Sobre o prefácio à tradução de Paul Ricoeur

O instigante comentário de Patrícia Lavelle sobre o texto do filósofo francês
Paul Ricoeur, autor de “Tempo e Narrativa”
01/10/2013

Já escrevi acerca do pequeno grande livro de Paul Ricoeur Sobre a tradução. Obra interessante, três ensaios relativamente curtos, mas muito densos. A tradução do francês para o português brasileiro é de Patrícia Lavelle, publicada pela Editora UFMG, em 2011. Além da tradução, Lavelle escreveu um interessante prefácio sobre a obra de Ricoeur.

Lavelle não fez prefácio para explicar como realizou sua tradução para o português. Não seria má idéia, claro, pois esse tipo de reflexão tende a ser rico e proveitoso. Mas, em vez disso, escreveu um instigante comentário sobre o próprio texto do filósofo francês. Bela apresentação do pensamento de Ricoeur sobre a tradução, resgatando os conceitos principais do livro.

Abandonar alguns sonhos, de início. Eis o sacrifício primeiro do tradutor. Sonhos da tradução perfeita, de encontrar a passagem exata entre as duas línguas. O meio que faria da nova mensagem verdadeiro e fiel duplo do original. Equivalências sem identidade. Releitura da “equivalência dinâmica” de Eugene Nida? Talvez um passo além: a equivalência de Ricoeur parece menos igual — mais realista.

A aceitação da realidade nua e crua de que as mensagens nascidas em uma língua não são totalmente reproduzíveis em outra. A “opacidade intrínseca” a cada língua (no dizer de Lavelle) funciona como obstáculo concreto à fluidez da tradução. Mas, como água sob ação da gravidade, a mensagem escorre, encontra fissuras, dispersa, penetra a nova língua, volta a aglutinar-se em novo texto.

Noutras palavras, seria como dizer, com Paulo Paes, que “cada língua constitui uma visão de mundo diferenciada e única a que só se pode ter acesso por via dessa mesma língua e de nenhuma outra”. Questão de recortes do real condicionados pelas particularidades de cada sistema lingüístico. Línguas como lentes — cada qual com seus específicos poderes de refração — que nos franqueiam acesso — mas não imediato — ao real. Acesso imediato virá, talvez, com a “pura linguagem radicalmente expressiva” que sugere Lavelle, sem obviar uma gota de ironia.

A tradução também atua sob a força de um desejo. O desejo de traduzir atravessa os séculos construindo culturas, criando novas línguas. Pulsão pela mudança, por exprimir o mesmo texto em outra forma — dar-lhe novas feições, novas roupagens. Traduzir, mudar.

Nesse processo — e sob a força de uma pulsão —, o tradutor faz descobertas interessantes. Estruturas, conceitos do original e de sua língua que — idiossincráticos — podem ser aproveitados, com ajustes talvez, no texto e na língua de chegada. Descobrir no original potencialidades que provoquem a superação dos limites e restrições impostos pela língua da tradução. Ampliar o leque de recursos da língua, ainda que sob o signo da transgressão.

Fundamental no texto de Ricoeur, o conceito de “construção do comparável” (como definição de tradução) conduz, descendo ao detalhe, à questão mais específica da construção do sentido. Sentido comparável. Sentido que nasce do atrito entre a materialidade da letra no papel e a sensibilidade da mente do leitor/tradutor. Não há mera transposição de sentido, mas construção — ou, melhor dizendo talvez, reconstrução.

A tradução, ao construir o comparável, atua como metáfora do original — realçando semelhanças para esconder diferenças irremíveis. Mais que isso, como metáfora, transforma, areja e aviva o texto e a própria língua. Insufla ânimo novo em texto gasto, resgatando a vivacidade que povoou o original. Desperta a “dimensão poética” da língua, como diria Lavelle. Nos desperta para a particularidade que tem a tradução de ser o ofício “mecânico” que exige mais criatividade.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho