Uma lacuna editorial (3)

Fragmentos do diário do artista Francisco Brennand
Francisco Brennand trabalha em seu primeiro ateliê no Engenho São Francisco, em 1953
01/05/2010

Alguns meses mais tarde, madame Gabrielle Buffet-Picabia nos ofereceria a coleção inteira por um preço irrisório e, diante de nosso ar atoleimado e possivelmente descrente, afirmou possuir documentos comprobatórios de que todo aquele acervo de trabalhos do ex-marido de fato lhe pertencia, desde um acerto de contas durante a separação.

Informei-lhe da necessidade de consultar o meu pai a propósito desta oferta (seguramente vantajosa), e que aguardasse em breve as notícias. Antes de mais nada, falei com o pintor Cícero Dias, que sendo artista e habitando o país há tantos anos (e, além de tudo, ligado à nossa embaixada), poderia nos esclarecer, com precisão, sobre os preços correntes de quadros, cotação do próprio Picabia, e possíveis necessidades aduaneiras para retirar do território francês uma tão grande coleção. Cícero já conhecia a oferta e, segundo comentou, o preço era quase ridículo, dada a importância histórica de Picabia no movimento dadaísta e sua inegável qualidade de pintor, de resto, no fim de carreira. Quanto às dificuldades legais, enquadravam-se todas em dispositivos correntes de meras formalidades.

A carta foi escrita a meu pai com grande entusiasmo — talvez tenha sido este o pecado maior —, prolixa, abarrotada de detalhes sobre a excelência desses trabalhos do pintor, a sua importância pessoal na França, Suíça e Estados Unidos, chegando a afirmar que no futuro a coleção valeria mais que uma usina de açúcar. Ademais, havia a possibilidade matemática de valorização dentro de muito pouco tempo, sem levar em conta a oportunidade do câmbio favorável desde que a nossa moeda estava bem situada em relação ao franco francês. Enfim, os argumentos não eram sequer meus (não sou homem de negócios e, naquela época, ainda muito menos), apenas o instinto me norteava, além do imenso desejo de ver algum dia todas aquelas telas tão estranhas incorporadas à coleção do meu pai. Não recebi resposta. Acredito que a carta deve ter despertado hilaridade, senão coisa pior.

Passados trinta dias, voltei a falar do assunto de uma maneira menos apaixonada, apenas indagando o recebimento da primeira missiva e reforçando a idéia com seus pontos fundamentais especificados, e tudo isto feito sem trair emoções, como quem apresenta uma proposta de negócios. Mesmo assim, silenciaram.

Mme. Picabia foi avisada, em tempo, da impossibilidade da transação, pelo menos não com a urgência de que ela necessitava. “É pena”, ela disse. “A coleção é magnífica, sem mencionar o seu sentido histórico, e acredito que você poderia tirar um bom partido dela, aliás, você e sua mulher.” Dizendo isso, abraçou Deborah. Curiosamente, apesar da diferença de idade e da língua, as duas mulheres, embora pouco tenham se encontrado em todo esse período, se entendiam muitíssimo bem e poder-se-ia mesmo pensar numa antiga amizade. Gabrielle era poeta e, igualmente a Picabia, participou dos momentos heróicos do movimento Dadá; e quanto a Deborah, secretamente escondia os seus futuros poemas no fundo dos seus olhos claros. Ela já escrevia versos de há muito, e se eu não fosse tão obstruído pelo crescente narcisismo que me dominava, poderia vislumbrar aqui e ali, nas suas inocentes cartas, um certo tom só peculiar àqueles que vêem o mundo de olhos fechados e não necessitam de explicações e de inúteis prolixidades para dizer que uma galinha pôs um ovo na eternidade.

De qualquer forma, apesar do nosso desejo e das urgentes necessidades de Mme. Picabia, a coleção não foi vendida; pelo menos permaneceu no atelier até o nosso retorno ao Brasil. É bem provável que hoje faça parte de uma grande coleção dos Estados Unidos para onde vai, por força centrífuga do dinheiro, tudo o que há de melhor e mais raro no mundo. Aliás, as minhas frustradas relações comerciais com Gabrielle se estenderam ao próprio Picabia, quando nas vésperas do Natal, fui levado ao seu atelier na Place Vendôme para conhecê-lo. Ele já estava gravemente enfermo e não mais se levantava de uma cadeira de rodas, embora o seu rosto ainda permanecesse tocado pela antiga chama anárquica de um verdadeiro dadaísta, principalmente os olhos descrentes, que sobrenadavam o absurdo.

Logo de início chamou-me a atenção o violento contraste entre o antigo e o novo atelier do pintor — o moderno, mesmo sem grande luxo, mais parecia um apartamento burguês, não sinalizando a presença de um artista —, incluindo nesta diferença a atual vivacidade natural, o espírito e a meiguice da velha Gabrielle. Madame Picabia, uma suíça de meia-idade que entre outras coisas lhe fazia também às vezes de enfermeira, perdia em todos os campos de luta no torneio da vida, com exceção apenas para a sua concupiscência, que ficou facilmente demonstrada em torno de um negócio que me foi proposto logo em seguida.

Picabia ilustrara, não há muito tempo, um magnífico livro de poemas do brasileiro Murilo Mendes e, desta edição assinada pelos dois artistas e numerada como convém a toda edição de luxo, restavam apenas alguns poucos exemplares nas mãos da atual madame Picabia. Esta, sabendo da minha existência através de Gabrielle e, supondo — tanto como Gabrielle supôs — tratar-se de um milliardaire sud-américain, muito graciosa tentou me empurrar goela a dentro dois ou mais exemplares dessa raríssima edição. Mais uma vez, em menos de um ano, o falso milionário brasileiro teria de bater em retirada e foi o que fiz, esbaforido. Com justiça, essa família afirmará que brasileiros como eu podem até falar francês, mas, seguramente, lhes falta o principal: alguns escudos no bolso.

Poderia consumir um bom tempo me ocupando de acontecimentos como este ou similares que inundam a vida de todas as criaturas, e, de um certo modo, é moeda corrente bastante valorizada que costuma abrir com facilidade todas as portas do espírito. Uma vida aventurosa ou venturosa, grandes nomes em jogo, entrevistas, hotéis de luxo, conquistas e mulheres, saraus e intimidades outras, contas bancárias, rótulos de vinhos, iguarias, malas etiquetadas com nomes de conhecidas cidades e de exóticos países do oriente. Enfim, apenas “inglesar” a vida de falsos milionários à procura de sensações… Os caçadores de aventuras, à maneira de Hemingway, ou daqueles da “geração perdida”, como Fitzgerald. Há ainda o reverso da medalha, ou seja, chafurdar no caminho do vício, no gênero Henry Miller. Verificar a extrema miséria, as mansardas, a penúria, a namorada pobre, os equívocos jamais esclarecidos com o aparelho policial, a convivência com as pulgas e com os ratos, a suprema morbidez do espírito… Nestes opostos, poder-se-ia codificar um “diário” à altura de todos os gostos (ou desgostos), e é exatamente neste sacrílego território literário que eu jamais conseguirei penetrar. A mim não acontece nada, e se acontece, o “incidente” é de imediato desmascarado, tornando-se tão absolutamente corriqueiro que não mais merece o conto… Logo em seguida, coçando a cabeça, como um dos nossos encabulados ancestrais, retorno à pintura e aos museus. Longe de pretender, com essa absurda e sempre vazia severidade, criar um tipo de jovem escoteiro adestrado no combate aos maus pensamentos e às vilanias da existência. Não, não é nada disso. Como já expliquei reiteradas vezes, apenas vivo o meu inferno sem aparatos desnecessários. Não costumo arriscar o medo e, segundo nos convence o sábio Guimarães Rosa, “o medo tem sempre o tamanho que a gente deseja”. Não pode ser maior do que a medida certa, senão ele nos mata.

Quando me predisponho a contar, jamais ultrapasso a “minitempestade”, na altura de Finisterra, ou o fogão entupido que provocou um falso incêndio no atelier de Picabia, o que me fez sair sujo e tonto à procura de ar puro, na noite gelada ou ainda o médico surrealista que trocou de mulher com o pintor Max Ernst ou, até, narrar a estranheza do episódio Lamaze (o nome até que soa bem). Como se sabe, em conjunto nada aconteceu que justificasse as narrativas que, com certeza, não chegarão a impressionar ninguém.

Voltando às minhas observações particulares, neste momento, chego ao mês de dezembro. Não preciso explicar o que era, ou tentava ser, este desatento equívoco. Aqui, sinto-me habilitado a fazer uma ou duas observações pessoais que posteriormente poderão ser de serventia àqueles em cujas mãos estes conselhos chegarem, caso venham a enfrentar um problema semelhante, ou seja, contar histórias sem pormenores influenciados pelos absurdos de um escritor famoso que costumava apelidar todos os seus personagens de K. ou de X., todos eles apátridas, sem relógio e habitando lugares estranhamente localizados entre duas fronteiras, portanto, território de ninguém, algo impossível de reconhecer. Sem denominação…

Vejam bem em que embrulho eu me encontro, só porque decidi enfeitar meu diário com “acontecidos”, quando na verdade é bem melhor deixar as coisas acontecerem sem meter-se por dentro dos acontecimentos. Propositadamente, como mencionei acima, fiz aparecer uma série de preâmbulos e acabei não narrando coisíssima alguma. Melhor assim. Mas não é mesmo possível que eu não tenha o dom de contar (ou o direito). Todos contam. Por que não perco os escrúpulos e narro o acontecimento da Rua Washington?… Assim tinha ficado estabelecido, e assim havia de cumprir-se. Qual não foi, portanto, a minha surpresa, quando, repentinamente, esse acordo entre damas e cavalheiro foi quebrado. Qual o motivo do rompimento dessa trégua? Quando foi a minha vez de falar, ou melhor, o momento exato em que me virei para encará-la face a face? Antes que eu pronunciasse uma palavra, ela disse: “Meu Deus, não o reconheci de todo. O que se passa? Por que está assim tão diferente… e este chapéu?”. Nesse momento me dei cobro de que depois de todo esse tempo decorrido, só naquela tarde eu saíra com o sobretudo diferente. Um bruto capote de pêlo de camelo, digno de um Akaki Akakief, que eu jamais tivera coragem (até aquele dia) de usar.

NOTA: Quem vem acompanhando a publicação destes fragmentos do ainda inédito Diário (1.064 páginas) de Francisco Brennand — material de excelência literária que fala por si próprio — está sabendo que se trata de dar espaço, neste jornal, a um memorialismo de alta temperatura como conteúdo e feição estilística de um escritor que é também pintor (e vice-versa). A intenção, no final, é apontar para a lacuna editorial que representam essas mais de mil páginas ainda ignoradas dos brasileiros (editorialmente falando), neste país em que vigora, ainda, a lenda dos editores-mecenas, dos “sacerdotes” do livro e da cultura, que estariam, supostamente, atentos a textos assim, a documentos humanos do calibre das anotações iniciadas ainda na juventude do artista que, no próximo mês, completará 83 anos. (FM)

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Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho