Primeiro encontro

Conto de Bernardo Ajzenberg
01/08/2008

Nunca fui bom de futebol, mas o meu pai insistia, ele achava que fazia parte do manual de instruções masculinas integrar o time da escola, da classe, o time da rua, do bairro, ou mesmo a seleção do clube, se desse, aí seria a glória, mas, sabe, eu não levo jeito. Em compensação, sempre me dei bem no beisebol, acredite se quiser. Achar gente para jogar beisebol é mais difícil, bem mais difícil, do que para jogar tênis ou xadrez. Ninguém gosta e ninguém entende de beisebol por aqui, ninguém conhece as regras, você já quer pedir ou a gente espera mais um pouco? O fato é que, para o beisebol, eu até treinava sozinho, inventei uma espécie de paredão, igual no tênis, para melhorar as tacadas e apanhar a bola, muito embora meu pai tenha relutado à beça em me dar de presente um kit de beisebol, chegou a sugerir basquete, tênis, handebol. Não vôlei; vôlei não, ele me dizia, vôlei é esporte de viado… Francamente não sei de onde ele tirou isso, talvez da época em que ele era garoto, não faço a menor idéia… Ele insistia em tirar o beisebol da minha cabeça. Na verdade, eu tenho certeza, hoje, de que ele queria tirar tudo da minha cabeça, deixar a minha cabeça, no fundo, vazia, oca, entende. Estou convencido, sei que é meio chato falar essas coisas, estou convencido de que ele se vingava da vida em cima de mim. Desde pequeno eu tenho essa sensação e essa coisa só aumentou com o passar dos anos. Não é por acaso que eu estou desse tamanho, com esse peso, que nem teste ergométrico me deixam fazer. Fui outro dia fazer um e me proibiram, disseram que não agüentaria. Imagine! Embora eu também saiba que a estética não é tudo, não é? E, além disso, ser operador de telemarketing não ajuda em muita coisa. Você começou agora, somos colegas novos, mas logo vai perceber. Se não se cuidar, o corpo amolece todo, fica flácido, você fica uma gelatina mal-feita. Se eu pudesse te dar um conselho eu diria se cuida, menina. Se cuida, ou pelo menos deixe que alguém cuide de você! Minha mãe tem uma parcela enorme de responsabilidade nessa história. Menos, mas tem: todo o vazio que o meu pai incentivava em mim ela preenchia com guloseimas, chocolates, biscoitos, massas em geral, geléias, essas coisas, doce-de-leite, leite condensado, ela me dava essas coisas como água, achocolatado com leite A, essas coisas ele me dava sempre, até pouco tempo atrás. Filho-da-puta! Por que eu precisava de todas essas coisas? Melhor ficar de cabeça oca! Culpar os pais por aquilo que a gente é fica meio esquisito quando se tem quase trinta anos de idade, não? Mas eu não posso deixar de fazer isso, porque estaria mentindo se não fizesse isso, não acha? O que é que eu posso fazer? Quer pedir? Bom, o fato é que sou um cara cabeçudo, quer dizer às vezes meio mala, desculpe falar assim, mala mas não chato nem incômodo, viu, pode ficar tranqüila. Cabeçudo no bom sentido da palavra, entende? Quando mudei para cá, faz uns dez anos, eu ainda tinha na cabeça essa coisa do beisebol, mas aqui, mais do que em Campinas, ficou impossível encontrar gente, e eu não queria freqüentar aqueles clubes específicos, sabe, cheios de japoneses, nisseis, não, nada contra os nisseis, muito pelo contrário, eu até tenho inveja deles, das habilidades mentais e do corpo deles, do cabelo deles, eles são sempre muito elegantes, têm uma cor bonita e uma inteligência assombrosa, pelo menos os que eu conheço, e é gente sempre muito honesta e trabalhadora, pelo menos os que eu conheço, portanto não é questão de preconceito, nada disso, não quero que você me entenda mal, que a gente ainda se conhece muito pouco e não quero que você tenha má impressão de mim logo no primeiro encontro. Quer pedir já? Bom, mas deixa eu te falar: a coisa do beisebol, eu tive de desistir porque também não dá para ficar jogando sozinho a vida inteira. Mas, veja só, ter parado com o beisebol acabou comigo, foi comprar uma passagem para o inferno: você não vai acreditar, quer pedir agora?, mas eu me fiz muito mal, muito mal, Leila. Estava com dezesseis anos, minha cara cheia de espinhas, não escapei disso, e me achava feio, horroroso. Me achava não, eu era um monstro… Melhorei um pouquinho, não acha? Claro que isso dificultava as coisas com as meninas, até porque eu recusava usar os cremes e tomar as baboseiras de ervas que minha mãe recomendava a partir das dicas de uma vizinha louca, jamais beberia aquelas coisas nojentas, pode acreditar. Eu então me cutucava, eu me cutucava no espelho de um modo assombroso, eu enfiava as unhas na pele do meu rosto sem dó, na verdade já não sentia dor, ou sentia e era justamente isso que eu queria. Vai ver era isso mesmo, eu me castigava não sei por quê. Esse garçom é uma besta, dá uma olhada só no modo como ele arruma a mesa… Incrível! Bom, eu estourava espinhas de um modo tão aprimorado, Leila, que fazia elas explodirem e respingos amarelados delas chegavam até o espelho do banheiro. O espelho ficava com aqueles pontinhos de pus — acho que é pus isso que a gente tem de amarelo nas espinhas, não? O sangue também saía, a toalha ficava manchada, e eu mesmo assim não sossegava. Era como se buscasse o fundo de um iceberg, entende, aquele amarelinho aparente não passava da ponta, eu tinha de fazer uma arqueologia brutal em cada espinha, e no meu rosto havia centenas delas, maiores ou menores, cheguei a contar umas setenta certa vez, sem considerar as manchas que ficavam de espinhas amortecidas ou outras ainda mais velhas. Quer pedir? Bom, em ficava horas diante do espelho, Leila, pode acreditar, esburacando o rosto. E não era só o rosto, porque eu cuidava também do dorso, do peito, do pescoço, até nas orelhas me nasciam espinhas. Eu me castigava tanto desse jeito, Leila, que às vezes chorava, de pena de mim mesmo, não de dor. Uma pena de mim mesmo, como eu tenho certeza de que a minha mãe também tinha, mas não dizia; só espumava de raiva. E eu de ódio. Meu rosto, às vezes, ficava todo ele da cor de suco de uva. Como já disse, eu sou cabeçudo, não é? De nada adiantavam as reprimendas da mãe. Meu pai não dava bola para isso, não sei por quê. Para ele, quanto mais feio eu fosse, melhor. Menos me preocuparia com bobagens e mais trataria de encontrar logo um trabalho, achou que era isso que ele pensava. Então eu me fazia mal, muito mal por causa da história do beisebol ausente, se você me entende. É só uma sensação, mas eu acho que isso dificultava o meu relacionamento com as meninas. Às vezes acho que elas não se aproximavam de mim por causa do meu rosto lunar. Como se fosse contagioso. Ou como se tivessem nojo. Absurdo! Eu era limpinho, mas me cutucava muito, como eu disse, e aquilo provavelmente as afastava de mim, porque, não sei se você concorda, mas não sou feio, quer dizer, e o meu corpo até que está bem arrumadinho, apesar de tudo, não? Quer pedir? Bom, do rosto passei para as unhas: cismei em tirar a cutícula diariamente, dedo a dedo. Comprei numa farmácia aquele alicate, você conhece, e virei especialista. Bingo! Arrebentava a cara diante do espelho e em seguida sentava no bidê e mandava brasa. Depois de alguns meses, os dedos sangravam de tanto que eu invadia os espaços entre a carne e a unha… As pelezinhas cresciam cada vez mais também, mas roer unha eu não roia, precisava delas para estourar as espinhas, certo? Não pense você que troquei as espinhas pela cutícula. Não: agora eu fazia as duas coisas, com uma perícia e uma contundência, uma energia, uma fibra, uma vontade quase religiosa, uma vibração de viciado, se você me entende… Era um ritual. Quer pedir? Bom, eu vi que começavam a aparecer na coxa e na altura da cintura umas bolinhas, não por fora, por dentro da pele, como uns montinhos meio duros, depois eu soube que são pelotas de gordura concentrada, que crescem. Tem um nome científico que eu não me lembro — e dizem que pode dar câncer. Mas eu descobri que você pode evitar que elas cresçam, pelo menos algumas delas, espremendo quando ainda são, digamos, jovens, novinhas. Você pode espremer como se fossem espinhas, ou cravos. Mais cravos do que espinhas. Elas, essas pelotinhas, vão crescendo simetricamente: se surge uma na parte superior da coxa direita, por exemplo, pode acreditar, pode procurar que tem outra mais ou mesmo na mesma altura da outra coxa. No peito a mesma coisa. Aprendi isso com o meu pai. Ele tem igual, já fez até alguma pequenas cirurgias para extrair as maiores, que não dá para a gente espremer. Então eu me colocava diante do espelho, Leila, e espremia, tanto, tanto, até sair aquela gordurinha meio branca, meio amarelada, limpinha, pode acreditar, embora muito mal-cheirosa. Saía que nem um cravo, só que bem maior. Muito mal-cheirosa, isso sim. Diferente das espinhas. Nunca senti o cheiro das espinhas. Não sei se espinhas têm cheiro. Mas o cheiro, de qualquer maneira, faz parte da nossa vida, não acha? Todos conhecemos os nossos cheiros e muitas vezes a gente se diverte ou sente até prazer com eles, não é verdade? Desculpe falar assim, tanto, Leila. É um prazer estar aqui com você. Tenho certeza de que gente vai se dar bem. Você já teve caspa? E aí, você não quer pedir?

Bernardo Ajzenberg

É autor de Homens com mulheresA gaiola de FaradayCarreiras cortadasVariações Goldman, entre outros.

Rascunho