gaveta doméstica de uma cidadezinha então insignificante nos arredores de Boston. Obra cujos primeiros editores “corrigiram” discretamente e cujos “cacoetes” foram durante algum tempo considerados elementos apesar dos quais se devesse ou se pudesse apreciar sua poesia.

Não é curioso ou inconveniente que uma tradução destes versos publicada no Brasil em 1985 (e que veio a ser agraciada com o Prêmio Jabuti) trouxesse um prefácio assinado pelo native speaker Ashley Brown (University of South Carolina), que elogiava a versão proposta para a seguinte estrofe:

The Soul selects her own Society —
Then — shuts the Door —
To her divine Majority —
Present no more —

Trata-se do poema 303, da edição preparada por Thomas H. Johnson (1955), a primeira em que se respeitaram as marcas específicas da escritora, organizada depois que seu espólio foi transferido para a Universidade de Harvard, em 1950. Pois bem, em 1985, nosso prefaciador ponderava sobre a “esquisitice” dos versos (“This looks strange to the North American reader, as it must be to the Brazilian”) para considerar “very successful” a providência de criar duas orações a partir da estrofe, com eliminação dos inoportunos sinais de pontuação (“obstrusive dashes”) que, ainda segundo o prefácio, interromperiam o pensamento. A tradução comentada:

A alma escolhe a sua Sociedade
E fecha a porta.
A sua divina Maioridade
Ninguém estorva.

Em 1985, Brown talvez tivesse alguma razão em seu prefácio à edição brasileira (Emily Dickinson: uma centena de poemas. Tradução de Aíla de Oliveira Gomes. São Paulo: T.A. Queiroz, 1985). Mas a operação muito bem sucedida de eliminação dos sinais obstrutores do pensamento já não seria possível no estágio atual da recepção crítica desta poesia. Hoje equivaleria à edição de uma filmagem em que se flagrasse um andar manco ou o vôo atordoado de um pássaro em fuga que tenhamos aprendido a amar precisamente por seu uso peculiarmente expressivo do espaço. Ocorre que Dickinson, se tem alguma relevância para o leitor de hoje, a tem precisamente pelo modo como obstrui o pensamento linear e frustra expectativas de leitura, introduzindo suas rimas difíceis, eriçando sua métrica calcada nos hinos e pés de seus contemporâneos, seduzindo-nos com suas estridências e seu pensamento irreverente, egresso do centro pulsante do puritanismo norte-americano de seu tempo.

“Poesia de portfólio”
O conhecido comentário de Thomas W. Higginson quanto à impertinência de uma lição de gramática diante de uma poesia que nos rouba o ar (“After all, when a thought takes one’s breath away, a lesson on grammar seems an impertinence”) lembra um sorriso amarelo, ou uma desculpa esfarrapada. E, enfim, reafirma seu juízo de que a lição de gramática ficou mesmo faltando. Higginson, durante muitos anos interlocutor literário da reclusa aspirante a poeta, desaconselhou-a enfaticamente a realizar qualquer esforço no sentido de divulgar sua poesia. Felizmente, parece ter sido o único conselho que a discípula insubmissa seguiu. No mesmo prefácio que se fecha com a afirmação acima, e que abre uma publicação em que ele retoca em diversos pontos os versos que não compreendeu, afirma tratar-se de “poesia de portfólio”, pura expressão de uma mente, supõe-se, atormentada. Ainda que se considere que seja modernamente possível realizar alguma obra literária relevante a partir de uma situação de completa harmonia com o mundo e com a gramática, o prefácio da edição de 1955, de outro Thomas, soa infinitamente mais conseqüente e justo.

Thomas Johnson, na edição de Harvard, salienta o interesse da escritora por técnicas poéticas e, recorrendo à leitura de sua copiosa correspondência, além do estudo cuidadoso dos manuscritos, destaca o autodidatismo por meio do qual ela teria desenvolvido seus procedimentos, tateando entre experimentalismos em prosódia e a preocupação em fazer com que os recursos técnicos derivassem das imagens e sensações presentes nos poemas: o que desaguaria em uma sintaxe elíptica, ofegante, truncada e em uma pontuação irregular, além de um uso todo próprio das maiúsculas. Em especial, no modo como revolucionou a rima em poesia americana, transformando-a em fonte de dissonância pela violação das convenções românticas. Enquanto seus contemporâneos e os críticos das primeiras edições a consideraram a autora de uma obra original, mas indisciplinada, para Jonhson seu trabalho teria consistido, desde 1860, em criar um novo meio de expressão poética.

“I dwell in Possibility” é um poema em que críticos como Suzanne Juhasz divisaram uma espécie de manifesto desse desejo de poesia que tateou durante anos, arrombando portas e janelas, ampliando espaços, recolhendo-se a uma difícil interioridade que tornaria verbalmente viáveis instâncias então indizíveis. Como metapoema, formalizaria a responsabilização da voz que escreve, por seu Ofício: Isto. Estes versos. Este poema:

I dwell in Possibility —
A fairer House than Prose —
More numerous of Windows —
Superior — for Doors —
Of Chambers as the Cedars —
Impregnable of Eye —
And for an Everlasting Roof
The Gambrels of the Sky —
Of Visitors — the fairest —
For Occupation — This —
The spreading wide my narrow Hands
To gather Paradise —

Habito a Possibilidade —
Casa melhor que a Prosa —
De Janelas mais pródiga —
Superior — em Portas —
Cômodos como Cedros —
Impermeáveis ao Olho —
E por Eterno Teto
Os Dosséis do Céu —
De Visitantes — o mais justo —
Por Ofício — Isto —
Só as asas destas parcas Mãos
Para o meu Paraíso —

Talvez não seja ocioso observar a coexistência de rimas aproximativas (prose/Doors; this/paradise) e perfeitas (eye/Sky), além das oscilações entre versos contendo predominantemente três ou quatro pés iâmbicos (neste caso, teríamos a seqüência: uma sílaba não acentuada e outra acentuada — em lugar das breves e longas), sendo que os versos 11 e 12 apresentam 4 e 3 pés iâmbicos perfeitos. Nestes dois versos, em que o poema encontra sua possibilidade semântica de maior expansão, organizam-se pés nitidamente acentuados, em que se confirmam as possibilidades anunciadas de Paraíso, de harmonização. Isto aproxima a escrita dos mais altos valores, das mais altas realizações, de resto atenuadas ironicamente pelas rimas que não se completam e pelas limitações das Mãos abertas, totalmente espalmadas, ainda que estreitas.

Sem ter feito qualquer associação direta com este poema, Augusto de Campos, em sua introdução ao volume afirma, a propósito de seu específico Ofício (neste caso, a tradução):

O tradutor de poesia tem algo de um intérprete musical, daqueles que voam livres e, imprevisíveis, fazem-nos ouvir de novo, como nunca ouvíramos, a obra do compositor. Deve ser o quanto possível fiel aos significados — mais ao contexto semântico que ao texto, quando não houver troca possível sem perdas artísticas —, mas, acima de tudo, dar ao poema uma interpretação pregnante em seu idioma, corresponder aos seus achados estéticos e emocionais, supreender-se e supreender-nos de novo.

E mais abaixo:

Não tendo a pretensão de acertar sempre, reivindico essa espécie de liberdade para as minhas interpretações tradutórias. A liberdade da improvisação e do rubato. Como se. Como se o poeta tivesse de expressar-se originariamente — resolver seu enigma fundoformal — na língua de chegada. Para aspirar à esperança de que o poema originário continue original em português. Sem presumir…

O intérprete que voa livremente, pairando em pleno ar rarefeito e desfraldando a consciência das impossibilidades que acompanham seus esforços, tendo sido uma boa imagem para a tradução, apresenta-se, ainda, como uma imagem afinada com aquela por meio da qual Emily Dickinson perseguiu o Ofício da poesia. O poeta e seu intérprete afinam-se, de resto, ao longo das páginas do volume, em suas recíprocas inconveniências, em suas insolentes insubordinações. Decisivo é que, ao final, o enigma fundoformal permaneça tão eloqüente.

Não sou ninguém
Emily Dickinson
Trad.: Augusto de Campos
Unicamp
112 págs.
Emily Dickinson
Nasceu em Amherst (EUA), em 1830, e morreu na mesma cidade, em 1886. Escreveu cerca de 1.700 poemas, quase todos publicados postumamente. Filha de uma família abastada e de um pai controlador, viveu praticamente reclusa, presa a diversas excentricidades e crises depressivas. Após sua morte, aos 55 anos, causada pela doença de Bright, sua extensa obra — que Emily pediu à irmã que destruísse — ganhou status de cult.
Francine Weiss

É professora de literatura.

Rascunho