Pueril cantilena

Em “Acervo de maldizer”, Wanderley Guilherme dos Santos reclama o tempo todo para não dizer nada
Wanderley Guilherme dos Santos, autor de “Acervo de maldizer”
01/08/2008

Importante não confundir jamais ousadia com insensatez. É por essa enigmática vereda que os incautos e os nem tanto costumam se perder. Quer nas artes quer na vida cotidiana não é preciso fazer muita força para nos depararmos com algum produto desses “talentosos corajosos”. E não pensem que tal prerrogativa seja coisa de novatos ou dos de pouco tino intelectual.

Infelizmente, o cenário artístico é o mais condescendente com a referida horda. A literatura, coitada, costuma acolher todo aventureiro que lhe fizer a promessa de um estranhamento em sua produção, geralmente se escudam na escatologia, na violência ou na miséria, sem esquecer a pieguice. Ainda têm aqueles, nada moderados, que se amarram em usar todos esses ingredientes ao mesmo tempo. Acreditam se tratar de vanguarda, têm por objetivo chocar o leitor, mas não conseguem despertar a atenção de uma criança, mesmo aquelas onde o onanismo ainda é o must. Não passam de inocentes desbocados a se autoproclamarem pícaros mesmo sem saber o que seja picardia. Lamentável!

Paciente leitor, estamos diante doAcervo de maldizer,de Wanderley Guilherme dos Santos, que você pode conferir no box sobre o autor não se trata de nenhum iniciante no território das letras; no entanto, pelos caminhos da ficção ainda é um aprendiz relutante. Apresentada em seis capítulos, a narrativa é um mix de filosofia, psicologia e sociologia no que essas vertentes podem apresentar de pior, tudo isso ancorado nos mais desgastados clichês. Constrangedor esse acervo. Faz lembrar, não por motivo igual, um livro também da editora Rocco,Escrever, de Marguerite Duras: “É uma coisa curiosa um escritor. Uma contradição e também um absurdo. Escrever é também não falar. É se calar”.

O calar que não se percebe em Acervo de maldizerfaz com que a farta desolação, exposta na forma de insultos, lamentos e outros aspectos da degradação da condição humana sejam banalizados, visto que não há interrupções nessa prática, é cada vez mais um pouco do mesmo. Falta a pausa, o citado silêncio.

Impressão realista
Narrado em primeira pessoa por um personagem de classe média baixa, sem nome e em plena velhice, coloca o leitor diante da arqueologia pessoal do protagonista que não se afasta em nenhum instante do campo de batalha ocupado pelas palavras e pela miserável condição humana. Acervo de maldizer, não podemos negar, traz forte impressão realista, no que isso pode representar de mais nefasto e batido, em sua trama repleta de histórias ternas e ao mesmo tempo brutais, não permitindo desse modo a visualização da bondade dentro do mal abundante e legitimando os sentimentos mais sórdidos da sociedade opressora.

A narrativa tenta se equilibrar no tênue fio que separa aparência e realidade — nessa exígua região, das mais perigosas, onde mora o perigo. Perigo este capaz de destruir qualquer rasgo expressivo de um texto, e na trama de Wanderley dos Santos essa tarefa é facilitada, pois o autor, em que pese a aparente complexidade das imagens, capaz de estimular reflexões que vão desde o literário até o político, permitiu que a simplicidade psicológica dos personagens se encarregasse de tornar pueril sua cantilena.

O que se depreende da verborragia do autor é o vazio do discurso, embora utilize as prerrogativas daqueles que esperam chocar o leitor, transgredir a arte e conseguir sobressair nesse universo de vaidades que infelizmente assola nosso panorama literário atual. Está a duvidar, descrente leitor? Então o que você diz do que segue? O velho, o narrador, ainda conserva uma fixação erótica na mãe, chama isso de “vômito do ressentimento”, quando jovem suburbano se envolve em brigas de rua e vive experiências sexuais das mais sórdidas e, para completar, temos a repetitiva e tediosa intenção do autor de demonstrar a grande disposição humana para o mal.

Cabe informar que tal objetivo fica longe de ser alcançado e justamente o exagero, a falada ausência de silêncio, a opção pelo descaso de viver, são em parte responsáveis por tamanha frustração.

A maldade permanentemente a gestar violência só compreende a realidade da miséria, da solidão e da ignorância, não permite brechas por onde se possa vislumbrar atenuantes, leva a concluir que a proposta humana se resuma ao medo e ao desprezo pela vida. Enquanto isso a violência se embrenha nos desvios dos formalismos sociais.

Lamentável pieguice
São seis os capítulos que constituem este Acervo de maldizer, e suas frases finais são de fazer corar o leitor mais benevolente, deixando nítida a intenção do autor de marcar o final com as famosas “frases de impacto”, em que também se podem notar as diversas formas de preconceito que assolam o velho narrador e como você testemunhará, a famosa e lamentável dose de pieguice. Faltou a tensão, resultado do embate entre a rigidez dos convencionalismos sociais e a sensibilidade do autor. Viver significou pouco para ele, aprendeu quase nada.

Por favor, acompanhe-me, paciente leitor. Fim do capítulo I: “A vida está acabando comigo, mas eu dou trabalho”.Do capítulo II: “Foi então que minha mulher me comunicou, com a serenidade de quem sabe o que faz, como sempre soube, que contraíra herpes genital. Enfim, a libertação”.Do capítulo III: “Por isso alimentavam os desgraçados infantis e juvenis, para que viessem a ser a fonte de energia de escriturários, taxistas, etc., sem esquecer dos novos ricos e antigos escroques. Há uma fábula sobre a alimentação do futuro alimento. Posso informar, com toda segurança, que não se trata de fábula”. Do capítulo IV: “Por uma ou por outra razão, foram as lágrimas de sua derradeira felicidade”. Do capítulo V: “O Autor foi, neste passo, surpreendido em contradição, e então dei por definitivamente comprovado o desenlace vitorioso do experimento, quando, em raro momento de concessão fônica, corrigiu o título da obra, chamando-a de Acervo de Maldizer. Tive ganas de assiná-la eu mesma, tanto me custara trazê-la a lume”. Do capítulo VI: “Toda a nossa tragédia se contém na discrepância entre a irrelevância de cada um de nós na ordem natural da espécie e a grandiosidade da maldade de que somos, individualmente, capazes de fazer. É o mal que tenho a dizer”.

Wanderley Guilherme dos Santos desperdiça imagens, que se não chegam a ser da ordem das imagens convulsas de Breton, repletas de vigor, também não impedem que o atento leitor lembre que toda idéia também é uma imagem. O autor parece perdido em meio às próprias idéias e distribuiu sua amargura e sua raiva pelas raias da religião, sempre um alvo fácil, da opressão estética corporal, cada vez mais na ordem do dia; e não podia esquecer da descoberta da sexualidade. E por falar em sexo, importante dizer que o autor visita com raro talento o subgênero pornográfico. Há quem goste.

Paciente leitor, falta pouco, o negócio é o seguinte: não faz mal algum a leitura desse Acervo de maldizer, tampouco causará a tão almejada dependência e se não chega a ser uma perda de tempo, pelo menos você perceberá como um texto se autodestrói. Já é alguma coisa, diante dessa maldita morte que é o viver.

Acervo de maldizer
Wanderley Guilherme dos Santos
Rocco
128 págs.
Wanderley Guilherme dos Santos
Nasceu no Rio de Janeiro, em 1935. É considerado um dos ensaístas mais renomados no cenário acadêmico brasileiro. Bacharel em Filosofia pela UFRJ e PhD em Ciência Política pela Stanford University, dos EUA, hoje é coordenador do Laboratório de Estudos Experimentais, das Faculdades Integradas Cândido Mendes, RJ. Pela Rocco, ele publicou O paradoxo de Rousseau, Décadas de espanto e uma apologia democrática e Razões da desordem.
Luiz Horácio

É escritor. Autor de Pássaros grandes não cantam, entre outros.

Rascunho