Onde a história se repete

“Predadores”, de Pepetela, mostra que temos mais em comum com os países de língua portuguesa que apenas o idioma
Pepetela, autor de “Predadores”
01/08/2008

Há muita controvérsia quando alguém afirma que a origem de todos os males do Brasil está na colonização portuguesa. Quem é a favor desta afirmação normalmente levanta a voz dizendo: “olha como o Sul do Brasil é diferente, lá os italianos e alemães deram outro tom à sociedade” (meu comentário pessoal é que só se foram os italianos do passado. Os do presente, liderados por Berlusconi, são uma tragédia). Claro, quem é a favor disso esquece todos os problemas com corrupção, com burocracia e ineficiência do estado que estão distribuídos de maneira igual por todo o nosso país.

No entanto, quando se conhece a realidade das outras ex-colônias portuguesas e até mesmo de Portugal, torna-se evidente que não há o que negar: somos portugueses ainda hoje. Claro, Portugal, desde que se integrou à União Européia, deu saltos gigantescos rumo à civilização. Mas não se pode dizer o mesmo de suas ex-colônias. Se o leitor quisesse conhecer algumas das similaridades que temos com Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné Bissau, São Tomé e Príncipe e Timor Leste, este já seria um ótimo motivo para se ler Predadores, do angolano Pepetela, um dos mais conhecidos e respeitados autores africanos da atualidade.

Ler o livro é como repassar a história ruim do Brasil de maneira rápida e condensada, em que os nossos quase 200 anos de independência são percorridos nos pouco mais de 30 anos da independência angolana, que data de 1975. Predadores é um quadro épico, daqueles que contam a história de uma civilização. Felizmente, Pepetela não se prende aos heróis dos livros de história, mas aos personagens do nosso cotidiano, que estão ao nosso lado agindo com mando e desmando, ao sabor dos ventos. E como o livro é muito bem escrito, temos a impressão de estar vendo uma caricatura do Brasil, um outro país, infelizmente tão real quanto o nosso, em que o jeitinho, o compadrio, o suborno, o uso do poder e do dinheiro público para fins próprios são a regra e não a exceção.

Predadores, se colocarmos o livro em uma ordem cronológica, conta a história de Angola de 1974 a 2004, através dos atos e fatos de Vladimiro Caposso, um personagem cujas ascensão e queda acompanhamos ao longo da narrativa. É através de Vladimiro, de seus filhos, em especial da filha predileta, Mireille, do antigo pretendente de sua filha, Nacib, e de alguns outros personagens importantes, mas não tão presentes à narrativa que acompanhamos a história de Angola.

Construção da história
Pepetela, no entanto, não nos entrega a história cronológica de mão beijada, e vai indo e voltando no tempo para contar os fatos do seu país e de seus personagens. O primeiro capítulo do livro acontece em setembro de 1992, um pouco antes das primeiras eleições do País desde a independência, em que a maior parte dos angolanos ligados ao regime totalitário e enriquecidos graças a ele levava para aonde podiam todas as suas riquezas, com medo de retaliações caso a oposição vencesse. Deste ponto inicial, em que vemos Caposso muito rico, com dinheiro no exterior, com serviçais vários dispostos a qualquer serviço para seu patrão, quase uma repetição do sistema escravo que havia no Brasil, Pepetela vai usando a trajetória de seus personagens para construir a história da Angola.

O caminho percorrido por Caposso é emblemático de uma classe que surgiu em diversos países colonizados por europeus logo após a sua independência (e neste ponto, temos que lembrar que os italianos dominaram o que hoje é Etiópia, Eritréia e Somália; que os alemães tiveram o que hoje é Tanzânia, Ruanda, Burundi, Namíbia e Togo; os ingleses outro tanto, os belgas também, os franceses também, e pouquíssimos em boa situação. Ou seja, a teoria de que os europeus que vieram ao Sul do Brasil produzem uma sociedade diferente é um tanto quanto falha). Caposso, desde o início da guerra pela independência, não quer se meter com política; prefere ficar na loja de Sô Amílcar, um português que acaba permanecendo em Angola mesmo após a família ter retornado a Portugal. Quando a independência é conquista pelo Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), Caposso percebe que é necessário se filiar ao partido para conseguir ter acesso a alguma chance de melhoria de vida. Para isso, ele inventa uma origem, recria o seu nome, que de José passa para Vladimiro, em homenagem ao líder russo, reinventa a história de seu pai, que de enfermeiro sem diploma passa a lutador por melhores condições de vida da população, marxista ferrenho — daí o nome do filho — e perseguido pelos portugueses, tudo isso para conseguir algo mais para si.

Desse momento em diante, Caposso enriquece, sempre às custas do estado angolano. E, como se fosse a cumprir um ditado em que tudo o que sobe tem que descer, Caposso vai vendo o seu poder e sua influência diminuírem à medida que o século 21 avança. De temido e poderoso, Caposso passa a ser menosprezado pelos novos ocupantes do poder e deixado de lado pelos antigos sócios. De um homem capaz de comprar a sua segurança e ignorar o povo ao redor, Caposso passa a ser um homem que vive de seu passado, sem conseguir ter forças de mudar o seu futuro. São os ventos novos da civilização e da boa governança que vão diminuindo o poder dos antigos aproveitadores do estado.

Ficção e realidade
Ainda que seja uma criação ficcional, Caposso teria tudo para ser um personagem verdadeiro, seja em Angola seja no Brasil. Talvez o mais assustador em Predadores é reconhecer em Caposso uns tantos homens de negócios cujo sucesso viceja à sombra do poder público. Assustador porque vemos a história se repetir, com personagens diferentes, em vários lugares. A ficção é muito próxima da realidade, muito provavelmente devido à experiência pessoal de Pepetela. O escritor combateu como guerrilheiro da MPLA pela independência. Ele também foi membro do governo de Agostinho Neto, primeiro presidente da república. Pepetela deve ter conhecido vários Caposso ao longo de sua vida, e sua narrativa, ainda que imaginada, deve ser uma coletânea de personagens verdadeiros. E há esperança na sua história, pois junto aos Caposso há também os Nacib, jovens inteligentes que aproveitam todas as chances para crescer de maneira honesta, sem procurar os atalhos ilícitos que parecem tão mais fáceis.

O vaivém de Pepetela, longe de atrapalhar a leitura de Predadores, contribui para tornar as 552 páginas do livro em um passeio altamente prazeroso, em que não sentimos o tempo passar. Pepetela vai deixando o leitor ansioso por iniciar logo o novo capítulo para que saibamos o que acontecerá com nossos personagens e com o país onde vivem, e assim as páginas vão sendo devoradas, como diz o escritor Francisco Nunes, na contracapa do livro. E são devoradas mesmo, temos ânsia de saber o que acontecerá.

Outro detalhe interessante do livro é que, de vez em quanto, Pepetela se mete no meio de seu texto para nos dizer alguma coisa, seja para nos dar um conselho a respeito de flashbacks e flashforwards, seja para interromper nosso pensamento quando ele está para cair em algum lugar-comum da literatura, seja apenas para dar um recado sobre um personagem que lá na frente do livro se tornará importante. Estas breves intervenções, longe de quebrar o ritmo, parecem colocar-nos diante do autor, em um diálogo que normalmente não ocorre.

Enfim, Predadores, lançado originalmente em 2005 em Angola e Portugal, é um grande livro, esclarecedor sobre quem os brasileiros somos, ainda que contando a realidade de um outro país. O livro faz parte do projeto da coleção Ponta-de-lança, apoiada pelo Instituto Português do Livro e das Bibliotecas, de trazer aos leitores brasileiros outros autores lusófonos. Como bem diz a explicação do projeto, “não se entende o Brasil sem a África ou Portugal, da mesma maneira que não se entende Angola ou Cabo Verde sem a participação do Brasil”.

Predadores
Pepetela
Língua Geral
552 págs.
Pepetela
Pseudônimo de Artur Carlos Maurício Pestana. Ele nasceu em Benguela, Angola, em 1941. Em 1958, parte para Lisboa, onde ingressa no Instituto Superior Técnico (Engenharia), que freqüenta até 1960. Em 1961, transfere-se para o curso de Letras. Neste mesmo ano acontece, em Luanda, a revolta que origina a Guerra Colonial. De retorno ao país, em 1963, o autor se junta ao MPLA. Entre 1960 e 1970, ele freqüenta a Casa dos Estudantes do Império, em Lisboa, berço dos ideais de independência. Exilado na França e na Argélia, posteriormente gradua-se em Sociologia. Com a independência de seu país, em 1975, Pepetela é nomeado Vice-Ministro da Educação no governo de Agostinho Neto. Em 1997, recebe o Prêmio Camões pelo conjunto da sua obra. O Brasil reconhece seu talento em 2002, quando lhe outorga a Ordem do Rio Branco. Atualmente é professor de Sociologia da Faculdade de Arquitetura de Luanda, onde vive. Outros trabalhos seus são Mayombe (1980), Geração da utopia (1992), O desejo de Kianda (1995) e Jaime Bunda, o agente secreto (2002).
Adriano Koehler

É jornalista. Vive em Curitiba (PR).

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