Um cronópio machadiano

Resenha do livro "A biblioteca no porão", de Eustáquio Gomes
Eustáquio Gomes, autor de “A biblioteca no porão”
01/05/2010

A grande literatura funde poesia e filosofia e produz textos mágicos que nos assombram pela superioridade estética e profundidade humana. Um texto tanto será mais rico quanto maior for seu potencial simbólico. Nesse sentido, encontramos nas crônicas de Eustáquio Gomes heranças genéticas de Machado de Assis, como, por exemplo, na estilização do real através da construção de uma linguagem marcada pela meticulosidade e ironia fina.

A biblioteca no porão se inicia com o texto Da minha caverna, em que o narrador explica o motivo que o levou a mudar sua biblioteca para o porão. O cronista nos dá um show de erudição, poesia e, fundamentalmente, de síntese.

Em Como começar um livro, o narrador problematiza o “começar a escrever”, de modo leve, sem perder a dramaticidade da situação. É um pequeno ensaio sobre essa arte milenar.

Na crônica O bibliomaníaco, encontramos nossas próprias mazelas relativas aos livros que por inúmeras razões adquirimos e que, por razões às vezes obscuras, não lemos.

O outro porão nos machuca pela crueza poética.

Ebenezer é uma crônica que contém um conto que poderia ser um romance. O autor narra brincando. Questiona e demonstra o valor do mote narrativo, vai fundo no lúdico e fecha o texto com uma pincelada de real. Belíssimo!

O organizador do mundo é mais uma crônica que contém um conto. A seguinte citação: “A simplicidade é o último degrau da sabedoria”, de Gibran, revela que Eustáquio Gomes deixa patente em cada linha a sua obsessão pela afinação da linguagem.

Bícaro de pato é uma espécie de crônica-resenha (a flexibilidade do gênero até isso permite) de um livro de natureza pouco resenhável, um dicionário do chamado “dialeto caipiracicabano” — na verdade o caçanje do interior paulista e mineiro —, de autoria do jornalista Cecílio Elias Netto. O cronista elogia a obra, faz citações da variante lingüística que provocam o riso, a descontração diante do espelho. Sim, espelho, porque o caipirês é parte integrante da nossa cultura. Lendo a crônica, sente-se vontade de conhecer o dicionário e se aprofundar nas belezas da fala.

Em A casa entre os juntos, o narrador conta duas versões de uma história, sendo que a segunda foi escrita por uma leitora. Essa, após ter lido a primeira versão, resolveu mudá-la de acordo com seu modo de ver o mundo. O lúdico nos textos de Eustáquio Gomes é recorrente e surpreende pela criatividade.

Na crônica O inferno é aqui mesmo, o narrador questiona a existência do inferno e a crença em Deus. Texto leve, irônico e descompromissado. Menos filosófico e poético, sem perder a força. O que o sustém é a oposição entre a superstição e a razão, uma se infiltrando na outra em diferentes personagens que são apenas pincelados.

Kafka e a menina é um texto que pertence ao universo do maravilhoso. Eustáquio inventa as histórias contadas por suas crônicas? O leitor fica abismado, desejoso de saber a origem de tanta riqueza literária. Essa crônica, em especial, é uma obra-prima que deveria ser lida por todos os estudantes brasileiros para que tenham notícia da existência do gênio Kafka e da importância da arte de ler e escrever.

A maioria das crônicas do A biblioteca no porão traz conteúdos essenciais para a formação literária do leitor. Cito aquelas que mais me instigam (e não são poucas). Lendo um autor esquecido é uma delas. Pensei em suprimi-la para dar espaço a outras, mais pungentes, mas a força com que nos é apresentado o escritor Eduardo Frieiro, é arrebatadora. Termina assim:

Fiz uma enquete entre amigos para ver se o nome de Eduardo Frieiro fazia algum sentindo para eles. Ninguém sabia quem era. Pois, se depender de mim, pensei, é que o autor d’O Cabo das Tormentas, d’O mameluco Boaventura e de Basileu, não será esquecido tão cedo. Se Eduardo Frieiro não vale uma missa, já que não acreditava nelas, vale, seguramente, duas ou três páginas de livro. Ei-las.

O cronópio e sua alma nos faz perder o fôlego: quer aprender o significado da palavra cronópio? Quer conhecer um pouco de Cortázar? E o bombeiro que telefonou para o cronista perguntando se a palavra é um neologismo? E a história dos índios mexicanos que receavam desgarrar-se de sua alma?

Eustáquio Gomes é radical em termos de concisão e clareza. Isso é evidente em seus textos. Mas, para não deixar a mínima dúvida a respeito de suas ambições de estilo, ele, por vezes, explicita-as, como nessa passagem: “Admito qualquer coisa, menos perder um leitor por falta de clareza. E penso na pessoa excelente que deve ser o senhor Moreira, por achar que vale a pena saber o que é um cronópio”.

A biblioteca no porão
Eustáquio Gomes
Papirus
155 págs.
Cida Sepulveda

É escritora e professora. Autora de Coração marginal, entre outros.

Rascunho