Viver é mais que narrar

Resenha de "Estranhos no aquário", de Adriana Armony
Adriana Armony, autor “Estranhos no aquário”
01/02/2013

Estranhos no aquário, de Adriana Armony, apresenta-nos uma narrativa fragmentada, costurada por uma trama dramática, mas relativamente comum. Um casal e seu filho têm suas vidas radicalmente mudadas por conta da fatalidade de um acidente de carro.

Em torno disso, várias questões temáticas são suscitadas em meio a fatos banais. Trata-se de um cotidiano plausível a qualquer família de classe média brasileira. O que garante excepcionalidadeao romance é a forma com que a construção dos personagens e a experiência com o tempo se realizam, através da linguagem poética e da narrativa multifocada. Ou seja, mais importante que os acontecimentos que se desenrolam atabalhoadamente, num clima de suspense a apreensão, próprio da dramaticidade produzida por um acaso fatídico, é a forma como se enlaçam as vozes que se levantam para enunciar os fatos e percepções de uma realidade nem sempre verossímil.

Regina Dalcastagnè, no artigo O tempo no romance brasileiro contemporâneo, avalia que “por mais que o romance contemporâneo procure se desvenciliar da organização espaço-temporal vinculada à literatura do século 19, (…) nem sempre suas personagens podem conviver com isso”.

O romance em questão vive esse paradoxo. Por um lado, a narrativa tenta “desmontar a idéia de unidade e da relação causa-efeito a partir da fragmentação, da colagem, da simultaneidade”. Isto se dá através dos diferentes pontos de vistas de personagens e narradores e de fragmentos que se sobrepõem uns aos outros em diferentes planos temporais, espaciais e temáticos. Lembremos da construção dos diversos planos da peça rodriguiana Vestido de noiva:planos da realidade, da memória e da alucinação. Procedimento, de certa forma, já observado no primeiro livro da autora, A fome de Nelson, romance que rende homenagens ao jovem Nelson Rodrigues e sua obra.

Por outro lado, ao construir personagens comuns e muito colados com uma realidade próxima do cotidiano de leitores e do nosso contexto histórico atual, um conflito se estabelece. A busca de sentidos torna-se uma obcessão recorrente ao quadro que ameaça destruir verdades absolutas consolidadas em torno dos personagens: Roberto, um médico, de formação científica, portanto, predominantemente racional, pai de Benjamim; Júlia, a mãe e esposa, uma estudiosa da filosofia de Espinosa, prestes a se titular doutora; Benjamim, um jovem cheio de sonhos e perspectivas para o futuro, agora incerto ou interrompido por seqüelas do acidente sofrido. Além deles, fazem parte da trama Maíra, a bela e sedutora namorada do rapaz, e André, amigo de ambos que se identifica: “Vim do outro lado do mundo. Do outro lado do túnel. Trago a face escura dos mal-nascidos…”.

Vidas reorganizadas
Ainda segundo Dalcastagnè, “muito longe de toda teoria sobre a realidade e nossa percepção dela, prosseguimos na vida cotidiana, criando narrativas lineares, cronologicamente estruturadas, para darmos conta de nossa presença no mundo”. É essa prática cotidiana de linearidade temporal e a obsessão pela busca de sentidos coerentes que justifiquem nossa presença no mundo que se contrapõem à escrita fragmentada que privilegia o mosaico, no qual o tempo cronológico se estilhaça e só o presente pode estabelecer algum sentido provisório, precário e parcial na sua impossibilidade de garantir verdades absolutas e identidades fixas.

A articulação entre prática cotidiana e procedimentos literários não pode acontecer sem conflitos. O estranhamento na leitura inicia-se com a história que começa pelo fim e parece reiniciar-se a cada momento. Roberto, ao ver o filho sem memória, assusta-se com o fato: “Só o presente existe, caramba!”. Reporta-se a Santo Agostinho: “O presente do passado é a memória, o presente do presente é a percepção, o presente do futuro é a expectativa”. Ben está preso em um eterno presente, já que, sem memória, pouco sabe de si e, sem expectativa, seu futuro está ameaçado pelo vazio. Em torno dele, todos passam a girar e viver também essa presentificação que, longe de contribuir para a afirmação de pressupostos anteriores, põe em xeque as trajetórias de vida dos personagens, até ali traçadas e consideradas sob controle.

Como a protagonista do filme Brilho eterno de uma mente sem lembranças, de Michel Gondry, a cada dia, para Ben, o presente se anuncia como novo, é preciso recomeçar através do esquecimento. No caso do filme, a personagem era mais feliz, o seu brilho eterno nesse presente era premiado com a parceria de um amor que vivia do desafiador esforço de reconquistá-la sempre, como se cada dia fosse o primeiro. Na narrativa cinematográfica romântica, a realidade idealizada garantia uma coexistência mais pacífica com a ficção, assim como um final feliz. Aqui, o eterno presente vivenciado pelos personagens exige mudanças, estabelece-se através do trauma de um impactante acidente.

Resta ao pai repensar ou buscar sentir, na agonia da impotência de controlar o inexorável, novas possibilidades de percepção da realidade que se apresenta, sem idealizações. A racionalidade que lhe conferia a ilusão de poder do próprio Deus, definitiva para a escolha profissional da medicina, não lhe valeu. Era assim obrigado a considerar os estudos filosóficos da mulher: “Espinosa dizia que a razão não pode dominar a emoção. Que uma emoção só pode ser ultrapassada por uma emoção maior”. Abandona, entretanto, aquela papelada, sem conseguir processar, de uma hora para outra, os novos ensinamentos. Teimosamente, recorre ainda aos velhos instrumentos. Precisa assumir o controle de Senhor da situação, buscar evidências de um crime que o livre da dor e onipotência da culpa. Presunção e culpa são duas faces de uma mesma moeda. Achava que como um Deus poderia ter evitado o inevitável acidente. Se estivesse presente, se não fosse descansar, livraria Lázaro da morte, livraria Ben da morte das lembranças. Era o todo poderoso para salvar pela cura com a presença e matar ou mutilar pela ausência. Era uma culpa que se revelava naquele presente, mas que o personagem carregava havia muitos anos, num passado de silêncio e de omissão.

Contudo, era preciso reconduzir o filho ao local do suposto crime. Era preciso procurar outro assassino para eximir-se da culpa, da dor que julgava ter produzido nos outros e em si mesmo. Era preciso agir, manipular, controlar sua perplexidade, dominar a lembrança que se apaga, reter os clarões da memória do filho, que ilumina repentinamente o passado e o reconduz sempre à escuridão.

Busca infindável
Os personagens, em linhas gerais, são estranhos num aquário que se encontram e passam a se conhecer ou a se buscar a partir de um acidente de percurso. Daquele estranho, seu filho, conhece alguns dons, entre eles a habilidade com as palavras e a riqueza na imaginação. Era hora de estimulá-lo a escrever, fixar como um selo, as letras no papel, cada imagem, cada sombra, para não se perderem de vez, como se pensamento e linguagem fossem da mesma natureza. “E se tudo fossem confabulações de Ben? (…) Nas confabulações, fragmentos de memória se ligam por histórias produzidas pela mente doente, as lacunas preenchidas pela imaginação”.

Quem era aquele filho agora, sem memória, sem controle dos movimentos, da própria vida? Um estranho no aquário do quarto. Um estranho no aquário do passado, esquecido como um peixe moribundo sem alimento e sem saída. Quem era aquela mulher absorvida pelas tarefas de cuidadora daquele ser dependente de sua atenção? Uma estranha no aquário daquele casamento sem contornos nítidos de um afeto tão pouco, tão ralo, tão raro. Quem era ele próprio agora? Um estranho no aquário de si mesmo, de seus próprios artifícios para fugir de seus enganos e vazios. As imagens do estranho e do aquário são recorrentes em todo texto e bem plantadas sob diversos formatos, a começar pelo título do romance. Na piscina da pousada em Búzios, Roberto, como um detetive, procura pistas: “Mas ali nunca haverá nada, e o vazio da piscina é o vazio da própria vida, a inutilidade dos seus esforços, sua existência cimentada em premissas equivocadas”.

Os estudos de Júlia sobre Espinosa acompanham-na na construção de uma personagem atormentada que se esmera em cumprir o papel de mãe devotada e intelectual competente. Pode até se utilizar dos ensinamentos filosóficos do mestre como de uma bengala. Mas para a prática de situações limites e tão concretas, as teorias, por si só, não são suficientes. Daí, podemos afirmar que não se trata de um romance de tese ou de formação. Espinosa e outras referências aparecem justamente para não provar nada, a não ser que a vida é mais complexa do que qualquer teoria, por mais óbvios ou banais que possam parecer os fatos que a sedimentam. Afinal, viver é mais que sonhar, é mais que narrar. Júlia, como os demais personagens, é também uma estranha no aquário de um quarto, no aquário de um livro, um rabisco em busca de sentidos para os desatinos da vida.

LEIA Fero cupido, conto inédito de Adriana Armony.

Estranhos no aquário
Adriana Armony
Record
208 págs.
Adriana Armony
Nasceu no Rio de Janeiro, em 1969. Doutora em Letras pela UFRJ e professora, publicou em 2005 A fome de Nelson, seu primeiro romance, e Judite no país do futuro.
Vilma Costa

É professora de literatura.

Rascunho