Paraíso construído

“As avós”, de Doris Lessing, narra a história de duas amigas inseparáveis
Doris Lessing, autora de “As avós”
01/07/2008

Publicado em inglês sob o mesmo título (The grandmothers), As avós, de Doris Lessing, aparece no Brasil apenas com uma das quatro histórias que compõem, originalmente, a publicação.

A Companhia das Letras classifica a obra como romance, mas o texto é considerado, pelos críticos de língua inglesa, como uma novela, sem dúvida por causa de sua pequena extensão, mas também graças à etimologia da palavra “novela”, que tem a ver com novidade. Mas será que ainda se pode considerar novidade esses textos que se preocupam com o feminino, e que giram em torno de uma espécie de utopia onde a sociedade aceita, embora não compreenda bem, um matriarcado idealizado e fantasioso, tingido de lesbianismo e de édipo?

Talvez a novidade esteja na maneira despreocupada e “natural” em que se descrevem comportamentos fronteiriços aos tabus abordados. A história de As avós se passa num lugar paradisíaco; um “pequeno promontório”, banhado por um “mar brincalhão”, bem diferente do oceano bravio que rugia além da “bocejante baía”, e trata de duas mulheres, amigas desde o tempo do colégio, que não se separam, nem mesmo ao casar. A maternidade também se revela mais um vínculo entre as duas, que tomam como amantes o filho uma da outra. Finalmente, elas resolvem abdicar deste arranjo não-questionado para que seus filhos se casem e procriem. Cada um tem uma filha, e essas crianças, quase que imperceptivelmente, passam à esfera de fascínio que as duas mulheres parecem possuir, sem se esforçar para tal. Inesperadamente, algumas cartas antigas vão parar nas mãos de uma das noras, que se horroriza e resolve interromper a situação idílica em que a história se abre.

O que mais causa estranhamento, em minha opinião, não são as ousadias do texto — que, em si, não é mais tão ousado — na Grécia antiga, em tempos imemoriais, Édipo já tinha levado a mãe para a cama, e tinha até tido uma prole inteira com a fogosa Jocasta, que reservava a castidade para o nome, pelo visto. O estranho do texto está em tudo aquilo que é deixado de fora da história. Tal como o mar bravio e ameaçador, tudo está contido pela “barreira dos dentes”, imagem de Homero, mas que cabe à perfeição neste caso. Nesta baía as águas são mansas, o sol é intenso, tão intenso que as personagens de Lessing não têm uma palheta de cinzas: são perfeitamente recortadas, de encontro ao cenário encantador, e ofuscam com sua beleza e serenidade, “gente serena e radiante, como são os que sabem usar o sol”, ou deusas e deuses imortais, vivendo neste quase Olimpo africano. Nesta ilha de bem-aventurança, eles não são os únicos despreocupados. À sua volta espalham-se “pessoas tão felizes quanto eles”, vivendo vidas atraentes:

E essas vidas eram de uma facilidade incrível. Pouca gente no fundo tem uma vida tão agradável, tão sem problemas, tão sem censuras: ninguém, nesse litoral abençoado, passava a noite acordado, chorando por seus pecados ou por dinheiro, muito menos por comida. Que gente mais bem-apessoada, brilhante e suave de sol, de esportes, de boa comida. 

Quanta diferença da África que Doris Lessing retrata na sua conferência de aceitação do prêmio Nobel. Lá se descrevem as dificuldades, as faltas, a miséria em toda sua crueza: ela fala de amigos escritores, de pele negra, que aprenderam a ler sozinhos, nos rótulos de latas apanhadas no lixo. Conta-nos de um que cresceu numa área rural destinada aos negros no Zimbábue, numa terra seca e árida, onde só logram brotar esparsos arbustos. Nesse ambiente desolado, ele encontrou uma enciclopédia infantil jogada no lixo, e foi assim que conseguiu se “educar”. Ela nos conta da corrupção do governo de Mugabe, um regime de terror, mas onde, apesar dos pesares, numa vila em que as pessoas tinham ficado três dias sem comer, ainda assim falavam de livros e da maneira de obtê-los, e de como alcançar educação. Certamente que esses retratos foram laboriosamente excluídos da narrativa, e somente suspeitamos que o mundo pode não ser tão idílico quando o ex-marido de Roz decide ir morar fora desse paraíso, numa terra árida:

Lá se foi Harold para a universidade, rodeada não por oceanos e ventos marítimos, não por canções e lendas do mar, e sim por areia, mato ralo e espinhos.

Enquanto isso, no paraíso habitado por Roz e Lil, a perfeição se aprimora com a transformação dos dois meninos em belos adolescentes: “[…] e eram os dois tão lindos que as duas endireitaram o corpo na cadeira para olhar uma para a outra, dividindo a incredulidade”. Digressando sobre o assunto da beleza juvenil, diz a autora: “A beleza de jovens rapazes — ora, isso não é coisa assim tão fácil. As meninas sim, cheias de óvulos tentadores, as mães de todos nós, isso faz sentido, elas têm de ser belas e em geral o são, mesmo que só por um ano, ou um dia. Mas os meninos — por quê? Para quê? Há um momento breve, por volta dos dezesseis, dezessete anos, em que eles têm uma aura poética. São como jovens deuses”.

A narrativa se constrói, então num cenário, separado do mundo por esses “dentes” podres, onde tudo se arranja como numa utopia. Os conflitos se desfazem com pequenas rusgas — o primeiro se soluciona com uma “dentada” aplicada por Ian na perna de seu par, Tom. Cenhos franzidos, viagens, palavras caladas e traços de lágrimas são passageiros, e a vida vai se ajustando, sem custos maiores. Muitos anos se passam antes que outra “dentada” seja aplicada, desta vez na perna de Ian, pelas rochas que encerram o mundo paradisíaco. A sensação de irrealidade perpassa todo o texto, está presente no cérebro dos leitores e nas palavras dos próprios personagens. Aqui e ali aparecem pequenas frases reveladoras dessa situação mítica. Veja-se, por exemplo, como a idéia de envelhecimento se transforma em alguma hipótese alheia à vida engendrada nesta sociedade perfeita:

[…] um dia, quando a viu deitada sobre os travesseiros, logo depois de concluírem o ato do amor, alisando a pele envelhecida e solta do braço, ele deixou escapar um grito, agarrou-a e exclamou: “Não, não faça isso, não faça isso, nunca pense numa coisa dessas. Eu não vou deixar você ficar velha.”[…] “Não, Roz, por favor, eu amo você.”

E por isso eu não posso envelhecer, é isso Ian? Não tenho permissão para envelhecer?

Essa sensação de onipotência provoca uma espécie de estranhamento que nos faz desejar “corrigir” essa fábula. E, dentro da narrativa, as coisas parecem tender para esse mesmo desejo, com o casamento dos dois rapazes com moças que eles encontraram fora desse mundo mítico, lá onde a paisagem se muda e resseca. Inconformado com a expulsão do paraíso, Ian protesta: “Por quê, para quê? Nós somos perfeitamente felizes. Porque você quer estragar tudo?”

Em verdade, desde o início pairava sobre o grupo a sensação de que a perfeição era passageira, e estava fadada a desaparecer. A beleza efêmera, que se surpreende um ano, ou um dia, é paralela à felicidade passageira, pois há sempre um preço a ser pago:

Lil disse a Roz que se sentia tão feliz que isso a deixava com medo. “Como é que algo pode ser assim tão maravilhoso?”, cochichou ela, com medo de ser ouvida — por quem? Não havia ninguém por perto. O que ela queria dizer, e Roz sabia, é que uma felicidade assim tão intensa tinha que ter seu castigo.

Mas o castigo não chega, as coisas se arranjam surpreendentemente fáceis, nesta fábula de um édipo que se olha no espelho, e que resolve os tabus recriando um cruzando as imagens obliquamente. A suspeita de homossexualidade, que parece incomodar Lil, se dissolve, embora atinja, de modo mais suave, o relacionamento dos rapazes, que fazem tudo juntos, que se pegam em brigas, se tocam e depois resolvem suas neuroses nos corpos de suas respectivas mães. As Jocastas do texto evitam o próprio fruto de seus úteros, mas levando para a cama o filho da outra, também estão realizando suas fantasias mais duradouras. O intrigante é que a autora tenha resolvido dar ao seu livro o título de As avós. Se formos analisar o texto, há muito pouco sobre sua vida de avós, e isso chama a atenção, mais uma vez, sobre o que é deixado do lado de fora da narrativa. E, se achamos que o espelhamento é um dado essencial na construção da novela, já que os pares se espelham e multiplicam, podemos conjecturar que esse espelho se volta para a própria autora: nas avós, nessas mulheres já passadas dos sessenta anos, que podem imaginar idílios em lugares idílicos, as pulsões ainda se revelam com toda a força e exuberância necessárias para a vida. E são essas as forças que, com mais ou menos aptidão, sustentam a mão da escritora octogenária, avó de todas elas.

As avós
Doris Lessing
Trad.: Beth Vieira
Companhia das Letras
97 págs.
Doris Lessing
Quem quer que tenha visto o pequeno filme publicado no Youtube mostrando Doris Lessing, uma velhinha “das antigas”, recebendo o aviso de que ganhara o prêmio Nobel de 2007, se surpreende com sua reação: “Já ganhei todos os prêmios importantes na Europa” (every bloody one), esnoba. “Assim completo o royal flush”, diz ela dando de ombros, e entrando em casa, carregada de compras de supermercado, descabelada, demonstrando que é muito desagradável que essas notícias grandiosas peguem as pessoas no meio de tarefas tão prosaicas. Baixinha, de cabeça branca, corpo que já perdeu as formas, boca meio de lado e uma maneira muito rápida de falar, dão a impressão de uma pessoa frágil, simpática e doce. Mas Doris May Lessing é desbocada e direta, diz o que pensa, sem temores nem pudores. No seu discurso de aceitação do prêmio, ela ressalta a fome de livros que grassa na África. Ao lado da falta de comida para o corpo, há uma falta crônica de alimento para a alma, alimento que permita que as pessoas continuem sonhando, continuem humanas. Enquanto isso, na Inglaterra, os alunos de escolas com fartas bibliotecas, não lêem. Esses se impedem de sonhar, se desumanizam num processo que os impedirá de pensar e reagir, dominados pelos mecanismos de poder já denunciados por Foucault. Talvez seja por isso que a ganhadora do Nobel de 2007 tenha intitulado sua conferência de Sobre não ganhar o prêmio Nobel (On not Winning the Nobel Prize). Não é à toa que esse prêmio, ultimamente, esteja sendo distribuído a autores oriundos da África, da Turquia, da Índia, de países fora do centro de poder, onde a cultura do livro ainda permanece viva. Para não desmentir o título acima de biografia, a autora nasceu no Irã (antiga Pérsia) em 1919, mas passou sua infância no Zimbábue (antiga Rodésia), para onde foi com a família em 1925. Tendo se mudado para Sallisbury em 1937, casou-se com Frank Wisdom e teve dois filhos. Separada em 1943, casou-se de novo, em 45, com Gottfried Lessing, comunista, com quem teve outro filho, mas, ao final desse casamento, em 1949, ela mudou-se para Londres e iniciou sua carreira literária. Devido a sua campanha contra armas nucleares e contra o apartheid, ela esteve banida da Rodésia por muitos anos. Seus romances e contos abrangem uma gama variada de assuntos, sendo que os mais conhecidos são seus livros de temática feminista e outros que se enquadram na categoria de ficção científica. Para demonstrar as dificuldades enfrentadas por escritores iniciantes, ela escreveu duas novelas sob o pseudônimo de Jane Somers e os enviou para sua editora, que os rejeitou. No entanto, foram aceitos por outras editoras nos EUA e mesmo na Inglaterra
Lúcia Bettencourt

É vencedora do Prêmio SESC de Literatura 2005 com o livro de contos A secretária de Borges (Record, 2006), do Prêmio Josué Guimarães (2007) pelos contos A mãe de ProustA caixa Manhã, e também do Prêmio Osman Lins da Cidade do Recife. É colaboradora do Rascunhoe do suplemento literário Idéias, do Jornal do Brasil. Publicou também Linha de sombra (Record, 2008). A novela O amor acontece será lançada em breve.

Rascunho