Outro Melville

Histórias menos conhecidas do autor de "Moby Dick" são lançadas num bom volume de contos
Herman Melville, autor de “O violinista e outras histórias”
01/05/2011

Vocês podem chamá-lo de Melville. O autor de uma das aberturas mais marcantes da literatura universal, Herman Melville, é daqueles nomes cuja representação se confunde com o magnetismo exercido por sua magnum opus — no caso, o clássico Moby Dick, narrativa sobre uma obsessão que transcende as páginas da literatura para tomar forma em exemplos mais cotidianos. Até mesmo em seriados televisivos, como é o caso da comédia Seinfeld, a idéia de “baleia branca” aparece nos diálogos dos personagens. Se um livro alcança esse status, não é pouca coisa dizer que seu autor conseguiu atingir um patamar elevado na literatura, sem levar em consideração toda a relevante fortuna crítica que se faz a respeito do texto. Mais recentemente, a propósito, os leitores brasileiros puderam, com efeito, descobrir outras obras que compõem o edifício literário do autor. Assim, textos como Baterbly, o escrivão (cuja edição mais prestigiosa é a da CosacNaify) mostram que a força criativa do autor reside não apenas no seu épico romance, mas, também, nas narrativas curtas. Na apresentação de O violinista e outras histórias, Caetano Galindo desenvolve um pouco essa reflexão. Nas palavras do professor e tradutor, “a reputação inquestionável de Moby Dick tem servido também para ocultar o restante de uma obra que guarda surpresas interessantíssimas”.

Em O violinista e outras histórias, o leitor tem a chance de descobrir mais dessas surpresas interessantes. A seleta da editora Arte e Letra traz sete histórias que salientam as características já conhecidas de Melville, ao mesmo tempo em que apresenta sua versatilidade nas histórias curtas. Aqui, de antemão, o leitor não encontrará um texto norteador, daqueles que já vem com as notas de rodapé sublinhadas e comentadas pela crítica especializada. Em vez disso, chama a atenção o fato de que o autor envolve seus textos com certa aura de mistério, de maneira a fazer com que o seu desfecho seja inesperado. Não seria o primeiro escritor a fazê-lo. O que se nota com destaque, no entanto, é que em Melville as estratégias da narrativa se transformam em ironia em vez de convenção literária. Um belo exemplo disso é o conto que abre o volume: O violinista. A abertura do conto traz uma espécie de lamento, conforme segue: “Então meu poema é maldito e a fama imortal não é para mim! Sou um ninguém para todo o sempre. Destino inexorável!”. Lido apenas como trecho pertencente à literatura do século 19, mesmo os leitores mais experimentados tendem a ver aqui a simples execução da linhagem romântica: o eu lírico e a voz subjetiva do narrador. A traição a esse lugar-comum é que faz do conto uma peça interessante. Afinal, à medida que a história avança, o leitor é apresentado a um contraponto desse primeiro personagem, que, como se lê, tem mais a mostrar sobre o fazer artístico do que reza a simplória subjetividade.

De forma semelhante, em O homem dos pára-raios, lê-se uma história cuja mensagem principal pode ser a do elogio ao ceticismo. O mistério que envolve o visitante de uma noite chuvosa aos poucos vai sendo revelado como um embuste que se torna assustador graças à fé cega (e ao temor absoluto) que, grosso modo, o ser humano possui em relação ao desconhecido. Dessa maneira, o que se inicia como um diálogo de dois, logo se transforma em duelo entre duas visões de mundo, e fica claro para o leitor qual é a posição tomada pelo narrador: “o homem dos pára-raios ainda habita a região; ainda viaja em dias de tormenta para, audaciosamente, explorar os temores humanos”. O conteúdo ou sentido dos textos não pode nem deve ser confundido com o estilo do autor. Em verdade, nota-se na prosa de Melville um autor consciente do poder e do uso das palavras. Dito de outra maneira, o autor não coloca em risco a beleza literária do texto sob o argumento de que a mensagem é mais importante. A utilização da descrição em detalhe, mais do que caracterizar um cenário ou sublinhar o estilo ao qual o autor pertence, serve bem para provocar no leitor um efeito de envolvimento com a história.

Se é verdade que os escritores tentam isso, é necessário lembrar que nem todos alcançam esse intento, e Melville é um desses poucos. Num conto como Eu e minha chaminé, os leitores têm a comprovação disso constantemente. Isso porque o texto não teria o mesmo efeito não fosse pelas descrições que servem a dar uma espécie de tecido peculiar à narrativa:

Embora larga, como a chaminé se mostra acima do telhado, não se tem idéia de sua extensão na parte de baixo. A base, no porão, forma um quadrado, cujos lados medem doze pés; donde se conclui que ela cobre uma área de cento e quarenta e quatro pés.

Galeria dos grandes
Já no texto A varanda, o escritor opta pela traição das expectativas dos leitores, algo que geralmente é pouco valorizado na observação dos estilos e da capacidade de imaginação mesmo em se tratando de narrativas curtas. De volta ao prefácio, Caetano Galindo acrescenta que o conto merece estar na galeria de grandes momentos da prosa em língua inglesa. Não é por menos, muito embora a tradução tenha escorregado e deixado passar trechos como “Outra alternativa”, algo que não pertence ao texto original. De todo modo, observa-se aqui características elementares das formas breves de Melville: as primeiras impressões do mundo e da realidade, a partir de certo momento, mostram-se visões equivocadas, não resistindo à evidência dos fatos, ou, à maneira do autor, um ponto de vista irônico sugerido pelo autor. Como se trata do conto mais extenso do livro, é concedida a chance de ver essa capacidade narrativa do autor em diversos momentos.

A leitura contemporânea de textos como O paraíso dos solteirões e O inferno das donzelas, contos que encerram o volume, pode servir para eliminar vestígios de incorreção política por parte do autor. Afinal, permanece a capacidade de o autor subverter o que o público médio espera e, no primeiro caso, observar o cinismo da sociedade, enquanto, no segundo, mostra a condição à qual as mulheres são submetidas. Trata-se não apenas de uma leitura válida, como também necessária, a depender do objetivo da interpretação. Uma leitura menos sofisticada do ponto de vista acadêmico há de constatar, no entanto, que esse alvo foi alcançado mais pelo desejo de subverter a ordem do que para prestar continência à certa correção moral. Eis um dado curioso: para reverter os costumes daquele tempo, talvez o autor tenha se adequado aos costumes do tempo futuro. Talvez seja a prova mais determinante de que os textos de Herman Melville permanecem tanto pela fama de seu grande romance como também por seu talento literário em diversas formas, como em O violinista e outras histórias.

O violinista e outras histórias
Herman Melville
Trad.: Lúcia Helena de Seixas Brito
Arte e Letra
168 págs
Herman Melville
Nascido em Nova York em 1819, Herman Melville foi marujo e só mais tarde se tornaria escritor. Viveu ainda no Havaí, onde foi empregado de um escritório por quatro meses. Essas experiências, de uma forma ou de outra, apareceram em seus livros mais célebres, como Moby Dick e Baterbly, o escrivão. Além desses livros, destaca-se Billy Budd, obra que marcou o redescobrimento do autor. Melville morreu em 1891.
Fabio Silvestre Cardoso

É jornalista e doutor em América Latina pela Universidade de S.Paulo. Autor de Capanema (Record, 2019)

Rascunho