Sem o paraíso

Com rigor e precisão, Luiz Ruffato finaliza seu amplo painel da classe operária brasileira
Luiz Ruffato por Osvalter
01/12/2011

O mais novo livro de Luiz Ruffato, Domingos sem Deus, fecha a pentalogia Inferno provisório, iniciada em 2005 com o romance Mamma, son tanto felice. Ao longos desses seis anos, narrativas anteriormente publicadas nos livros Histórias de remorsos e rancores, estréia do escritor em 1998, e (os sobreviventes), de 2000, foram incorporadas ao projeto que faz um apanhado da vida da classe operária brasileira nos últimos cinqüenta anos do século 20.

A primeira questão que envolve os cinco volumes de Inferno provisório é a apresentação de cada um deles como romance. A estranheza se dá pelo fato de todos os livros se formarem com contos e breves novelas onde sequer se repetem os personagens. Em várias entrevistas, Ruffato se explica falando dos romances fragmentados e citando Vidas secas, de Graciliano Ramos, o maior de nossos clássicos no gênero. E aí vem a provocação, já que não se tem uma seqüência cronológica e nem a presença dos mesmos personagens ligando as histórias como classificar de romances estes livros?

O problema começa a se diluir quando se olha para o projeto como um todo. A intenção do escritor foi escrever um imenso painel da classe operária, uma ausência constante em nossa literatura. O desenvolvimento se fez com rigor e precisão. Na leitura do conjunto, temos uma visão trágica e lírica de toda uma comunidade que, por pressões econômicas, deixa o campo e migra para a cidade, primeiro uma cidade média e tecelã de Minas Gerais, para em seguida buscar um centro maior, no caso São Paulo. Aí já temos um personagem, a classe operária, e um tempo histórico, a segunda metade do século 20, e, enfim, um romance de fato.

Resolvido o imbróglio do gênero, que aliás só interessa à crítica especializada, o melhor é mergulhar na leitura.

Lirismo e rigor
Luiz Ruffato recupera para a literatura atual o prazer da boa leitura. Seus textos escorrem com lirismo e rigoroso trabalho lingüístico, além de contarem muito bem histórias intensas e instigantes. Foge ainda do convencionalismo moderno, da necessidade de uma narrativa urbana recheada com cenas de violência e sexo, preferencialmente acontecidas em ambientes cosmopolitas, Paris, Londres, Nova York. A literatura de Ruffato fala do Brasil e de brasileiros normais, pessoas que andam, trabalham, sentem dores e fome, e, quando possível, riem com pequenas alegrias. Daí a complexidade de seus personagens, pessoas banais que sintetizam dramas intensamente humanos.

Domingos sem Deus é mais uma parede desta construção. O livro traz seis narrativas — Mirim, Sem remédio, Trens, Sorte teve a Sandra, Milagres e Outra fábula. Em comum todas falam de pessoas que, de uma maneira ou de outra, estão ligadas a Rodeiro, passaram por Cataguases e estão em São Paulo, em sonho ou realidade, não importa. O fundamental é como o escritor monta de maneira sintética e, paradoxalmente, plena a trajetória comum de um núcleo menor, Rodeiro, que de fato existe, vai para um centro de médio porte e, enfim, chega à megalópole onde se abrigam todas as esperanças, todas as apostas e todas as frustrações.

Naturalmente que este não é um caminho fácil, possível de ser feito por um único homem. Entre Rodeiro e São Paulo escorrem gerações. E esta lentidão tem um forte simbolismo literário. É preciso que os sonhos se construam como uma espécie de herança, e daí a força que traz seu desmoronamento. Mesmo para o protagonista da narrativa Outra fábula, o jornalista Luís Augusto, a sobrevivência na cidade grande ainda está marcada pela força do medo genético que atravanca ousadias. Tem determinação, até força e certa formação cultural, mas lhe falta confiança e lhe sobra o peso que dificulta a caminhada.

Estamos falando de um roteiro previsível e que vem determinando os sucessos da classe operária. Muitos de seus filhos conseguem vencer barreiras e etapas, mas a maioria ainda se perde pela carga de frustrações e preconceitos que transportam. A literatura de Ruffato chega a ser dolorida ao dizer desta fatalidade. O borracheiro teve um dia mecanismo de ascensão social, mas o passado voltou a rondar suas esperanças e ele jogou tudo para o alto. Não havia meios de conciliação entre o bem-estar e os supostos pecados de antes.

Estas marcas, mais que os ditames da oportunidade, são tão intensas no transcurso de todas as narrativas que os personagens cercam-se de frustrações mesmo na vitória. Seu Valdomiro está aposentado e passa os dias num centro de recreação para idosos. Do balanço da vida, nada resta senão os dias de Rodeiro, na infância, quando, chamado de Mosquito Elétrico, corria pelas ruas. Todo o resto ficou para trás, e seus barbantes se ligam apenas pelas pontas, a infância e a velhice. Nisso se une à mulher que faz compras no centro de Cataguases e se assusta com o poder do trem. Tudo ali parece impregnado de força e modernidade, apenas ela carrega fragilidades, dores e velhices.

Dívidas impagáveis
É o passado quem atormenta toda essa gente. Ele lhes imputou dívidas impagáveis. Se saíram da roça ou de Cataguases, foi para serem felizes e vitoriosos, isso sem trair todo legado que receberam: preconceitos, religiosidade, baixa formação, entrega à subserviência. Ana teve nas mãos as ferramentas da mudança, mas carecia casar, ser moça direita e esse Nenê é um moço tão correto, tão trabalhador. Daí foi ela quem perdeu tudo, do futuro à sensualidade.

Outra que teve sorte, mas a perdeu, foi Sandra. Esta ousou, deu a cara à tapa e até pensou ter vencido todas as correntezas, mas o rio de preconceitos não permite ser vencido com braçadas leves. Novamente a história se repete. Parece que com isso Ruffato trabalha sempre um universo de poucas oportunidades, com infernos dantescos e fatalistas. Antes ele mergulha num mundo que carece de renovação, mas que insiste em se apegar ao ontem. E daí sua fatalidade.

Todos são formados no mesmo molde, nas mesmas escolas de quase nenhuma instigação intelectual. O primeiro sonho dos adolescentes é um curso de formação no Senai, quase uma garantia de emprego na indústria, talvez, usando uma metáfora de Ruffato, uma nova prisão, um apelo à estagnação. Vale a pena? Para o autor, a solução é questionável, e sem querer fazer sociologia, ele termina por nos mostrar que esta fatalidade é conveniente para a manutenção de um suposto equilíbrio social que, de fato, não contempla todos.

Apesar deste discurso, digamos, socializante, Ruffato não se prende aos preceitos políticos ou ideológicos. Quer somente fazer literatura, boa literatura. E apanha o barro que lhe é mais caro e próximo para escrever livros fundamentais.

Os caminhos de seus personagens estão sempre macerados pelas impossibilidades, é certo, mas este é o material que usa para fazer uma espécie de mergulho no que podemos chamar de psicologia coletiva. Com isso, aprendemos mais um tanto sobre a complexidade das pessoas e do mundo. E aprendemos nos divertindo com uma leitura de qualidade, com uma leitura instigante e divertida.

Domingos sem Deus
Luiz Ruffato
Record
112 págs.
Luiz Ruffato
Nasceu em Cataguases (MG), em 1961. Estreou com o livro Histórias de remorsos e rancores, em 1998. Ao todo já publicou mais de dez livros, entre romances, poesias e ensaios. Ganhou importantes prêmios literários, como o Casa de las Américas, em 2000, o da APCA, em 2001 e 2005, e o Jabuti, em 2006. Tem livros traduzidos para o italiano, o francês e o espanhol e foi publicado em Portugal.
Maurício Melo Junior

É jornalista e escritor.

Rascunho