Quando o sonho encontra a palavra

Leia a entrevista com Mia Couto
Mia Couto por Ramon Muniz
01/01/2013

“Se temos voz é para vazar sentimentos.” A frase, encontrada em certo momento do romance O último vôo do flamingo, reflete como um espelho seu autor, o moçambicano Mia Couto. Nascido Antônio Emílio Leite Couto, em 1955, rebatizou-se Mia por se considerar mais próximo dos gatos que das gentes, gentes que surgem sempre prontas a vazar sentimentos, medos e sonhos em seus contos e romances, dotados de uma linguagem singular, uma prosa carregada de poesia. Num país devastado pela guerra civil que se estendeu de 1976 a 1992, o escritor capturou as brumas do sonho e usou deste elemento para dar corpo à sua literatura. “Metade da minha vida foi vivida em guerra, e Moçambique é um dos países mais pobres do mundo, então tudo isso nos instiga a fabricar um mundo que não seja colado na realidade”, afirma Couto nesta entrevista concedida durante sua passagem por Curitiba, em novembro passado, quando lançou seu mais novo romance, A confissão da leoa. Fruto de uma experiência real vivida em 2008 por Couto, que é biólogo de profissão, a história segue os passos de um caçador enviado a um pequeno vilarejo do norte de Moçambique com o objetivo de matar os leões que estão devorando pessoas e aterrorizando o lugar. Um escritor o acompanha, a fim de escrever uma reportagem sobre a caçada.

O escritor da vida real, Mia Couto, serviu de matéria-prima para o da ficção, Gustavo Rabelo. “Esse caçador existiu e esse escritor sou um bocadinho eu. Eu tinha uma dificuldade muito grande de me inserir naquilo, porque não sou um homem de caça, nunca fui à caça”, conta o moçambicano, que neste livro abandona a preocupação com os neologismos que marcam sua obra, o que não significa sua ausência absoluta. Tentativa semelhante foi empreendida em seu romance anterior, Antes de nascer o mundo: “Quero sair dessa zona de conforto, experimentar outras coisas”. Nesta conversa, o autor de Terra sonâmbula, eleito um dos dez melhores romances africanos do século 20, fala sobre o processo de escrita de sua obra mais recente, sua experiência na guerra civil, sua predileção pelo sonho, Jorge Amado e um personagem recorrente em sua literatura: o silêncio.

As duras condições de sobrevivência das mulheres moçambicanas é um ponto marcante em A confissão da leoa. O senhor vê a crítica social como um dos papéis da literatura?
Sim, desde que ela seja feita de forma literária. Quer dizer, é preciso que o escritor não pense que seja um funcionário de uma causa, é preciso que ele perceba que está trabalhando numa outra dimensão. Mas ele não pode acreditar que está acima disso, acima dos conflitos, daquilo que são as posturas éticas. Isso tem que estar lá, marcado.

Mia Couto por Ramon Muniz

Em A confissão da leoa, o senhor exercita uma prosa mais objetiva, talvez menos poética do que a de romances anteriores. Seria em decorrência da experiência que antecedeu sua escrita?
Acho que não. Não sei se o tom poético não está tão presente, mas o que não está é essa preocupação de fazer uma reinvenção de linguagem, criar neologismos. Já a partir do romance anterior eu quis fazer uma ruptura com isso, quer dizer, eu não quero deitar-me numa cama que já sei que adormeço bem. Portanto, quero sair dessa zona de conforto, experimentar outras coisas.

O sonho é um elemento sempre presente em sua literatura. O senhor utiliza de seus próprios sonhos quando escreve? Qual a ponte que o liga à literatura?
Na minha casa, quando pela manhã estamos tomando café, tenho uma inveja enorme, porque todos contam os sonhos e eu não me lembro dos meus. Sinto-me diminuído. Não é o sonho no sentido literal, mas é aquela maneira como a gente fabrica um outro mundo como se fosse um estado sonâmbulo, quase de delírio. Quem vive numa realidade tão dura como é a de Moçambique, que teve uma história, um percurso tão difícil — metade da minha vida foi vivida em guerra, e é um dos países mais pobres do mundo —, tudo isso nos instiga a fabricar um mundo que não seja colado na realidade.

Em Terra sonâmbula, a personagem Farida diz sobre a guerra civil: “Pode acabar no país, Kindzu. Mas para nós, dentro de nós, uma guerra nunca mais vai terminar”. Esse era um sentimento seu também, enquanto escrevia o livro nos anos finais da guerra?
Era. Era quase uma fé triste, um certo pessimismo de que aquela guerra nunca iria terminar, porque demorou tanto tempo e a experiência que eu tinha dos outros países africanos era que elas encontraram razão para se reproduzirem internamente. Portanto, foi uma surpresa enorme. Se me perguntam se acredito em milagre, eu agora acredito em um. De repente num dia declarou-se paz, decretou-se paz e nunca mais houve guerra, nunca mais houve um tiro sequer ligado a ela. Por outro lado, essa frase era como um vaticínio, quer dizer, a guerra nunca mais sairá de dentro de mim. Procuro esquecê-la, procuro que ela fique arrumada lá num canto, mas não é possível.

Certa vez, numa entrevista, o senhor disse que o tema da busca de identidades nunca o abandonou. O senhor escreve para também procurar sua identidade? Ou não para buscar, mas afirmá-la?
O que se passa é o seguinte: essa busca da identidade é um grande assunto para todos nós. Não é uma coisa literária, não é um assunto filosófico. Temos sempre de explicar quem somos, e é uma miragem, é sempre uma coisa equivocada. Nunca somos uma coisa, não temos uma identidade, temos várias, e elas vão mudando com o tempo, vão mudando com a idade, vão mudando com a relação que a gente tem. Eu vejo que isso foi uma coisa que no início surgiu dramática em mim próprio. Tenho que saber quem sou, e eu era um cruzamento de tanta coisa, era um ser de fronteira, sou um filho de portugueses que nasceu em África e se converteu num africano. Vivo entre o mundo católico, o mundo dessas outras religiões que não têm nome, vivo entre o ocidente e o oriente, entre esse mundo de crenças e o cientista que também sou. Então, de repente, disse para mim: “O que é que eu sou?”. Parecia que eu tinha que saber, e é um drama não saber. Às vezes, o que disse a mim próprio e gostaria de dizer aos meus filhos e amigos é que não sofram, pois, ao contrário, quando souberem, aí sim vocês terão razão para sofrer. Porque essa área do não saber, essa ignorância, é extremamente fértil, portanto convivamos bem com isso.

Não raro o silêncio aparece em sua obra quase como um personagem de vida própria, carregado de intensidade. O silêncio pode dizer mais do que as palavras?
Tem uma dimensão pessoal minha. Eu era uma criança calada, tímida, não falava, e descobria nesse não falar um valor, porque queriam saber o que eu queria dizer e nunca dizia. O livro Antes de nascer o mundo em França se chamou O afinador de silêncios, porque esse menino constrói silêncios como quem constrói uma fala. O silêncio permite que haja comunicação, não é uma ausência, não é uma pausa absoluta. Depois, tem essa outra dimensão que é social, do meu lugar. Os africanos olham o silêncio como uma coisa que não é incomodativa. Às vezes, o que eu vejo em outros lugares, quando as pessoas estão num grupo e se cria um silêncio, é que aquilo tem que se resolver, é um vazio. Ali não, o silêncio está cheio de vozes, não existe nunca. O silêncio não é aquilo que parece, não é uma ausência.

• O senhor estreou na literatura com um livro de poesia, nos anos 1980, e então partiu para o conto e o romance. Seu último livro de contos (O fio das missangas) data de 2003, e somente em 2011 o senhor retornou à poesia, com Tradutor das chuvas (inédito no Brasil). Já A confissão da leoa é seu 12º romance. O senhor foi fisgado por este gênero?
As coisas surgem de uma certa maneira. Sempre com um pequeno núcleo, que ou é um personagem ou é uma raiz de um verso, digamos assim. E eu no momento sei lá o que isto vai ser, um poema, uma história. Quando surge como história, não quero que seja coisa nenhuma, quero que ela vá acontecendo. Também logo quando começo a trabalhar, já não é só um momento de inspiração, sei que vai ser um conto, sei que vai ser um conto longo. Que seja um romance ou não, não me preocupo naquele momento. Mas não acho que tenha sido capturado por nenhum gênero.

Mia Couto, autor de “O último vôo do flamingo”

O senhor concorda com o caçador Arcanjo, que em A confissão da leoa compara o escritor Gustavo a uma ave de rapina em busca dos relatos da população sobre a guerra e os ataques dos leões? O senhor se sentiu dessa forma quando acompanhou o caso em 2008?
Não, não me senti. Houve ali uma relação verdadeira, esse caçador existiu e esse escritor sou um bocadinho eu. Eu tinha uma dificuldade muito grande de me inserir naquilo, porque não sou um homem de caça, nunca fui à caça. E de fato esse caçador, que é meu amigo, é verdade, há coisas ali que são verdade, que eu, digamos, fui buscar. E uma dessas coisas é que ele também escreveu um livro. Ele pinta, é um artista, não é um caçador típico, vamos dizer assim. E ele apontou-me o dedo e disse: “Essa história quem vai contar sou eu, não és tu. Eu é que estou aqui me sacrificando, eu é que estou produzindo a história, e tu estás de uma maneira quase parasitária recolhendo outra história, inventando”. Ele colocou logo assim e acabou publicando o livro agora, com o relato, tem foto e tudo desta caçada. Mas eu logo o tranquilizei, disse: “Essa história será sempre tua”. Ele não ficcionalizou nada, fez um relato.

O universo literário de Jorge Amado pode ser comparado ao seu, com a forte presença da religião e dos tipos sociais. Amado foi, dos escritores brasileiros, o que mais penetrou nos países africanos lusófonos. A que o senhor credita essa aceitação tão forte?
Foi uma combinação de fatores. Pela qualidade literária que ele criou na sua obra, porque é baiano — ali a presença da África é tão visível e nós reconhecíamos essa presença. Aqueles personagens podiam ser nossos, aquela gente que está ali na rua da Bahia podia passar em frente à minha casa. Isso vinha junto com um fascínio pelo Brasil, fascínio um bocado equivocado, que o Brasil era o país onde negros e mulatos tinham conseguido ser visíveis e ser tratados de maneira justa. Porque se chegava àquela idéia do samba, do futebol, e nem sequer se percebia que essa presença do negro no futebol brasileiro foi fruto de uma briga, de uma luta. Mas aquilo parecia uma coisa natural, aquela coisa da Pasárgada, olha lá um espaço de redenção em que gostaríamos de viver. Então havia um Brasil muito encantado que chegou a Moçambique, e o Jorge Amado surgiu no meio disso. E também porque ele assumiu uma postura política, seus livros eram proibidos — mas eram proibidos em Portugal, não em Moçambique, pois havia aquela idéia do regime de Salazar de que em Moçambique ninguém sabia ler, portanto deixa lá o Jorge Amado ser vendido. Mas tudo isso criava uma aproximação, um desejo não só de ler, mas de ser como ele.

Seu pai era poeta. Como foi crescer numa casa habitada pela poesia e pelos livros, numa família radicalmente oposta a grande parte da população moçambicana?
Tu disses bem, rodeado pela poesia e não só pelos livros, porque meu pai não escrevia poesia, era poeta. Então ele passava para nós sem que nunca anunciasse. Meu pai nunca me mandou ler um livro, aquilo passava pela maneira como ele olhava o mundo. Essa escola ficou dentro de mim, e depois também havia uma coisa: quem nos visitava à noite, com quem saíamos no fim de semana, eram sempre poetas. Eu pensava que todo mundo quando ficava adulto virava automaticamente poeta. Não podia falar com meus amigos sobre poesia, porque achavam aquele assunto meio, sei lá, tinham uma grande desconfiança — isso que eu era um homem macho falando poesia. Então, eu escondia aquela coisa, era um ato secreto meu, o que ainda me instigou mais.

Guilherme Magalhães

É jornalista.

Rascunho