Paraíso perdido: a infância

Em que momento da vida, somos expulsos desta fase da vida impregnada de magia e escuridões?
Reprodução da “verdadeira” última tirinha de Calvin & haroldo, desenhada por uma fã da dupla.
01/05/2010

Pensar na infância perdida é perguntar: existiu mesmo? A infância é tão idealizada, à maneira de Casimiro de Abreu e de muitos provérbios chineses, e por tanta gente, que provavelmente não passa de ficção. Não sei se os especialistas já chegaram a uma boa definição de infância, mas sei que, se ela continuar se confundindo com a de éden, noventa por cento da população mundial nunca teve infância.

Hmmm. Talvez eu esteja exagerando. Talvez exista realmente, no início de cada vida humana, algo parecido com o lugar das delícias dos místicos. O jardim paradisíaco da maioria das cosmogêneses, o estado uterino do qual cedo ou tarde todos acabam expulsos. Paraíso perdido, infância partida. Nesse caso, a questão muda bastante. Agora a pergunta é: infância, em que momento somos expulsos dela?

Pensar na infância perdida é pensar em Nojoud Ali, a menina iemenita que, aos dez anos, casada com um homem vinte anos mais velho do que ela, teve de brigar na justiça para conseguir o divórcio. Sua história foi contada no livro Nojoud, dez anos, divorciada, da jornalista franco-iraniana Delphine Minoui. O casamento de uma menina com um homem maduro é uma prática comum no Iêmen, no Afeganistão, no Egito e em outros países da região, diz Delphine. Dos fatores que explicam essa prática, a jornalista destaca a pobreza e os obstáculos que vedam o acesso à educação.

Pensar na infância perdida é pensar em monsenhor Barbosa e nas crianças abusadas sexualmente. É pensar em Isabella Nardoni, aos cinco anos atirada pela janela do sexto andar. É pensar nas crianças obrigadas a trabalhar em olarias e carvoarias do país.

Pensar na infância perdida é pensar na pequena Alice Liddell e em sua paixão infantil pelo amigo vinte anos mais velho, o senhor Charles Dodgson. A menina era fascinada por esse sujeito solitário, tímido e gago, que, em plena era vitoriana, adorava fotografá-la — ela e outras meninas — em poses provocantes. O senhor Dodgson, por seu lado, retribuía essa fascinação convidando Alice e suas irmãs para passeios e piqueniques, e inventando histórias cheias de trocadilhos, jogos de palavras, quebra-cabeças, paródias e alusões culturais. Nessas horas, longe do olhar intimidador dos adultos, o senhor Dodgson se transformava no divertido senhor Lewis Carroll.

O novo filme de Tim Burton, Alice no País das Maravilhas, na verdade devia se chamar De volta ao País das Maravilhas e o que Alice reencontrou lá. Afinal, a protagonista está retornando, aos dezenove anos, ao mundo onírico das duas obras-primas do senhor Dodgson, melhor dizendo, do senhor Carroll: Alice no País das Maravilhas e Através do espelho e o que Alice encontrou lá.

Lendo a mais recente tradução da primeira Alice, realizada por Nicolau Sevcenko e ilustrada magistralmente por Luiz Zerbini, só agora percebi como seu desenlace é melancólico. MUITO melancólico, quero dizer. Antes, enquanto eu prestava atenção apenas no Coelho Branco, no Chapeleiro Louco, no Gato de Cheshire, na Rainha de Copas e nos demais personagens extravagantes, esse arremate sem pirotecnia passou totalmente despercebido. É preciso diminuir a luz ofuscante da extravagância para perceber o azul delicado da tristeza.

No final de Alice no País das Maravilhas a pequena protagonista acorda quase sem fôlego, respira aliviada e conta seu sonho intenso e vertiginoso à irmã, que esteve o tempo todo ao seu lado. Então Alice vai para casa — está na hora do chá — e o foco narrativo passa para a irmã mais velha. Que fecha os olhos e devaneia. Certos sons da realidade aborrecida subitamente se transformam, trazendo de volta o sonho que Alice acabou de contar. Mas a irmã sabe que, no momento em que erguer as pálpebras, toda a magia desaparecerá, Alice irá crescer, casar e ter filhos, e o País das Maravilhas será apenas uma história fabulosa que ela contará às crianças de olhinhos arregalados.

Na crista da onda provocada pelo filme de Tim Burton, chegou ao Brasil Eu sou Alice, de Melanie Benjamin. Não se trata de uma biografia de Alice Liddell, mas de um delicado romance bem ao gosto dos pós-modernistas, misturando fatos e ficção. Certa tensão erótica atravessa o livro todo. E vibra, quase sem controle, em duas ou três passagens mais picantes. Como na cena em que Alice, aos sete anos, “encontra a liberdade” ao se desvencilhar dos sapatos e das roupas limpas, de boa mocinha de família, pra usar um vestido sujo e amarrotado. Quem a convenceu a trocar de roupa e a posar para uma foto, “vestida de ciganinha”, foi o gentil senhor Dodgson.

Eu Sou Alice não é apenas sobre a perigosa e profunda amizade entre um homem e uma menina. É também sobre o pavor de crescer. “Como é trágico que a infância tenha que acabar um dia”, lamenta Alice, agora aos onze anos, durante o mítico passeio de barco de 4 de julho de 1862, no qual o senhor Dodgson, para entreter as irmãs Liddell, inventou uma divertida história sobre um país estranho e absurdo.

Pensar na infância perdida é pensar em Charlie Brown e Snoppy. Na Mafalda. Na Mônica e no Cebolinha. Mas principalmente em Calvin & Haroldo, protagonistas das tiras criadas por Bill Watterson, que soube como poucos flagrar a delicadeza da imaginação. A última tira da dupla Calvin & Haroldo saiu em 1995. Então Bill sumiu do mapa. Foi fazer outra coisa qualquer. Parou de desenhar, ir a convenções, dar autógrafos, ler as cartas dos fãs. Tirou o telefone do gancho, feito Salinger e Raduan Nassar.

O pequeno Calvin, da primeira a última tira, jamais se deixou enquadrar pela sociedade adulta, boçal em todos os sentidos. Sempre foi um grande e esperto renitente: inventava mil situações para evitar qualquer obrigação, principalmente as escolares. A marca visível desse inconformismo era seu amigo imaginário, Haroldo, um tigre de pelúcia que ganhava vida, garras e dentes, sempre que não havia adultos por perto. Os dois eram o Quixote e o Sancho Pança da cultura de massas. Então, quando Bill, o recluso, encerrou a carreira da dupla, o que você acha que aconteceu?

Algo surpreendente. Algo verdadeiramente poético.

Uma estudante de artes plásticas — assim reza a lenda —, apaixonada por Calvin & Haroldo, homenageou a dupla desenhando outra tira. A verdadeira última tira. Que, ao cair na web, logo ficou conhecida como A tira mais triste de todos os tempos. Com apenas quatro quadrinhos a jovem fã conseguiu representar, com um vigor digno de um poderoso haicai, a morte de Haroldo, e, por extensão, a de Calvin, e, por extensão, a da fantasia infantil.

Crescer é muito triste.

Luiz Bras

É escritor. Autor de Sozinho no deserto extremo e Paraíso líquido, entre outros.

Rascunho