🔓 Traduzir é inventar o que já está lá!

Entrevista com o escritor e tradutor holandĂŞs Harrie Lemmens, autor de "Deus Ă© brasileiro"
10/09/2014

Em uma tarde chuvosa da primavera holandesa, estacionei minha bicicleta em frente a um antigo café de Amsterdã. Fui me encontrar com a cronista Júlia Abreu de Souza para fazermos uma entrevista com o escritor e tradutor holandês Harrie Lemmens.

Lemmens acaba de lançar o livro God is een Braziliaan [Deus é brasileiro] editado pela Athenaeum-Pollack&Van Gennep. A crítica holandesa tem feito resenhas positivas sobre a publicação. O escritor é casado com a portuguesa Ana Carvalho — tradutora e fotógrafa. O livro é ilustrado com suas fotos e narra a visita, em três viagens — de 2007 a 2011 a oito cidades brasileiras: Salvador (BA), Ilhéus (BA), São Paulo (SP), Curitiba (PR), Porto Alegre (RS), Rio de Janeiro (RJ), Belo Horizonte (MG), Recife (PE).

No livro, Harrie Lemmens entrevista jornalistas, escritores, políticos, conversa com vendedores, catadores, taxistas, donas de casa e muitos mais. Festeja o aniversário de João Ubaldo em Itaparica, passa o Natal com Luis Fernando Veríssimo e Moacyr Scliar.

O escritor é simpático e amável. Fala com o sotaque de Portugal e narra com entusiasmo, o seu processo de traduzir. Como tudo acontece!

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Harrie Lemmens, autor do livro God is een Braziliaan. Foto: MargĂ´ Dalla

• Nós gostaríamos que explicasse essa sua frase “traduzir é inventar o que já está lá”.
Muitas pessoas acham que traduzir é fácil, que funciona como se fosse apenas substituir a palavra escrita de uma língua para outra, mas não é bem assim. As palavras não funcionam como tal e elas quase nunca correspondem a outra palavra em um idioma diferente. Existem vários aspectos. O que eu quero dizer é que só em casos excepcionais uma palavra corresponde exatamente a outra, então isso tem que ser resolvido. Não se trata só de encontrar a palavra certa.

• Traduzir é trair?
Não, isto é uma brincadeira italiana e significa que o livro sempre perde com a tradução.

• Ou ganhar…
Não, o livro sempre perde. Talvez isso seja verdade para quem domina completamente as línguas em questão, mas não há quase ninguém que faça isso! Muitas pessoas dizem que preferem ler livros na língua original porque não gostam de traduções. Certa vez, li um artigo de um jornalista holandês que vive em Nova Iorque que fala e lê em inglês, mas mesmo assim lhe escapava alguma coisa da leitura original; então, eu sei, tenho experiência, e como holandês perco mais lendo um livro em inglês do que quando leio a tradução. Mesmo quando alguém domina o idioma, sempre surgem palavras desconhecidas e é preciso consultar o dicionário. Quanto mais rico o romance, mais importante é tentar entender a relação com a língua traduzida. Gostaria de citar um exemplo: muitas pessoas acham difícil traduzir o escritor português António Lobo Antunes, mas não acho nada difícil porque sei como entrar nos livros dele; então estou lá dentro e é fácil!

 • Mas isso é intuitivo? Como você consegue “entrar” na cabeça do escritor? Como é que isso se dá?
Eu peço a chave para abrir a porta da cabeça — isso é um dito do escritor mexicano Octavio Paz que também era tradutor. Temos que ler com os ouvidos. O ritmo das palavras e das frases é muito importante. Ajuda quando temos bons livros para traduzir. Há alguns que não ajudam em nada, só bloqueiam, mas é claro que dá para traduzir. Naturalmente, é muito mais agradável quando o livro tem melodia e ritmo. É preciso analisar porque os escritores brincam com as palavras, com o significado delas. É como um quebra-cabeça.

• Como é o seu processo quando começa a traduzir um livro? Você lê antes, faz várias versões até chegar até a última? Como é sua rotina?
Prefiro não ler o livro antes de começar a traduzi-lo. Dizem que é preciso ler o livro três vezes antes de começar, fazer anotações e depois fazer três versões, mas eu faço logo direto. Leio, ao mesmo tempo escrevo e traduzo. É um processo só, um tanto complicado, mas acontece assim.

• Você lê em voz alta?
Veja, quando eu estou traduzindo às vezes leio em voz alta, mas não literalmente. A voz alta acontece dentro da cabeça. Pronuncio tudo dentro da cabeça, porque quando a gente lê geralmente não pronuncia nada. São os olhos que passam.

• Você falou sobre o ritmo das frases, das leituras…
Gostaria de citar dois escritores. Um, é o Daniel Galera que também é tradutor. Ele fala de tudo, de detalhes, como por exemplo, dos objetos dentro do carro, do conteúdo de uma mala — tudo. O leitor precisa de tempo para ler. É como abrir uma janela lentamente, ver uma paisagem e começar a descrevê-la. Isso funciona perfeitamente porque o leitor está absorvido na narrativa deste fato e tudo começa a acontecer. Já o Michel Laub, fecha a janela e faz um diário, o diário é o que existe de mais íntimo, com frases curtas. Para ele o mais importante não é a quantidade de palavras, mas a gramática. É uma experiência espantosa. São duas maneiras de escrever completamente diferentes. Quem domina tudo é o escritor. Ele é o chefe e eu posso dizer também que um tradutor está preso, mas condenado a ser livre. Ele tem que se afastar do escrito original para encontrar a linguagem certa em uma outra língua.

• Existem casos do autor não gostar da tradução?
Isso pode acontecer, até já aconteceu. Milan Kundera, por exemplo, ficou assustado quando se mudou para a França e leu seu livro. Ele era um escritor de frases curtas e não gostava de florear nada e viu seu livro cheio de detalhes. Às vezes, o escritor tem razão.

• Vamos falar sobre o livro agora.
Foram três viagens a oito cidades. Em 2007 foi a primeira. Não existia projeto nenhum, mas eu e a Ana queríamos visitar o João Ubaldo em Itaparica e outros amigos em Salvador (BA) e Ilhéus (BA). Caminhamos muito pelas cidades e eu ia anotando coisas e fatos. Foi fantástico! Pensava em fazer algum dia, qualquer coisa com esses escritos, mas isso é difícil quando não é feito imediatamente. Em 2010, traduzi um livro famoso do século 17, que é A arte de furtar. Um clássico! Há pessoas que dizem que foi escrito pelo Padre Antonio Vieira, mas outras dizem que não. Há várias hipóteses. São espécies de crônicas com todos os tipos de vigarices existentes. Um livro divertido. Eu escrevi um posfácio. A editora gostou e perguntou se eu tinha outros textos. Enviei alguns ensaios, entrevistas e crônicas. Mais tarde, me pediram que escrevesse um livro. Tinha várias ideias para romances e outras coisas, então me lembrei da viagem de 2007 e achei que podia servir como base, como ponto de partida. Resolvi fazer mais viagens, visitar outras cidades e falar com escritores. Seria um livro sobre literatura, e o título original era, a esta altura, O Brasil em três viagens e treze escritores. Estivemos na casa de Luis Fernando Veríssimo, foi muito bom. Depois das viagens me dei conta de que o tema já estava lá. Não seria um livro só de escritores, mas sim de coisas que eu estava vendo e vivendo. Ana fazia fotografias e essas fotos ajudaram porque várias cenas eu descobri a partir dessas imagens, como a maneira das pessoas de andarem, agirem e falarem.

• Você acha que nós brasileiros somos muito diferentes dos holandeses, dos portugueses….
Sim! SĂł que aqui sempre esperam o lado exĂłtico do brasileiro. O brasileiro tem que ser exĂłtico. Recentemente, vi um programa de um estrangeiro na Praia de Copacabana com um chapĂ©u igual ao de Carmen Miranda. NĂŁo gosto desses estereĂłtipos, dessas caricaturas. Quando se pensa em Brasil, se pensa em carnaval, futebol… Acho que em vez de tentar descobrir as diferenças, seria interessante revelar os pontos em comum. Essas diferenças sĂŁo boas, senĂŁo a vida fica muito limitada. Os holandeses acham que moram em um paĂ­s ideal e que tudo Ă© perfeito; tĂŞm curiosidade em saber como as pessoas sĂŁo e como vivem em outros paĂ­ses para poder comparar.

• Os brasileiros são otimistas, alegres, vivem um dia de cada vez, quase não fazem planos para o futuro… se bem que isso tem mudado. Como você vê isso?
Quem não tem futuro, tem que criar o hoje, o agora. Tenho lido alguns artigos que dizem que povo brasileiro é o mais feliz do mundo. Quando perguntam o que vai acontecer daqui a cinco anos, o brasileiro responde que tudo estará muito melhor; mas atualmente, tenho observado um certo pessimismo por parte dos brasileiros. O fato é que existe um desprezo de algumas classes por outras classes e um desleixo dos políticos pelas questões básicas.

• Aproveitando o texto da Júlia que diz sobre o seu olhar arguto e amoroso. Eu gostei disso e gostaria de saber se esse sentimento se instalou através dos livros que traduziu?
Posso usar uma imagem para descrever isso. Sempre nos avisaram da falta de segurança no Brasil, mas só uma vez, em Porto Alegre (RS), que sentimos alguma ameaça. Mas nada aconteceu. Existe uma atitude aberta dos brasileiros. Eles têm sempre alguma história para contar. Isso é muito bonito.

• Sua viagem começou em Salvador (BA) e terminou no Recife (PE). Isso tem um motivo?
Sim! Tem um grande motivo que começa em 1624, quando os holandeses ocupam Salvador. Descrevo esta situação com as palavras do Padre Antonio Vieira, e a cena é a aproximação dos navios holandeses na Baia do Todos os Santos; e ao mesmo tempo há uma discussão com o secretário da Cia das Índias, que descreve a mesma cena a partir do barco.

• Nas escolas brasileiras, líamos um sermão do Padre Antonio Vieira alertando para a entrada dos bárbaros bátavos em Salvador (BA), e do terror e aflição que isso causou entre os fiéis. Essa história é importante para os brasileiros, mas aqui na Holanda poucos a conhecem.
Saíram muitos livros aqui na Holanda sobre a época, mas as pessoas não têm nenhuma ligação com a história. Não sabem nada e nem querem saber. Eles dão mais ênfase à história da Cia das índias Orientais, da colonização da Indonésia. Mas eu fiz isso, eu quis mostrar a história para a Holanda. Por isso o meu livro começa com os holandeses rumando para Salvador (BA). Outro motivo é que ouvi muito as pessoas falando “quem me dera se os holandeses não tivessem sido expulsos pelos portugueses”. Daí eu digo: olhe o que aconteceu no Suriname, na Indonésia… Eu escrevi um livro que dá prazer em ler. Sinto, através de comentários e críticas, que as pessoas estão gostando muito.

• A tradução do livro para o português. Qual é o plano?
Já estamos procurando editores, mas não posso adiantar nada.

• E quem seria o tradutor?
Eu não sei… tem que ser um brasileiro!

• Talvez sua mulher, Ana Carvalho…
Eu não sei se a Ana quer traduzi-lo. Ainda não falamos disso. Já aprendi que coisas com livros tem que ter paciência. Tem que entrar numa coisa concreta. Agora é imaginar como seria e como será; quando começar a ser concreto, aí podemos sonhar de outra maneira, mas espero que seja em breve. Creio que o livro será interessante para os leitores brasileiros.

• E o título God is een Braziliaan?
Verissimo escreveu isso e a editora quis usar, mas acho que quando ele for traduzido para o português não se deve usar este título. Inicialmente, eu tinha uma outra ideia que era Rua Erê (uma rua de Belo Horizonte, do livro de Cyro dos Anjos), e a Ana tem uma fotografia e queria usá-la na capa. Pensei em colocar a placa da rua e depois escrever no estilo grafite “Viva o Brasil” e o meu nome. Como se fosse um muro grafitado.

• Você se divide entre escritores do Brasil e Portugal?
Atualmente, não é assim. Tem a ver com o que surge. No momento, estou interessado na obra do Padre Antonio Vieira, que será traduzido em várias línguas e eu vou colaborar. Depois não sei o que vem por aí! Nunca sei!

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