O primeiro monoteísmo da história (4)

Afinal, quem era a bela Nefertiti, a “esposa-principal” de Akhenaton?
01/10/2008

A Nefertiti de Berlim se conserva na cidade que se orgulha de possuir a Gioconda do Nilo, rainha a anunciar um sorriso — também uma sombra — que suaviza a expressão do olhar meio perdido e mais qualquer coisa tão misteriosa quanto o prodígio de modelagem, em pedra calcária mole e gesso, guardado em temperatura constante debaixo do abismo do vidro.

A pintura, sobre o gesso, é um prodígio não menor, um milagre que captou o tom róseo da pele, enquanto o azul claro da coroa faz a cabeça da rainha como que a planar numa nuvem de luz refratada da penumbra. Tudo num indefinível equilíbrio de linhas, desde aquela que se alonga da testa (ou da parte de trás da cabeça, culminando no barrete) até a resolução do contraste entre peso e leveza, porte e ar sereno. E, como se o escultor soubesse que só uma tensão deveria reforçar o tema de suspensão meditativa, o seu talento soube desenhar “no ar” a coluna esguia do pescoço — que é parte da maravilha de um “mero” modelo de escultor… porque essa obra-prima que não passava de um esboço, uma maquete em forma de busto (que o arqueólogo Borschardt extraviou para as riquezas do império austro-húngaro).

Berlim estava distante, com a cabeça da rainha entre os cacos do Muro grafitados pelo desespero da juventude — mas eu podia caminhar alguns metros, da biblioteca atravessada por feixes de suspensa poeira, até a sala 3 do museu, na sua azáfama do pleno horário da pressa que visita tesouros antes do almoço e entre dois banheiros — e poderia ver, ali mesmo, próxima como a borboleta insistente entre as janelas, um outro esboço-modelo (este, não-terminado) que permanece no Egito, no museu nativo, de cacos conservados entre as vitrines de Mariette, ainda.

Apesar da aura de obra-prima que justificadamente a cerca, a Nefertiti da Alemanha tem qualquer coisa de demasiado acabada, na nova sala reservada só para ela. Ali, naquele ambiente talvez “enfatizado” demais, se, num primeiro momento, o busto nos “tira o fôlego”, sob a luz teatral dos berlinenses, ao mesmo tempo se dá alguma quebra, algum afastamento daquela mulher na “nuvem do seu mistério”.

Ao contrário, na sala 3 do museu do Cairo, no fundo do grande hall de entrada, é possível encontrar a outra peça, a inacabada, que também retrata a mesma altiva serenidade da rainha de Berlim — agora em meio ao “ordenado desleixo” (tão do agrado, disfarçado, do Dr. Mohamed Saleh). Mas, aqui, nesta peça perdida, há algo de mais natural conferindo uma certa magia ao efeito da modéstia — num “modelo” sem pintura e ainda com as marcas, com os riscos não apagados e outros sinais do trabalho do artista.

Algo eterno
Sabe-se o nome do presumível autor de ambas as maravilhas: Thutmés, escultor, em cuja casa foi encontrada a cabeça pintada, escondida num bloco de gesso com apenas uma pequena indicação de conter “algo eterno” — conforme classificou Ludwig Borschardt, autor da descoberta, nos trabalhos de escavações em Amarna (1907-1914).

Ambos os bustos, com toda certeza, saíram daquela cabeça — ou, pelo menos, da mesma oficina, e hoje eu prefiro a segunda, a do Cairo, aquela que não ostenta o barrete, e que não está completa e navega no elemento daquele “desleixo”, sob a luz coada pelas clarabóias do prédio neoclássico, feio como um quartel de fim do século. É a Dama Sem Real Barrete, na sua provisoriedade de peça incompleta e sem os efeitos da iluminação especial cujo halo paira sobre a Dama Quase Perfeita, a que falta apenas o olho esquerdo e o barrete (o estranho barrete, um solidéu, ou espécie de mitra — que não vemos na cabeça de nenhuma outra rainha do Egito).

Claro que há inúmeros outros retratos da rainha, em relevos e pinturas, mostrando-a ao lado do rei, nas orações, e junto com as filhas e o esposo, nos jardins do Palácio das Termas do Sul, na carruagem dourada em que Akhenaton se dá a ver ao povo ou, simplesmente, oferecendo uma flor para o rei lhe aspirar o perfume… mas, os dois bustos superam, a meu ver, mesmo o infalível frescor (que é privilégio amarniano) cuja marca vemos noutras obras de arte do período, delicadas como jamais tinham sido, ou voltarão a ser, antes e depois de Akhenaton, as realizações artísticas do espírito criador egípcio. Ao pensar nisso, parece que contemplamos a rainha por sua vez contemplando aquele apogeu completamente desaparecido, “dispersão do ser incessante/ para a oculta duração”…

As duas obras formam um par, raríssimo, de “instantâneos” da rainha, feitos pelo escultor para si, isto é, para facilitar o trabalho na elaboração de estátuas e outras obras carregadas de funções especiais, simbólicas, expressas e exercidas pelas altas personagens. Nas cenas murais, decorativas e públicas, outras intenções enfatizam ou reforçam idéias-força, e já vimos como as esculturas de Akhenaton representam princípios abstratos, com a nova liberdade permitida aos artistas. Mas, nos dois retratos, se dá o acaso de que possamos ter, hoje, algo como uma imagem “imediata”, captando o mistério da personalidade, naquele cofre de vidro, dentro da vitrine que a mão não abre e nem a arte, ela própria, aproxima senão para tornar mais remota (mesmo à distância de um braço) a soberana imersa em sombra — a “Bela-que-chegou”.

Mas quem era, de fato, essa bela Nefertiti, a “esposa-principal” de Akhenaton?

Véu de dúvida
Há, ainda, uma grande controvérsia sobre a origem da rainha. Em circunstâncias normais — e segundo o padrão dos casamentos reais na corte egípcia — a “esposa-principal” de um faraó era, geralmente, a sua irmã. Assim, temos a primeira hipótese de que Nefertiti fosse filha de Amenófis III e da rainha Tiyi, por um raciocínio “clássico”. Mas ela não porta aquele título, também tradicional neste caso, de “filha de faraó” — ou, pelo menos, de “irmã de faraó”, conforme foi logo notado. Alguns também sustentaram que ela não seria uma egípcia de nascimento — o que, para nós, é uma tese frágil, contrariada pelos próprios retratos dessa egípcia de títulos oficiais obscurecidos pelo mesmo véu de dúvida que cobre o seu destino (no final do reinado de Akhenaton). A rainha, que deu seis filhas ao faraó reformador, não conseguiu, entretanto, trazer nenhum herdeiro masculino que pudesse garantir a linhagem real, em sucessão direta. Daí, que existiu, sim, uma outra esposa do rei, consorte inteiramente apagada e sem relevo, em Amarna, chamada Kia. E também outras, nem sequer mencionadas, podem ter existido, mesmo que afirmá-lo possa desfazer a ilusão, idílica, de um “casal solar” passeando entre jardins e compondo hinos, naquela atmosfera de egyptiennerie de gosto rosa-cruz, bastante duvidoso.

Longe de ser o soberano interessado apenas no seu projeto místico — segundo uma imagem persistente que vem do romantismo do século 19 acirrando um certo anticlericalismo (moderno) em marcha —, Akhenaton foi também um autêntico rei egípcio, consciente de si mesmo, da sua dinastia e do país que governava, antes de radicalizar posições que se tornariam, mais tarde, insustentáveis.

O poeta apaixonado pela esposa não “diminui” nessas decisões do governante, claro. Por mais ingênuo que alguém possa se mostrar, ao escrever sobre acontecimentos recuados nas dobras do tempo, deveria ser evitada a suprema bobagem de emprestar nossos sentimentos, nosso “psicologismo” atual, etc., a esse e a outros acontecimentos da Idade antiga, vividos no seio de uma civilização mágico-religiosa, etc. Tal atitude apenas adensa a zona, larga, da sombra — e nos afasta da Suméria, do Egito, do Grécia arcaica, muito mais do que abrem as cidades rasas, os ossos limpos e brancos, à claridade da investigação arqueológica que possa operar também com o corte imaginativo, na carne da história.

Alguns autores enxergam uma Nefertiti “rejeitada”, na rainha que não consegue dar um filho varão ao rei. Não se trata disso, ou disso, provavelmente. E, como esta Nefertiti bidimensional, não há o Akhenaton dos opúsculos que achatam a tridimensionalidade numa visão de binóculo barato, munido da lente de “misticismo” de segunda que inundam este tempo de “esoterismo” de bancas de revistas, reduzindo a sabedoria antiga (ou tentando reduzi-la) pela ótica rasteira de falsos peregrinos e alquimistas.

Sérios assuntos
Tudo que diz respeito à revolução de Amarna está contido entre sérios assuntos de ascese, Estado e revolução cujo desdobramento podia levar — e levou — à ruína da crença e à perda da hegemonia política, num país que dominava, praticamente, o mundo até então conhecido.

No entanto, o tema ameno do carinho, de pai, pelas (seis) filhas da união com Nefertiti, pode encerrar este capítulo com visões, ainda mais tocantes, de uma delicadeza que não empalidecerá enquanto alguns museus puderem exibir, nas suas vitrines, peças como a pequena escultura que representa Akhenaton com uma das princesinhas sentadas no seu colo. Aqui, não há o ouro magnificente da máscara mortuária de Tutankhamon, essa obra-prima na qual perpassa algo de uma vulgaridade pronta para as revistas (admiro-a, mas a sua excessiva exposição exotérica fez mal ao seu mistério “fascinante” para turistas). Falo de outra coisa, de uma quase miniatura inacabada, tosca. Talvez ela seja ainda mais poderosa do que a máscara dourada, se atentarmos para a delicadeza que a vulgaridade está enxotando do seu raio de visão impaciente com relação a tudo que escape ao mau gosto implantado na nossa cultura de decadência (que passa por comunicativa de todos os conteúdos — quando apenas se esforça em achatar significados). Essa peça, tão modesta, que destaco do ouro falso de outras, flagra o faraó, coroado e imponente, abraçando e beijando a filha pequenina, em cativante intimidade — assim como podemos ver também a família inteira em descanso ou participante, compenetrada, em séria e complicados rituais religiosos (com a rainha e as filhas na escala menor de praxe, etc.), seguindo a liturgia do culto de Aton, o Deus Único, num espírito de fidelidade que, da parte de Nefertiti, iria desaparecer, alguns anos depois, de forma ainda inexplicada.

O que aconteceu aqui? — é a pergunta que volta, quando estamos perto e quando estamos longe desse cenário. Por vezes, é quase uma tentação ceder à ingenuidade, mais ou menos do modo como Christian Jacq “descreve” os acontecimentos egípcios, com todas as maiúsculas que lhe inspiram uma “história” que ele adivinha não sei em quais documentos que faltam aos arqueólogos e que lhe dão a ele, Jacq, a capacidade de saber sobre a intimidade dos faraós mortos e dos escravos sumidos no zero da história…

Quem pode ter a certeza do que aconteceu aqui? Sem dúvida que seria agradável nos determos na contemplação da felicidade, sem mácula, dessa família real remota, grupo humano tomado num instante raro, nos primeiros anos de overture da “suíte amarniana”.

Mas não nos enganemos com o aspecto idílico de algumas cenas murais, nem com as estelas comoventes, ainda, que nos mostram o rei e a rainha unidos pela unção ou pela aparente felicidade. Aqui aconteceu algo que ultrapassa desse limiar tranqüilo — e penetra na treva estranha do espírito, pouco depois daqueles passos sérios, iniciais, da época em que o faraó mandara gravar, logo à entrada da sua cidade, uma estela comemorativa na qual é possível ler, ainda, as palavras em louvor da rainha amada, expresso pelo poeta que foi Akhenaton:

Senhora eternamente feliz,

Que resplandece sob as Duas Plumas,

Que alegra os que escutam a sua voz,

A Rainha que toca os sistros,

Que alegra o coração do Rei tranqüilo,

Satisfeita em ouvir a aclamação do Povo,

A Grande é bem amada Esposa Divina,

Senhora dos Dois Países,

“Eternas são as Belezas de Aton”,

“A Bela que Chegou”,

Viva eternamente.

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Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

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