Tempo narrado, tempo vivido

Em trilogia de Paul Ricoeur, a narrativa está além de um gênero literário
Ilustração: Tereza Yamashita
01/12/2011

Dado que somos formados e deformados em cultura automatizada, dentro da qual prevalece o conhecimento racional, lógico e imediato de tudo, é comum esperarmos respostas objetivas para os questionamentos que nos são dados fazer. Os dotados de iniciação intelectual, ainda que mínima, sabem não ser saudável dar às reflexões um caráter de fast food; mas a doença do hábito grita mesmo nos que tentam imunizar-se, e lá vamos nós — gados atônitos no estouro da boiada — a esperar que os estudos acendam lâmpadas instantâneas ao mínimo toque no interruptor.

Mas a dinâmica do saber, em sua voluntária recusa ao dinamismo, entorta o que se pressupõe reto e rápido, e não raro saímos de um livro com mais perguntas do que no momento em que nele havíamos ingressado. Esta é uma das típicas conseqüências da leitura de livros filosóficos, sendo, por isso, conseqüência da leitura de Tempo e narrativa, do (já falecido) filósofo francês Paul Ricouer. Nem de longe o aumento das indagações significa necessariamente insucesso da obra lida. É próprio da filosofia não se fazer dardo para alvos previsíveis, e então os filósofos demonstram que o gradativo desconhecer é um importante passo rumo ao saber.

Tempo e narrativa é considerada por muitos a obra magna de Paul Ricoeur. Trata-se de uma trilogia fomentada por diversificado e rico debate intelectual, cuja tese precípua baseia-se na implicação mútua entre tempo humano e atividade narrativa. Os três volumes são assim identificados: I — A intriga e a narrativa histórica; II — A configuração do tempo na narrativa de ficção; e III — O tempo narrado. A tríade forma um vultoso tratado hermenêutico com o qual Ricoeur busca estabelecer ligações entre a narrativa de história e a narrativa de ficção, algo que figura como item primordial na ordem do dia das reflexões do romance e da historiografia contemporâneas, suscitando questões a respeito do que é real e do que é inventado e suas formas de captação e transmissão.

Parêntese do resenhista
Estamos no espaço de um jornal, e as convenções da imprensa literária determinam que as resenhas se imponham como canal mais informativo do que reflexivo acerca da obra tratada. Mas peço licença ao editor e aos leitores para desenvolver aqui um ensaio, a contemplar não apenas os volumes desta pauta. O pedido tem uma razão básica: a necessidade de trazer para este espaço um importante livro da literatura brasileira — o “romance” Em liberdade, de Silviano Santiago (explicarei as aspas mais à frente) —, o qual pode amplificar e iluminar as reflexões abertas pelo filósofo francês. Além disso, o respeitoso desrespeito às regras jornalísticas que aqui se vai efetivar tem respaldo na própria feição deste Rascunho, que resiste à ordem do enxugamento crônico da intervenção crítica e disponibiliza a seus colaboradores amplo espaço para a análise de livros.

A certa altura do primeiro tomo de Tempo e narrativa, seu autor peca gravemente por manifestar uma generalização, conseqüente de postura algo ignorante. Ao abordar a problemática diferenciação entre verossimilhança e verdade, pertencentes à narrativa ficcional e à narrativa histórica, respectivamente, diz o pensador francês:

A crítica literária não conhece essa dificuldade [de ver os termos em questão como mais aproximados do que distanciados entre si], na medida em que não leva em conta a cisão que divide o discurso narrativo em duas grandes classes. Pode então ignorar uma diferença que afeta a dimensão referencial da narrativa e limitar-se aos caracteres estruturais comuns à narrativa de ficção e à narrativa histórica.

Nas entrelinhas, Paul Ricoeur parece partilhar de uma visão estereotipada da crítica, como se ela, arcaica, estivesse num subsolo intelectual, dada a lidar apenas com fatos acabados, esquivando-se, por isso, da problematização de conceitos e realizações artísticas. A visão é distorcida e, por isso, injusta. Caso este que ora escreve este ensaio seja visto como crítico, que não seja visto como corporativista: a despeito da envergadura de seu pensamento, trabalhado em colossal e admirável empresa, o filósofo, talvez em decorrência da confiança no estereótipo, deixou de aprender com os críticos não generalizadores que a generalização costuma obstruir a reflexão. Também se deixou de aprender com a crítica inteligível o quanto a clareza e a estruturação coesa do discurso são importantes para a emissão do mesmo — sobretudo numa tese, como é a de Ricoeur, atenta para a importância da recepção do leitor —, as quais evitam o nebuloso hermetismo conceitualista de algumas passagens. (Creio que todos experimentamos uma dúvida comum: se a escrita cifrada de muitos filósofos é sinal de profundidade ou de descuido, se o texto é denso ou embolado):

Com mímesis II abre-se o reino do como se. Poderia ter dito o reino da ficção, de acordo com um uso corrente em crítica literária. Privo-me no entanto das vantagens dessa expressão totalmente apropriada à análise de mímesis II, para evitar o equívoco que o emprego do mesmo termo em duas acepções diferentes criaria: uma primeira vez, como sinônimo das configurações narrativas, uma segunda vez, como antônimo da pretensão que a narrativa histórica tem de construir uma narrativa “verídica”.

Some-se a isso o fato de o autor poupar-se de exemplos literários que poderiam ilustrar de maneira viva os pressupostos engendrados pelo livro. Considerados esses entraves à clareza (que não se mostram hegemônicos pelos três volumes nem lhes diminuem a importância e o alcance), volto, conclusivamente, a justificar o desenvolvimento do ensaio pluralizado no lugar da resenha singularizadora: colocar em diálogo teoria e prática, questão suscitada e questão efetivada, Paul Ricoeur e Silviano Santiago, para que assim o leitor sinta-se mais próximo do pensar instaurado por Tempo e narrativa.

Após o parêntese
Paul Ricouer inicia suas ruminações a partir do pensamento de Santo Agostinho acerca do tempo. Em suas Confissões, o filósofo cristão mostra-se inquieto diante da aporia em que se percebe encruzilhado: “Que é, pois, o tempo? Se ninguém me perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei”. De acordo com Ricoeur, a impossível definição conceitual dá vez ao que ele chama de “argumento cético”, o qual, aparelhado por concepção lógica, apregoa a inexistência do tempo, uma vez que não se pode arrolá-lo com as etiquetas prontas e ordinárias da convenção. O francês, então, esquadrinha: “Portanto, a pergunta fica circunscrita: como pode o tempo ser, se o passado já não é, se o futuro ainda não é e se o presente não é sempre?”, complementando mais à frente: “Como se pode medir o que não é?”. Os grifos do autor fazem referência indireta à ação de compreender e mensurar o tempo bem como à sua essência, e isso antecipa a hipótese, levantada por Tempo e narrativa, de que o ato de narrar é capaz de desempenhar tais tarefas e dar ciência acerca do ser do tempo.

Ricouer faz da encruzilhada de Santo Agostinho um cruzamento de tendências ideológicas, visto buscar em Aristóteles indícios de antítese ao pensador cristão. Enquanto este freme diante de conclusões inconclusas, como se o Deus por quem tanta chama nada escrevesse por linhas cada vez mais tortas, o discípulo de Platão, mergulhado na teorização do literário, preconiza haver no discurso trágico o triunfo da concordância sobre a discordância. Por que Ricouer congrega em suas páginas os pensadores antípodas? Porque o primeiro tece reflexões a respeito do tempo sem relacioná-lo a questões narrativas; já o segundo teoriza sobre a intriga (narrativa) isentando-se do pensar em torno da temporalidade. A mais, Agostinho envereda-se pelos sinuosos túneis da indagação, chegando à tensão paradoxal, ao passo que Aristóteles prima por uma busca racional e exata que o leva a limpar da afirmação reta qualquer possibilidade de dúvida curva. Em face disso, Paul Ricoeur toma a ambos como ponto de partida para, indicando neles o que há de limite, buscar respostas ao que ficou em aberto: “Uma das teses permanentes deste livro será a de que a especulação sobre o tempo é uma ruminação inconclusiva cuja única réplica é a atividade narrativa”.

As formulações prosseguem na direção do desdobramento do conceito de mímesis. Para o autor de Poética, a ação mimética caracteriza-se pela obra de arte que representa, ou imita, a natureza. Ricouer, entretanto, entende o termo como passível de tripartição: mímesis I, II e III. A primeira corresponde ao representar ou ao imitar de um ato mas como pré-compreensão do que é o agir humano, pois o pensador francês distingue ação (ato pensado) de movimento físico (belo exemplo da distinção está no conto O homem da multidão, de Edgar Allan Poe).

A segunda mímesis é a ficcionalização propriamente dita, isto é, a transfiguração do real operado pela obra de arte, tomando referências diretas do mundo físico e convencional para reordená-las e a elas dar original sentido. Transpondo o âmbito literário, penso ser a pintura de René Magritte tradução singular desse conceito.

mímesis III, importantíssimo item da tese de Paul Ricouer, dirige-se à recepção do leitor, sem o qual obra de arte alguma emite qualquer significado. O ato da leitura, sempre propício a pluralizar os sentidos pensados e veiculados pela obra, promove o encontro da água e da sede, sem o qual cada um dos dois é mera coisa em si e feita para nada. O somatório dos três dá ocasião a Ricoeur para reafirmar o propósito de Tempo e narrativa:

Chegou o momento de ligar os dois estudos independentes [acerca de Santo Agostinho e de Aristóteles] que precedem e pôr à prova nossa hipótese básica, qual seja, a de que existe, entre a atividade de narrar uma história e o caráter temporal da existência humana, uma correlação que não é puramente acidental, mas apresenta uma forma de necessidade transcultural. Ou seja, para dizê-lo de outra maneira: o tempo torna-se humano na medida em que está articulado de modo narrativo, e a narrativa alcança sua significação plenária quando se torna uma condição da existência temporal (Em todas as citações, os grifos são do autor).

Em diálogo
A passagem também me dá ocasião para instituir o diálogo anunciado no início do presente texto. Assunto recorrente da tese de Paul Ricouer é o encontro entre narrativa histórica e narrativa ficcional, o que ele denomina “referência cruzada”. A crítica literária atual é muito franca ao rejeitar o chamado “romance histórico”, interessado mais em demonstrar ampla gama de dados e fatos do que capacidade de subvertê-los em forma estética. Por seu turno, os autores hodiernos renegam o formato narrativo da mera crônica de hábitos cosmopolitas ou provincianos, dentro da qual a única mancha de invenção é o nome dos personagens e um ou outro episódio. Não creio que Paul Ricouer pensasse nesses gêneros ao desenvolver seus pressupostos. Obras de outra linhagem, nas quais culmina a tensão entre o ocorrido e o inventado, estão mais próximas da formulação e tradução do tempo enquanto atividade narrativa. Nessa esteira aparecem inúmeros romances, dentre os quais destaco Barco a seco (2001), de Rubens Figueiredo, O sol se põe em São Paulo (2007), de Bernardo Carvalho, e o magno Os sinos da agonia (1974), de Autran Dourado, este último a apresentar um parágrafo (sobre os personagens Malvina e Gaspar) que certamente tocaria fundo a sensibilidade de Paul Ricouer e tonificaria suas convicções:

Assim como havia em Malvina uma memória do futuro e em Gaspar uma memória do passado, pode-se dizer que havia para ele um destino do passado e para ela um destino do futuro. Embora essas palavras, assim juntas, sobretudo memória do futuro e destino do passado, possam parecer contraditórias e arbitrárias, e na verdade o são e os seus conceitos e significados se chocam e se contradizem (comumente a memória diz respeito ao passado e às coisas ausentes mas vivas, ou melhor, mortas, porque acontecidas, a matéria do destino é sempre o futuro e as coisas latentes, lívidas, ainda por acontecer), só recorrendo a uma arbitrária e contraditória aproximação, a um símile ou metáfora, poderemos entender e amar dois seres tão diferentes e tão próximos, de encontro difícil, senão impossível, a não ser pela destruição, e tudo que com eles se passou e ainda passará. Por isso sobre eles nos debruçamos, mergulhados na sua memória do futuro e no seu destino do passado, na sua memória do passado e no seu destino do futuro, e acompanhamos as suas angústias e desesperos, as suas ânsias e agonias, e assistimos ao mover do engenho acionado, e velamos e ouvimos os oráculos e pelos dois imploramos aos deuses cruéis e vingativos, impávidos ou indiferentes às nossas súplicas e ameaças inúteis. Tão acima e tão perto de nós estão os deuses.

Mas, a meu ver, o caso mais apropriado para a elucidação das teses de Paul Ricouer, especialmente às referentes à referência cruzada, fica por conta de Em liberdade (1981), obra-prima de Silviano Santiago. Trata-se de um suposto romance formulado a partir de um igualmente suposto diário de Graciliano Ramos, escrito quando este saíra da prisão em Ilha Grande, no Rio de Janeiro, na década de 30.

O relato é precedido por duas notas: uma, intitulada “nota do editor”, é assinada pelo autor; abaixo da outra, “sobre esta edição”, apõe-se apenas vaga indicação “O Editor”. Nelas apontam-se informações a respeito do contexto do encarceramento de Graciliano Ramos, de seu diário e de como ele caiu às mãos de Silviano. Tudo é absolutamente verossímil — em especial pela inclusão de dados biográficos do próprio autor de O falso mentiroso —, mas não menos absolutamente inspirador de desconfiança, pois o teor jornalístico das notas é mitigado pelo que se estampa na folha de rosto: “uma ficção de Silviano Santiago”.

O desenvolver da narrativa acentua o embate e aprofunda o debate acerca da história e da ficção — espíritos adversamente misturados num só corpo. Sendo o discurso proferido em primeira pessoa, não há uma única vírgula que desautorize a hipótese de ser o livro, de fato, um diário escrito pelo autor de Vidas secas. Além da propriedade e da minúcia dos itens biográficos arrolados, a dicção árida e cortante plasma-se na atmosfera de uma personalidade vizinha do infortúnio, com unhas encravadas na garganta e na mente:

Sei que outras visitas não aceitavam as minhas atitudes [de não se colocar como se solicitasse a piedade ou a reverência alheia]. Lá fora, reclamavam do meu orgulho de cabra nordestino. Chamavam-se de altivo, pouco acessível à solidariedade, de frio diante do calor humano dos verdadeiros companheiros. Queriam, em outras palavras, que caísse na armadilha e me tornasse o passarinho na gaiola que todos admiram pelo seu belo canto sofrido. Vinham trazer-me alpiste e água, e esperavam os gorjeios. Só faltava que furassem os meus olhos — assum preto de estimação (…). Queriam singularizar-me: colocar-me contra um canto do curral, advertir-me do extraordinário que vivenciava. Não diziam; sentia que, por dentro, deviam achar-me um felizardo por sofrer.

Mas o realíssimo relato começa a agir contra sua própria veracidade. Falando em falsete, diversos fragmentos sinalizam para um possível amálgama entre história e estória. Ao mesmo passo em que a narrativa focada em âmbito micro, abordando o universo privado da figura pública, torna mais visível o movimento do mundo e do país àquela altura do século 20, ela (a narrativa de foco diminuído) deixa o autor ainda mais à vontade para criar e preencher as lacunas deixadas pela realidade que se lhe apresenta pronta, porém incompleta. A verdade do livro está assentada sobre as mentiras do autor, e vice-versa. É o que se verifica num momento de súbito despertar de Graciliano —

Comecei a lembrar-me de coisas que ainda não tinham acontecido. Tinha a nítida impressão que o exercício era o da evocação, mas o que mentalmente via era pura profecia. Misturava-se, no mesmo quadro, a paisagem conhecida, palmilhada passo a passo, do porto de Maceió, e a ação futura de um regresso à terra natal, acompanhado de Heloísa — que, aliás, logo desapareceu.

— e em outro, de uma de suas cruas confissões:

Não tenho o que desejo. Tenho o que posso ter. É uma triste constatação para um homem da minha idade. É por isso que tenho a necessidade de mentir. Parágrafos acima disse: penso em Heloísa. A frase é mentirosa porque não corresponde à verdade de meus pensamentos. É uma frase fingida, mais digna de figurar em ficção do que em diário.

Todo esse complô recai diretamente sobre o leitor, que por todo o instante pergunta-se onde estará a parte de Graciliano e onde estará a parte de Silviano no livro, quando há o diário e quando há o romance, quem diz a verdade e quem mente, e o que posições assumem, numa obra literária, o dito real e o chamado ficcional (por isso empreguei o termo romance entre aspas na segunda parte deste ensaio, quando me referi pela primeira vez a Em liberdade). A leitura é conduzida sem qualquer item de segurança, não sendo possível repulsar ou solidarizar-se com Graciliano Ramos, aqui em efetivos papéis de personalidade da história e personagem da literatura. Num sonho, o autor de Angústia recebe um recado perfeitamente remissível ao receptor do livro: “Tome esta bengala de cego, que pode ser-lhe útil”.

Todos esses itens familiarizam-se à tripla classificação de mímesis elaborada por Ricouer. Se concordarmos com a primeira definição, de acordo com a qual mímesis vem a ser retratação e absorção compreensiva da realidade, veremos que no livro de Silviano isso se dá pela abordagem direta da vida de um homem físico e social — Graciliano Ramos. Sendo o segundo matiz mimético o da ficcionalização, Em liberdade exemplifica cabalmente o conceito na medida em que faz das informações acerca da vida do personagem um mecanismo para o desconhecimento objetivo da mesma. Como mímesis III dirige-se à ação do leitor, construindo sentido em conjunto com a obra, o livro de Silviano Santiago demonstra sua maior força, pois por meio das páginas em que a literatura entrou para redesenhar a história — ora desprezando, ora inventando fatos biográficos, e dando a eles enfoques totalmente arbitrários —, por meio dessas páginas, dizia eu, o leitor passa a conhecer o espírito de Graciliano Ramos de uma maneira como não seria imaginável pelo contato com qualquer biografia convencional.

Dessa forma, é possível e conveniente concordar com o autor de Tempo e narrativa, e acreditar que o tempo humano, mesmo que indefinível, é essencializado na medida em que o homem se põe a narrar as verdades inventadas de sua vida. Sobre isso, não se dê crédito apenas às narrativas exclusivamente destinadas ao livro, como os romances, os contos, as epopéias e demais gêneros textuais. As comunidades não corroídas pelo ácido da urbanização documentam, transfiguram e asseguram sua existência e transcendência a partir das narrativas oralizadas, as quais educam, fascinam e reúnem no mesmo canto homem, natureza e forças divinas. Volto a Ricoeur: o presente não é um tempo fixo, e sim contínua passagem; o fazer do mito é um fazer universalizante; e a invenção é um reencontro com o que é no antes, é no agora passante e/ou é em estado de por vir. Ainda com ele e com a mágica da literatura: “Seguimos, pois, o destino de um tempo prefigurado a um tempo refigurado pela mediação de um tempo configurado”.

Antes de concluir, é necessário aludir a um fenômeno interessante: a maneira como a historiografia tem buscado na literatura formas de reinventar seu discurso. Os recentes Traição, de Ronaldo Vainfas, e Domingos Sodré — um sacerdote africano, de João José Reis, demonstram como a abordagem micro-histórica tem se valido de recursos narrativos para dinamizar o texto e suprir eventuais ausências de informação sobre o universo pesquisado. O saldo é a garantia de uma leitura tão profunda quanto fluente, em cujo processo o leitor sai da mera posição de receptor para também assumir as vezes de intérprete. Também aqui se manifestam os conceitos de referência cruzada e de tripla mímesis.

Noutra ponta, significativa parcela de literatos, por exagero interpretativo (no tocante à condenação de estudos literários marcados por determinismo historicista) ou por pura alienação, rechaçam peremptoriamente a presença do historicismo no campo literário, esquecendo-se de que tudo o que eles próprios chamam de grande obra literária é uma interpretação e uma reescrita da história.

A primeira lição de Paul Ricoeur é também a última. Para formular sua tese, ele não quis o infortúnio indagador de Santo Agostinho, bem como negou as afirmações placidamente fechadas de Aristóteles. Tomando o passo e o impasse de cada um, colocou-os em compasso consigo para ir adiante, afirmando pela dúvida e questionando as respostas. O autor de Tempo e narrativa vê na tragédia o espírito da concordância discordante, e ensina aos literatos que “os termos que a ética opõe, a poética conjuga”. Bravo, Ricouer!

Tempo e narrativa
Trad.: Claudia Berliner (volumes 1 e 3) e Márcia Valéria Martinez de Aguiar (volume 2)
WMF Martins Fontes
Vol. 1 – 408 págs.
Vol. 2 – 288 págs.
Vol. 3 – 512 págs.
Paul Ricoeur
Nasceu em 1913, em Valence (França). Lecionou nas universidades de Sorbonne e Chicago. Como filósofo, atuou no sentido de aglutinar hermenêutica e fenomenologia. Publicou, dentre outras, as obras A filosofia da vontade (finalizada em 1960), O conflito das interpretações (1969) e A metáfora viva (1975). Faleceu em 2005, em Paris.
Marcos Pasche

É crítico literário.

Rascunho