Um rato muito humano

“Firmin”, de Sam Savage, mostra que em um mundo sem sentido só a literatura salva
Sam Savage, autor de “Firmin”
01/01/2009

Anda difícil encontrar sentido na vida. O trabalho dificilmente enobrece os homens, pois ele é privado de significado; trabalha-se para garantir um salário e com o dinheiro recebido tenta-se encontrar energia para viver de verdade, fazendo o que nos traz prazer, durante o tempo em que não se está no escritório. Não parece haver limites para as crueldades que os seres humanos cometem contra si próprios, a cada dia os jornais destacam uma desgraça horrenda. As famílias, ainda que importantes para a nossa formação, parecem relegadas a um segundo plano na sociedade. Enfim, quase tudo aquilo que torne esta vida algo mais que um simples nascer-crescer-morrer parece estar de fora da ordem do dia.

Imagine agora um rato, com consciência de sua condição de rato. O que pensa ele sobre o sentido da vida? Ele tem ainda mais dúvidas que nós. Para a maior parte dos ratos, não há outro sentido na vida que não nascer-sobreviver-procriar-morrer. Mas quando se tem consciência dessa estupidez que é passar por este mundo sem construir nada que possa torná-lo melhor, a vida torna-se uma quase constante infelicidade. Claro, é um rato mais humano que a maior parte de nós, e por isso gostamos tanto dele. Mas o que faz o rato tornar-se consciente de si e o que faz suportar a vida? A literatura. É a história desse rato que conhecemos ao ler Firmin, livro de estréia do americano Sam Savage. Por conta dessas estranhas e maravilhosas possibilidades que só a literatura nos proporciona, Firmin sabe ler.

Firmin, o rato, nasce nos porões da Pembroke Books, uma livraria do centro antigo de Boston, nos Estados Unidos, em algum momento da década de 1960. A mãe de Firmin, Mama Flo, em busca de um lugar confortável para parir, encontra a livraria e logo prepara um ninho retalhando algumas páginas do maior clássico menos lido de todos os tempos, o Finnegans wake, de James Joyce. Firmin é o 13º e o mais fraco rato de sua ninhada. Desde o início, a sair em busca de comida pelas ruas do centro de Boston, já àquela época um tanto quanto decadente, ele prefere ficar na livraria e comer livros. No início, ele os come de verdade, preferindo papéis mais refinados e fáceis de mastigar que a qualidade literária. Mas logo que aprende a ler, Firmin revela-se um leitor voraz. Firmin busca na literatura um sentido para a sua existência como rato.

Rodeado de todos os livros que um leitor poderia querer em sua vida, Firmin aproveita todo o tempo possível para ler e tentar entender o que é a sua vida. No início, a literatura lhe basta. Já adulto, Firmin também explora o universo ao redor da Pembroke, e acaba entrando no Rialto Theater, um cinema que durante o dia passava os clássicos da literatura e após à meia-noite, filmes de sexo explícito. Neste filme, além do amor por Ginger Rogers, ele também se apaixona pelas atrizes pornô, a quem chama de minhas Amadas. Além da afeição pelas estrelas do cinema, Firmin se apaixona também por Norman Shine, o proprietário da Pembroke. Para Firmin, um homem que gosta tanto de livros também será capaz de entender um rato leitor. Infelizmente, a realidade nunca é tão doce quanto a ficção, e Shine tenta envenenar Firmin. O rato sobrevive, mas sua capacidade de acreditar nos seres humanos fica abalada. No entanto, sonhador que é, não desiste nunca.

Cômicas situações
É comovente apreciar os esforços de Firmin ao tentar se comunicar. Em um determinado ponto da história, Firmin encontra na Pembroke um dicionário da linguagem de sinais dos surdo-mudos. Triste, descobre que com seus bracinhos e patas consegue “dizer” apenas, de uma maneira bem clara, “adeus, zíper”. E sai em busca de alguém com quem pudesse trocar esse início de conversa, alguém com quem pudesse pelo menos estabelecer um contato. São gestos que provocam em nós um sorriso meio triste meio alegre, pois as cômicas situações revelam o quanto ele está sozinho nesse mundo.

E, sempre que está sozinho, Firmin se entrega a devaneios literários, entrando nas histórias para dançar com suas protagonistas, tirando personagens e autores melancólicos e colocando-os em situações mais otimistas, junto com personagens mais animados. Firmin usa a literatura para recriar sua vida em outros níveis em que pode ter satisfação. Enquanto Firmin envelhece, vemos a Scollay Square, endereço da Pembroke, envelhecendo, ou melhor, apodrecendo, até chegar a ponto de ser toda ela demolida para dar lugar ao novo centro de Boston. Savage usa fatos da vida real — houve uma Scollay Square que foi demolida, houve uma livraria como a Pembroke, houve um cinema como o Rialto, para dar vida a todos os outros personagens do livro e conseguir colocar Firmin como um personagem real, pelo menos aos nossos olhos. Mais uma vez, uma mágica que só a literatura consegue.

Em termos de estilo, Savage não é um inovador. Mas ele sabe muito bem que a simplicidade é muito melhor que o rebuscado e o floreado. Assim, mesmo suas citações literárias, que poderiam se tornar enfadonhas caso usadas para mostrar uma superioridade inexistente, são usadas apenas quando necessárias, nunca gratuitamente. Savage não está preocupado em demonstrar conhecimento de literatura, mas sim paixão pela literatura. Talvez esse seja um dos principais atrativos de Firmin — o de mostrar que a paixão por livros é tão boa quanto o estudo dos livros. É ao mostrar a literatura como algo que pode fazer até um rato se apaixonar que nos aproximamos de Firmin, de suas dúvidas existenciais e de nossa própria solidão nesse mundo que não parece fazer sentido. Enfim, um belo manifesto pela paixão aos livros, ou pelo menos a algo que faz sentido nesse mundo caótico.

Firmin
Sam Savage
Trad.: Bernardo Ajzenberg
Planeta
244 págs.
Sam Savage
Fez doutorado em Filosofia pela Universidade de Yale, onde foi professor. Depois de abandonar a faculdade e a filosofia, Savage trabalhou como mecânico de bicicletas, carpinteiro, pescador e tipógrafo. Foi durante sua profissão como pescador que ele desenvolveu a sua escrita. Quando havia mau tempo, Savage aproveitava para escrever. Após aposentar-se, e com 65 anos, Savage escreveu Firmin. O livro foi lançado há cerca de dois anos nos Estados Unidos, mas só no ano passado, quando a editora espanhola Seix Barral comprou os direitos da obra e a lançou em espanhol e italiano, é que o livro se tornou um sucesso.
Adriano Koehler

É jornalista. Vive em Curitiba (PR).

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