Por conta própria

“Diário de um ano ruim”, novo romance de J. M. Coetzee, é um belo desafio a leitores exigentes
J. M. Coetzee, autor de “Diário de um ano ruim”
01/10/2008

Romance ou jogo? Afinal, a que gênero pertence Diário de um ano ruim, de J. M. Coetzee? É um romance ou um livro de ensaios? E, mais importante, ou pelo menos mais urgente: como ler esse livro, com sua estrutura tão fora do comum? Ao contrário de O jogo da amarelinha, de Julio Cortázar, que também problematizou a leitura da obra, não existe aqui nenhuma proposta ou sugestão de leitura oferecida pelo autor. Os leitores recebem o inusitado livro e se vêem obrigados a desenvolver suas próprias estratégias de leitura.

O livro começa com a indicação: Opiniões fortes, datadas de 12 de setembro de 2005 a 31 de maio de 2006. Essa primeira parte, por sua vez, compõe-se de 31 opiniões que versam desde reflexões sobre a origem do Estado até a questão do pós-vida. Pode-se pensar que se trata, aqui, de um comentário sobre questões filosóficas que dizem respeito ao nosso “mal-estar da modernidade”. Segue-se a esses pensamentos um “segundo diário”, sem data, que começará com “um sonho” e terminará com as emoções suscitadas pela leitura de um trecho de Dostoiévski — o famoso episódio em que Ivan resolve devolver ao criador seu ingresso para o mundo.

Nos sete meses e meio abrangidos na primeira parte vai-se entretecendo a história da escritura do próprio livro. Neste entremeio, descobre-se que o Señor C, um solitário homem de idade, sofrendo de Parkinson, e com a reputação de escritor importante, recebeu a encomenda, por parte de uma editora alemã, de colaborar com um livro de ensaios (“seis escritores importantes se pronunciando sobre o que está errado no mundo hoje”), cujo título deverá ser, exatamente, Opiniões fortes. O que acontece é que, já com o livro em andamento, o “velho amarrotado” topa, acidentalmente, com uma mulher bem mais nova e sensual, moradora do mesmo edifício, e por ela se encanta, deslumbrado com sua juventude e atributos físicos.

Decadente e bastante consciente disso, informado de que a jovem é casada ou, pelo menos, é a parceira fixa de um homem jovem e quase que seu antípoda, ele nem assim desiste de sua conquista. É o jogo de sedução consciente entre as duas personagens que vai se desenvolvendo por entre as pausas dos ensaios. Ao saber que a jovem, Anya, está desempregada, ele lhe oferece trabalho como datilógrafa, para que ela transcreva as fitas que ele vai ditando.

Inteligente e sensível
Comentando o terrorismo, a globalização, os desastres ecológicos, o avanço das experiências genéticas e outros temas de reflexão e desassossego, para o desgosto da sua secretária improvisada, que boceja graças aos textos de “El Señor”, e que devaneia enquanto se define como “gostosa, excitante, exótica”, o sedutor se vê cada vez mais seduzido, e o texto se abre em mais um espaço, onde se desenvolve o outro lado desse processo, a versão da suposta “seduzida”. Logo se descobre que esta mulher, embora levando uma vida fútil e baseada apenas nas aparências, é inteligente e sensível, possui valores éticos, e é por aí que a sedução do velho escritor finalmente funciona.

Para desespero do velho, porém, sua capacidade de atrair a jovem se limita às formas de pensar. Ela passa a comentar e discutir os textos que vai datilografando, e seus comentários, espontâneos e, às vezes, um pouco ingênuos, vão acabar afetando as “opiniões fortes” do escritor, que acaba por reconhecer:

Eu devia revisar inteiramente minhas opiniões, isso é o que eu devia fazer. Devia refugar as mais velhas, as mais decrépitas, encontrar novas, modernas para substituí-las. Mas onde se vai para encontrar opiniões modernas?

Um encontro casual, que se transforma de maneira gradual, e que modifica as pessoas em questão: algo de simples e corriqueiro, como na vida real. E, para aumentar ainda mais essa sensação de “vida real”, Coetzee faz um jogo com suas iniciais. O escritor é chamado por Anya de Señor C, ou de Juan — seu nome em espanhol, idioma da jovem filipina (note-se que a jovem também sofre de problemas lingüísticos, pois o idioma original das Filipinas é o tagalo). Duplicando-se no narrador, Coetzee também providencia um rival e antagonista, Mr. Aberdeen, o amante de Anya. Forte, sanguíneo, voltado para os lucros imediatos sem preocupações éticas, ele é detestado pelo Señor C, que, no entanto, não hesitaria em trocar de lugar com ele.

A leitura do romance necessita desenvolver uma estratégia para poder guiar-se no labirinto desenhado por Coetzee. É preciso ir escolhendo, entre páginas e parágrafos, até se alcançar um fio narrativo. O leitor não pode esperar passivamente que a história se conte: precisa colaborar com o texto. As “opiniões fortes” aparecem escritas em letras maiores, no alto das páginas. Abaixo, separadas por espaços e linhas pontilhadas, em letras menores, as tramas envolvendo o Señor C, Anya e o namorado Alan ficam em dois blocos também separados por espaços e pontilhados. No primeiro deles, a voz narrativa é a do Señor C; no segundo, é Anya quem narra. O todo não fica muito difícil de ler, depois que se descobre o fio de Ariadne, a estratégia que cada leitor prefere. Embora seu estilo não possa ser classificado de experimental, seus romances vêm, desde muitos anos, rompendo as convenções da narrativa tradicional.

Uma esperança
Os jogos formais e muitos dos temas abrangidos em Diário de um ano ruim estão sendo abordados já há algum tempo pelo autor. O protagonista envelhecido, a atração por mulheres mais jovens, a questão da morte, o isolamento físico e emocional impostos pelo modo de vida atual. Tudo isso vem sendo explorado, e nem sempre com sucesso, em livros curtos, de linguagem simples, mas densa. As opiniões fortes, expressas no romance, parecem ser os últimos sinais vitais de uma cultura em vias de extinção. Nota-se, porém, que, ao revelar o mal, Coetzee também oferece uma esperança ao propor o pensamento crítico como uma forma de resistência à destruição ocasionada por uma civilização baseada no consumo de massa. O estranho relacionamento entre o velho escritor e sua jovem e gostosa secretária faz surgir uma espécie de doçura humanística, que, imperfeita, embora, pode ser um tipo de solução para tempos modernos.

Longe de ser uma proposta sentimentalista, com seu humanismo endurecido pelas lições do autoritarismo e da arbitrariedade, Coetzee, aproveitando-se de sua crença de que a ficção é de natureza voyeurística, revela, através do jogo entre idéias e personagens em ação, a possível salvação de alguns seres humanos ainda não totalmente destruídos pelos males da civilização. Olhando com simpatia a vizinha, Mrs. Saunders, preocupada com a salvação dos sapos em tempos de seca, e com dupla ojeriza ao amante de Anya, seu rival e que, com um desmesurado apetite sexual, seu prazer em saber que sua mulher é desejada por outros homens, e sua desonestidade aproveitadora e tecnológica, El Señor C modifica e vai sendo modificado por esse micro-universo que o rodeia, ensinando com seu jogo de armar, mais do que com suas pomposas lições.

A longa carta de Anya, ao final, longe da influência de Alan, reconhecendo suas próprias qualidades, seria de um ingênuo otimismo se Coetzee não fosse um autor tão experiente. A carta, que vai sublinhando o “segundo diário”, composto por textos de natureza mais pessoais que revelam desde sonhos a impressões de leitura; desde questões como ter ou não uma língua materna ao sentimento de ser fotografado, é acompanhada pela narrativa do embate entre C, Anya e Allan, com o subseqüente rompimento entre os dois últimos. No entanto, a vitória é a perda, pois os textos subentendem a morte do Señor C. Esse velho, cansado demais para escrever um romance (“É demais para mim no estado em que estou hoje.”), silencia enquanto Anya menciona e fantasia a morte do escritor. Sua “secreta ária”, aquela que era mais do que uma vizinha, que era “aquela com quem ele queria fazer amor, do seu jeito de velho”, vai se colocar a seu lado na despedida final, apertando-lhe a mão e dando-lhe “um beijo de verdade, só para ele lembrar do que está deixando para trás.”

Coetzee se despede, sorrateiramente mata o autor, mas deixa sua obra, viva, capaz de cuidar do homem após a partida do próprio homem.

Diário de um ano ruim
J. M. Coetzee
Trad.: José Rubens Siqueira
Companhia das Letras
248 págs.
J. M. Coetzee
Nasceu na África do Sul, em 1940. Um dos mais respeitados escritores sul-africanos contemporâneos, autor de ficção, ensaios de crítica literária e memórias, publicou mais de uma dezena de livros, entre os quais Cenas de uma vida, No coração do país e Terras de sombras. Em 2003, recebeu o Prêmio Nobel de literatura. Também ganhou duas vezes com o Booker Prize, o mais importante da Grã-Bretanha e um dos principais da cena literária internacional.
Lúcia Bettencourt

É vencedora do Prêmio SESC de Literatura 2005 com o livro de contos A secretária de Borges (Record, 2006), do Prêmio Josué Guimarães (2007) pelos contos A mãe de ProustA caixa Manhã, e também do Prêmio Osman Lins da Cidade do Recife. É colaboradora do Rascunhoe do suplemento literário Idéias, do Jornal do Brasil. Publicou também Linha de sombra (Record, 2008). A novela O amor acontece será lançada em breve.

Rascunho