Um dia depois de outro dia

Conto de Luiz Paulo Faccioli
01/08/2008

Elas sempre me vêem passar, eu nunca me detive em nenhuma. Trago-as nos olhos sem contudo vê-las, espelhadas nas minhas retinas qual letreiros luminosos que ali dentro não têm outro sentido além de ser pontos de luz e cores imprecisas. Difícil dizer o que me chamou a atenção para aquela vitrine em especial. Talvez — existem coisas que um homem não gosta de confessar —, talvez, ao pôr sem querer os olhos na solitária figura, eu tenha adivinhado nela uma certa languidez. A solidão pode fazer um par de coxas de plástico parecer algo dolorosamente sensual. Talvez fosse o caso. Avaliava as formas postiças, resplandecentes à luz do refletor, quando percebi uma outra imagem sobrepondo-se a elas. Por um segundo pensei que se tratava de algum efeito decorativo, falso como a sensualidade da manequim, mas logo descobri que ela não passava do reflexo de alguém postado em carne e osso na calçada, às minhas costas. Resisti à tentação de me virar e fingi interesse pelas duas ou três peças de roupa expostas no luxuoso cenário, enquanto ia estudando no vidro os traços da aparição. As pernas eram altas, mal protegidas pelo exíguo pedaço de pano que arremedava uma saia. A blusa deixava todo o ventre à mostra e a jaqueta, quase no mesmo comprimento, não era agasalho para o frio que já começava a apertar àquela hora. Na precariedade do reflexo, as feições se diluíam a ponto de eu não distinguir nelas qualquer idade.

Quando enfim decidi voltar à caminhada, quis olhá-la de frente. Ela era tudo e também nada do que eu havia imaginado. Num óbvio contraste com a nobreza da vizinhança, parecia muito à vontade naquela calçada. Outra igual a tantas. Era também miúda, muito jovem, pernas descarnadas que pouco ou nada contribuíam a qualquer fantasia mais polpuda. Fumava e me observava com uma expressão mista de curiosidade e cansaço.

Tratei de disfarçar e segui adiante.

Nada restava de um encontro tão rápido e fortuito. Rigorosamente nada. Como um velho pesadelo, porém, a imagem se instalou na minha cabeça e não consegui mais me livrar dela. A novidade agora eram as vitrines. A todo o momento passei a ter a sensação de que o reflexo me espreitava de uma delas e desaparecia sempre quando eu tentava surpreendê-lo, uma brincadeira de esconde-esconde sem a menor graça.

Na noite seguinte e por várias outras, mudei o trajeto. Aquele pedaço de rua sempre fizera parte do meu passeio noturno diário, sem que eu tivesse alguma vez percebido a vitrine ou ela. Agora não era mais possível ignorá-las. Só havia uma solução — isso eu já sabia, embora com um certo fastio —, e desviar apenas me deu por um tempo a falsa impressão de que a mente em algum momento também se encarregaria de fazer o mesmo.

Fracassada a tentativa, resolvi enfrentá-las e refiz numa noite o antigo itinerário. Ao encontrar novamente a rua, procurei-a em vão. A ausência poderia muito bem significar um alívio, mas — eu não entendia por quê — ela agora me frustrava. Procurei a vitrine: já haviam mudado a decoração e também a manequim. Dei de ombros.

Assim como ela, muitas estão nas ruas. Algumas vão se tornando mais afoitas à medida que a noite avança, atacando sem cerimônia quem lhes cruza a frente. São como praga. Quanto maior a insistência, tanto maior meu desprezo. Mas ela sequer havia tentado. E, se houvesse, receberia em troca minha repulsa. Depois, tivesse ela insistido, mereceria um castigo. Depois… talvez eu até já tivesse me esquecido dela, ou ela nem chegasse a se tornar uma lembrança a ser perdida um dia.

Retomei assim o trajeto habitual. Após algumas noites, dei de novo com ela no mesmo endereço em que a vira da última vez. Diminuí instintivamente o passo ao me aproximar. Era ainda mais miudinha do que eu julgara, mais frágil, o cigarro sempre aceso, o olhar parado já sem o brilho da curiosidade e exibindo agora apenas cansaço. A galeria fechada, em cuja grade ela se apoiava, fazia aumentar a impressão de abandono. Seria tão fácil, tão limpo, quem sabe um pouco menos rápido dessa vez, vingança pelo tempo todo que ela me tomara sem eu querer. Não, decididamente eu não queria ter pensado nela como pensei. E, no entanto, agora que a oportunidade surgia, algo inteiramente novo me intimidava.

Com olhos que pareciam não ver, ela me reconheceu.

Até aquele momento, tudo acontecera no silêncio. É óbvio que não havia ninguém a quem eu pudesse confidenciar minha aventura, e, mesmo que houvesse, não iria comentá-la. Há sempre coisas que um homem evita contar. Tampouco ela teria como imaginar a assiduidade com que visitara meus pensamentos desde quando nos cruzamos pela primeira vez.

Não sei qual dos dois ficou mais surpreso com minha iniciativa:

O que você tem?, perguntei, e a voz saiu numa inflexão íntima o bastante para me trair.

Me viro, retrucou, olhando-me de um jeito enviesado que ainda pretendia ser sedutor mas redundava patético.

Você está doente?

Me viro, repetiu, e percebi nela uma ponta de irritação, talvez por eu não ter correspondido logo a seus artifícios ordinários.

Apesar de inédita, minha decisão foi rápida:

Vou levar você.

Não quero, ela disse, mas esse foi seu único protesto. Jogou fora o toco de cigarro e se deixou guiar sem qualquer outra reação.

Seguimos em silêncio por algum tempo, ela agarrada em meu braço, eu muito pouco à vontade naquele novo e inusitado papel, e só então me dei conta de que não havia pensado ainda no que fazer. Ela se adiantou, como se adivinhasse o que me passava pela cabeça:

Me leve pra casa.

Onde você mora?

Pra sua casa.

Nunca jamais tinha levado esse tipo de gente ao meu apartamento, e a idéia de pronto me perturbou. Mas logo concluí que não havia mesmo outra coisa a fazer e minha estranha preocupação talvez fosse apenas um laivo humanitário. Afinal, nunca fui um desapiedado. Chamaria um médico, providenciaria o que fosse preciso e depois a devolveria à rua e ao esquecimento.

Talvez em outra noite, se a encontrasse de novo, tudo poderia ser diferente.

Não foi difícil alcançar o prédio. O porteiro disfarçou o espanto sem dispensar o boa-noite, abrindo impassível a porta do elevador. Respondi com altivez:

Quando o médico chegar, faça-o subir.

Ele acedeu com a cabeça.

Não quero médico, disse ela baixinho, soprando no meu rosto um hálito ruim de bebida e cigarro. Só então descobri que era ainda mais jovem do que eu julgara e que a doença talvez não passasse de um mero pileque. Elas vivem todas se embriagando. Já estava arrependido mas não quis discutir na frente do porteiro nem dar logo o braço a torcer. Esperei entrar em casa e abri em silêncio a agenda de telefones. Quando ela percebeu o que eu fazia, desatou num choro ruidoso. Espremida no canto do sofá, entre um soluço e outro, gaguejou que precisava apenas dormir um pouco.

E voltar para a rua, emendei.

É meu trabalho.

Você é tão jovem…, e eu me estranhava dizendo aquilo.

Se fosse velha, aí é que não dava.

Detesto choro de vagabunda. O dela, exagerado, fingido, já começava a me exasperar. Se fosse na rua, eu não teria resistido.

Vou fazer um café, eu disse, tentando de outro jeito pôr fim àquele teatro.

Quero um uísque…, ela cortou, ainda fungando mas com o olhar subitamente atento às garrafas do bar improvisado na cristaleira.

Você enlouqueceu!

Vem cá.

O que é isso?

Vem…, gemeu, e de repente ela ocupava todo o sofá, as pernas meio afastadas, o olhar atrevido, de volta a figura maiúscula que eu adivinhara na vitrine. De repente me senti bêbado, a cabeça rodava, o estômago agitava-se em engulhos. Tremia ao abrir a garrafa, a lucidez já perdida quando servi duas generosas doses, estendendo a ela um dos copos.

Era eu quem de fato precisava de um gole.

Faz muito tempo?, perguntou.

Faz muito tempo o quê?, ouvia minha própria voz tremer.

Que você…

Não quero um programa.

Faz o preço.

Não quero.

Quer sim.

Olhei para a garota. Quantos anos teria? Quinze, dezesseis? Ela me espreitava numa lascívia bem crescida, enquanto as feições seguiam descaradamente denunciando sua verdadeira idade.

Vem cá, pediu mais uma vez, e eu então me aproximei um pouco, um quase nada, mas ainda o suficiente para que ela conseguisse me tocar onde queria.

Quantos anos você tem?, perguntei, quase ofegante.

Dezoito.

Não acredito.

Treze.

Suspirei fundo.

A idade que você quiser…

Não quero!

Quer sim, repetiu baixinho, e foi arregalando os olhos num fingimento de surpresa.

Você gosta de mim?

Três dias e já não havia mais cigarro, bebida, pintura barata. Também já se acalmara minha gula. Não tínhamos saído uma única vez: fora suficiente o que havia na despensa. Chegou a ser divertido improvisar uns pratos extravagantes e levá-los para comer na cama. O mimo de roupas novas e de um perfume decente viera por encomenda de uma loja da redondeza. E era mais do que um simples agrado de marido novo. Minha ausência no escritório fora avisada num telefonema rápido que nada explicava. Ela não precisara avisar ninguém. Três dias de banhos demorados, louça suja se acumulando na pia, faxineira dispensada à porta, com a diária paga em dobro para que tampouco a ela fosse necessária qualquer explicação — e eu não seria capaz de encontrar alguma. Quanto mais eu pensava, menos acreditava no que acontecia.

Se antes era preciso a todo custo apagar a imagem da vitrine, agora uma outra vinha me atormentar. Treze, quinze, dezesseis, o que importava? Não sou um pervertido, mas era uma criança quem se deixara conduzir docilmente pela minha fantasia e pendurara suas peças de baixo na intimidade do meu banheiro. O que me seduzira nela eu continuava sem saber, vendo agora aquele corpo tão pobre de carne e substância que pouco a pouco ia perdendo sua recém-nascida sensualidade. Tivesse acabado na primeira noite, talvez não teria passado de uma fraqueza que me faria baixar a cabeça por uns dias e desviar para sempre da maldita calçada. Mas eu quis que ela ficasse. Tratei em seguida de corrigir o que nela me agredia e agora tinha de conviver com sua insolente meninice, pois quanto mais limpo ia ficando seu corpo e seu jeito, tanto mais criança ela se revelava.

Aconchegada em meu peito, tinha voltado a cabeça à procura de meus olhos. E me fazia a pergunta com a ingenuidade que um adulto, por bobo e apaixonado que estivesse, jamais conseguiria imitar.

E me espreitava com olhinhos a princípio divertidos, depois curiosos, por fim confusos com minha demora em responder.

Lentamente se desvencilhou do meu abraço. A aflição dessa espera parecia ser o primeiro grande problema que ela enfrentava na vida, o que por certo não seria verdade. Em mim também já começava a pesar aquele silêncio, mas não havia como resolvê-lo. Pelo menos, não naquela hora em que tudo estava prestes a se acomodar de volta na minha cabeça.

Ela repetiu a pergunta, e cheguei a perceber na voz um fiapo de esperança de que eu não a tivesse ouvido na primeira vez:

Você gosta de mim?

Minha mudez já tinha durado demais para que eu tentasse ainda uma mentira. De certa forma ela compreendeu o que acontecia, e muito mais rápido do que eu poderia ter previsto.

Você não me quer mais?

Não é assim.

E é como, então?

Eu não sabia o que responder mas não precisei dizer nada. A vadia ressurgiu como por encanto e agora tomava as rédeas, com a mesma e odiosa desenvoltura de três dias atrás. Pulou da cama, abriu o guarda-roupas, não demorou nada e já punha a saia, a blusa, a jaqueta, a mesma vulgaridade que ela vestia quando a vi pela primeira vez e da qual eu imaginava que tivesse já se livrado.

Não havia jeito, ela continuava igual a todas.

Aonde você pensa que vai?, perguntei, sem conseguir controlar o volume da voz que o ódio fazia crescer.

Era a vez dela silenciar.

Para a rua você não volta!, gritei.

E a frase, embora reduzisse a pó os últimos dias, era apenas uma frase, inútil, sem nenhum outro efeito além de carregar minha ira.

Antes de bater a porta, ela me olhou uma vez mais e disparou, com toda a astúcia, me pondo louco:

Quando quiser de novo um programa, sabe onde me encontrar.

Elas sempre me vêem passar, inúteis, confusas, refletindo o avesso dos letreiros ou as sombras da rua que os faróis brincam de multiplicar. Talvez ela tenha hoje quinze ou dezessete, o que isso importa? Segue exposta e não me vê. Ou finge que não me vê. Às vezes ri alto, frouxa, eu então me encolho na direção do mais escuro. Sai de braço com o primeiro que pára. Sempre. Some por aí, desaparece por um tempo no enorme vão que é a cidade, volta bêbada, solta, imunda. Joga fora o cigarro, suspira fundo, se ajeita. O próximo talvez não demore, talvez nem venha. Eu espero. Tem sido assim nos últimos dois anos. Tantas vezes tenho ensaiado, para acabar sempre desistindo. Noutras, esqueço o que é preciso fazer e até mesmo o revólver que passou a andar comigo.

Não hoje, não mais.

Há coisas que um homem não pode tolerar.

Os clarões espocam na galeria, tão rápido que eu mal consigo acostumar os olhos para enxergar o que não quero. É difícil mirar. A vitrine me ajuda ou atrapalha, depende de como se vê. Nada escuto, é quase automático, o vidro se estilhaça, os pedacinhos caem perplexos à minha frente, crepitantes, um silêncio de morte vai cobrindo a noite e até o silvo do alarme custa um pouco a soar. Suspensa a vida nesse pequeno instante, vejo-a agora refletida na multidão de cacos entornados no chão, multiplicada infinitas vezes, menores e mais agudas, como se estivesse em meus olhos, ferindo minhas retinas, e um desespero súbito me dá ganas de sair catando os cacos um a um, ainda sem compreender que nunca mais será possível arrumá-los de volta outra vez.

Luiz Paulo Faccioli

É escritor. Autor de Trocando em miúdos, Estudos das teclas pretas, entre outros.

Rascunho