Tradução como sobrevivência do original

Existe um paradoxo quase evidente na tradução: o original, considerado hierarquicamente superior, tem na tradução a única possibilidade de sobrevivência
01/05/2010

Existe um paradoxo quase evidente na tradução: o original, considerado hierarquicamente superior, tem na tradução a única possibilidade de sobrevivência. Não existe texto que sobreviva à corrupção dos séculos sem tradução. Parte dos textos considerados clássicos só nos chegou traduzida. Outros, mesmo havendo chegado “inteiros”, só podem ser lidos hoje em tradução. Não há escapatória. A originalidade só persiste como interpretação.

Parece ironia que o original só possa sobreviver em tradução, quando o senso comum sugere que traduzir significa, de algum modo, deturpar o texto-fonte. Mesmo considerando que qualquer leitura já é em si um tipo de tradução, nada se compara à violência da tradução propriamente dita: operação transformadora de um texto no outro de si mesmo. Daí o paradoxo: como pode um processo que violenta o texto ser sua única chance de sobrevivência? Ou melhor: como pode o original sobreviver se sua tradução não será jamais ele mesmo — nunca mais ele mesmo, em sua forma primeira?

É uma sobrevivência parcial, digamos. Não sobrevive o todo, mas parte dele. Não sobrevive o original, mas seu espectro. Ou apenas um aspecto, que se pode captar na tradução — ou que se pôde plasmar numa tradução particular, no caso do original do qual só se conhece o texto traduzido.

Não existe alternativa para o original: traduza-se ou desaparecerá para sempre. Melhor subsistir mutilado que morrer de vez? A resposta dependerá  da qualidade da tradução, que nem sempre é algo que se pode controlar.

O original resiste à tradução, quase se esforça por impedir que sua seiva se transfira a outro corpo. É só traduzido, contudo, que resiste à marcha indiferente do tempo. Tempo que transforma todo texto em tradução.

Traduzir implica encontrar o caminho da menor perda, da avaria mínima, do arranhão mais superficial. Evitar cravar fundo as unhas na carne do texto. Sulcar com delicadeza, mais alisando que arando. E mesmo assim não há palavra que sairá ilesa.

O destino de todo texto é a corrupção, mesmo que adiada esta pela tradução. Traduzir é então salvar, dar sobrevida — mesmo breve — a algo condenado ao esquecimento.

É triste admitir que o suserano passará a depender de seu vassalo, numa espécie de inversão da ordem lógica das coisas. Ordem mais democrática, talvez, que não deixa de ser subversiva.

Mas a literatura não é terreno democrático. Existem hierarquias, e a tradução padece no andar de baixo. É vassalo que conhece seu lugar, mas que também tem sua doce vingança no fim.

A natureza frágil e quebradiça do texto original determina seu destino. Quanto mais original, mais frágil e quebradiço. Não se sabe se os meios modernos de armazenamento do texto, da cultura e da memória poderão resgatar o original, dando-lhe fim mais nobre que a tradução, ou se só farão prolongar sua agonia.

A tecnologia talvez venha a possibilitar a preservação do original por mais tempo, resguardando seu ambiente social e cultural e conservando os instrumentos que permitem decodificá-lo de maneira mais imediata. Mas é algo que ainda precisa ser provado. Aguardemos alguns séculos — se não nos faltar ar.

Traduzir é resgatar, mas todo resgate tem um preço, que nem sempre é negociável. Quase nunca será sequer mensurável. Poderá ser a deturpação completa do original, por motivos diversos — da má-fé à mais santa ignorância. Na melhor das hipóteses, será a própria originalidade.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho