Um homem de mágoas, mas não de queixas

"O sonâmbulo amador" desliza com facilidade mesmo quando o sopro dramático ameaça desmembrar a leveza
José Luiz Passos, autor de “O sonâmbulo amador”
01/02/2013

Jurandir poderia ser um homem comum, apenas o chefe de segurança de uma empresa no interior de Pernambuco, ou, quem sabe, o namorador ardoroso de Minie. Decidiu, porém, ser um bom personagem, captado por José Luiz Passos, ao tocar fogo num caminhão da empresa em que trabalhava, em O sonâmbulo amador.

Aliás, um ótimo romance construído num solilóquio bem estruturado, que demonstra as melhores qualidades deste jovem escritor pernambucano, radicado nos Estados Unidos, especificamente na Califórnia, onde ensina e escreve — com grande competência.

O sonâmbulo amador é o seu segundo romance e mostra um ótimo avanço literário. Construído a partir de um vigoroso solilóquio do personagem, dividido em quatro cadernos, o livro mostra a força do narrador e, é claro, o artesanato do autor. O solilóquio tem sido muito confundido com o monólogo, mas são duas coisas sutilmente diferentes. O solilóquio é desarrumado e, não raras vezes, confuso. O monólogo é linear, reto, organizado. A diferença vem do fato de que, no monólogo, o narrador ou o personagem precisa do ouvido de quem escuta, por isso é mais teatral; no solilóquio, mais literário do que teatral, ou seja, escrito, a voz é mais interior e, por isso mesmo, não precisa de ouvido, daí a não-linearidade. Ambos falam para si mesmos, mas o monólogo pode ser interpretado como discurso em voz alta, enquanto o solilóquio procura um pouco mais os pensamentos interiores. Daí a diferença tão sutil que quase não se pode distinguir. A habilidade técnica do autor — e não do narrador — é que define e distingue. O bom escritor, ou o bom artesão, aparece aí, revela-se por completo. E mostra, verdadeiramente, as razões que o levaram a ser um artista.

É neste sentido que Passos apresenta a sua principal qualidade — o domínio da narrativa, ao lado da criação de personagens —, já revelada no romance anterior, agora, no entanto, aguçada. O escritor mostra, ainda, duas influências definitivas — e apenas influências, que nele são trabalhadas com personalidade — e claras, Faulkner e Hermilo Borba Filho, de quem deve ter sido leitor voraz, sobretudo de Sol das almas. Neste capítulo das influências é preciso ressaltar que nenhum escritor, por mais genial que seja, está livre delas. São como âncoras que nos sustentam pelo resto da vida. Entenda-se: já não digo na realização, mas até mesmo no planejamento, na maneira como pensa a obra.

O mundo interior de Jurandir está repleto de mágoas, mas não de queixas. Explicando, as mágoas ficam no coração, no silêncio do sangue, no escuro da alma, no escondido do espírito. A queixa, não, a queixa se mostra inteira no discurso, nos gestos, nos olhares.

Passos sabe o que está fazendo, por isso entrega tudo ao narrador, não vem para a luz, para a página muitas vezes imaculada. São palavras fortes, bem fortes, mas sem derramamentos, sem dramaticidades. A narrativa se equilibra muito bem, harmônica e bela. Outra grande característica deste autor: enfrentar fatos dramáticos sem elevá-los à categoria de tragédia. Algo decisivo: manter o tom da narrativa, mesmo quando ela parece monótona. Não há, todavia, monotonia alguma em O sonâmbulo amador, narrativa que desliza com facilidade mesmo quando o sopro dramático ameaça desmembrar a leveza.

Leveza, aliás, que se mantém viva e forte em todas as páginas. Sem esquecer a ótima personagem Madame Góes, que aparece com sua debilidade e circunstância aí pelos meados do livro, uma personagem eciana nas suas sentenças e na sua aparente ingenuidade. Penso numa mulher frágil, cercada de fortalezas. Ou, quem sabe, de aparências.

O próprio Jurandir não parece fácil de definição. Ele próprio procura definir-se nos últimos parágrafos, e Minie manifesta uma opinião, um perfil no meio da história, mas nem assim fica claro. O leitor também pode fazer sua avaliação, depois de uma leitura nem de todo agradável nem de toda tensa, mas com certeza maravilhosa. O que se pode dizer é que este é um romance sedutor.

É claro que as primeiras páginas não são fáceis de leitura, mas exigem, sem dúvida, cumplicidade e empenho do leitor. Aliás, sem cumplicidade e empenho é impossível atravessar as páginas iniciais. Um grande autor sempre exige um pouco mais do leitor.

Raimundo Carrero

É escritor. Autor, entre outros, de Seria uma noite sombria Minha alma é irmã de Deus. 

Rascunho