O não-ser

Conto de Paulo Venturelli
Ilustrações: Marco Jacobsen
01/05/2010

Ao chegar, sem nenhum pretexto, à cozinha, Gail fica com os olhos presos no reflexo que a luz de fora provoca sobre a xícara. O utensílio de porcelana, posto na parte média do armário, recebe raios intermitentes do sol. O abacateiro lá no pomar, em movimento, fragmentava a luz. Em algum minuto vago, ela incidia, noutro, não, sobre a superfície curva. No enquadramento, também existem o cão, a corda sobre o poço, cujos tijolos eram quase puro limo, os canteiros cuidadosamente alinhados, os bojudos vasos com plantas que ele trouxe, das muitas viagens, para a mãe.

Mas o olhar de Gail está preso à insubstância do brilho no volteio da xícara. Perolado, em chispas entre o azul e o cinza, num filete curto ao longo do corpo arredondado. E existem ainda, na rua, os automóveis metalizando a tarde, a borracha dos pneus instantaneamente chapinhando no asfalto ressequido. Contudo, os olhos estão ali na xícara, nas chispas que iam e vinham. E aquele brilho era de matéria muito íntima, quase impossível de qualificar. Qualquer quadro de afirmação sobre a impossibilidade de unificar em conjunto os desastres da tarde, da desolação de estar ali imerso no vazio, enquanto a xícara brilhava para dizer, no mínimo, que a separação de tudo e de todos não traz nenhuma unidade visível ao real de ventos e sombras, era arte menor que a xícara. Insignificantes, aleatórios, esquivos os dados da vivência até ali não ofereciam a corporificação de um retorno a Ítaca.

Gail tinha ciência do não-pertencimento. Porém, há a cerca lá fora, arcada sob o peso da hera e de certas ervas daninhas que se espojavam com coragem e como quem não vê limite entre os ramos secos. Ainda assim, o banal do rebrilho implicava o olhar reduzido ao mesmo ponto, e Gail conhecia que o ordinário se distende até o magma da mais funda falta de organicidade. E nem sua ternura dolorosa pelo instante altera a falta de razão e de núcleo para manter-se onde quer que esteja. Em casa, na rua, no trabalho, a vida era trânsito e as asperezas da hora marcavam o adunco da queda, este bloqueio da tarde em que nada há, apenas a xícara, solapando seus olhos. Um brilho fugaz, amoldado por quem não tem por onde sonhar, pois basta estar e reconhecer-se para entender que um gesto e outro gesto são impotentes, e o piso gasto do que foi vivido dá o tom do precário, inexistindo, portanto, o conforto de promessas de desenvolvimento.

Gail, parado, sabe que a relação com o futuro é aborto antecipado. Tudo na estreita calha do agora que não se apreende, uma vez que se esgotou a energia de estar distendendo-se entre qualquer ontem ou qualquer amanhã. Algo flutua fora das mãos. E além dos olhos está a xícara, o risco de luz como fogo maldito em sua dança segundo o movimento da árvore ainda não em plena forma porque esta não é a estação dos frutos. Há o porão, onde o perplexo pode ser averiguado: rever os guardados, conter o vazamento por meio de ordenação que dê ao ato e à consciência certa liga de penetração no universo, segundo a voz de quem ainda está aqui e aqui vê. Só que estar aqui não guarda, nem registra nada, em nome do quê, o porão e seu amontoado perdem substância.

A xícara luzindo é que o leva à digressão tardia — a obsessão de quem acaba de voltar do cemitério, onde enterrara a mãe. E, do cemitério, salta ao bar de luz azeitada, num lugar tão distante, quando o marinheiro lhe convidou a fazer a viagem para conhecer o mundo. Ele foi bastante ingênuo e aceitou. E agora, recobrando as poucas linhas com a materialidade das funções orgânicas destinadas a dar peso ao que se é no trilho dos dias, só tem de reconhecer que jamais foi autor de único ato, inclusive, em e para sua vida. Resignou-se à sombra de coadjuvante. Como objeto envolvido em gaze colorida, rolou daqui para lá. Agora, está aqui na cozinha. A mãe sob a terra, passeando no silêncio compreensível das coisas paradas que deixaram de ser, que superaram um estágio, mesmo não havendo outro pela frente. O filho, longe de qualquer relação de caráter mais ou menos físico. O companheiro de viagem, o marinheiro, lubrificando seus instrumentos num porto do mundo apreensível apenas como mapa indeterminado.

Mesmo assim, existem os guarda-roupas e, neles, as intempéries, as estações do ano, as festas, as datas marcantes empilhadas em caixas, álbuns e arquivos, recantos povoados de sombras que é melhor deixar sob o pêlo da quietude. Ele não quer seguir a sugestão destes fantoches disfarçados de elementos de vida. O comum supura das paredes, o encadeamento das horas não conhece lógica, uma vez que os ponteiros do relógio navegam a partir de um emplastro oco e tornam-se mar concentrado, com a espuma deslocada de seu sentido de espuma. Nenhum princípio rege seu estar ali, olhando a xícara, com chispas endoidecidas a ponto de provocar a vertigem do mergulho.

Gail conhece de sobejo as ilusões de ótica e também todos aqueles graus de desvio que atingem os órgãos internos do seu corpo, tão logo tenha fio de contato com acontecimentos, distúrbios, venerações. O que lhe ocorre — enterro, viagem, regresso, perda, filho — não tem sequer o vínculo acidental com restolhos de significado por onde se fiar para retecer o calendário. Nas horas descontínuas, nos dias, nos seus pensamentos vincados à luz da sombra, pelo tédio da monotonia, só se confirma um ser à deriva. E ser à deriva muito especial: não existia, mas existe, ao léu do deserto, não existia, mas existe, na fração de estrada de ampla linha aberta à fauce do tigre que espera e espera por carne gratuita. Gail se tem como a esmo de si mesmo, na área que lhe é sua no mundo, ou seja: nulo perante o espelho, de mãos sem a solidez de barra de embarque, de ossos retorcidos como a pílula que lhe vai pela garganta e o alivia para sentir mais desconforto no instante seguinte.

Ele sequer mede a aspiração da nostalgia pelo sentido. Há a xícara. Ela corusca no traçado de fóssil iluminado pelo não do tempo no armário da cozinha, reino da mãe. Através da vidraça da janela, um raio em luz reta, outras vezes interceptada pelas folhas do abacateiro, recai sobre a porcelana, dando-lhe este aspecto de close cinematográfico que capta uma jóia e, com efeitos especiais, lhe dá aura de luminescência que todos sabem que não é real e, mesmo assim, se deixam levar pelo encanto. Ao contato direto com a mão, aquilo que brilha é só objeto. A magia foi deglutida pelos canais da tecnologia industrial: louça para uso doméstico. E resta o cotidiano no elástico já muito esgarçado do sobreviver. Desta forma, sem o sentido, Gail mergulha na sua experiência como experiência que é de outro, obstinadamente afastada de seu curso pessoal, o traço em que seu físico é sua pessoa. A mãe no cemitério, o filho não sabe onde, o marinheiro em trabalhos diversificados — são cenas desprovidas do contato com a própria pele.

E, esvaziado, ele não sabe bem que caco juntar para nele amparar-se em busca de uma figura. Daria nela retoques e, quem sabe, o perfil atingido pudesse lhe garantir e guardar a chave do rompimento desta sorte desnorteadora de não estar onde está. Ele sobrevive como resto, boneco mutilado pela mesma seqüência que a xícara lhe joga na cara, e ele não tem como preservar em forma de resquício para o provável painel a que jamais terá acesso. No oco do oco, resfolega no vazio, animal a quem sequer a jaula importa, por razão muito simples: não consegue ver o mundo, a si mesmo no mundo, o mundo no mundo. Logo, como haver barras de prisão entre o que resta de si e do espaço lá fora?

Ilustrações: Marco Jacobsen

Por isso, ter os olhos na xícara é ícone mecânico. Registrou transitoriamente o refulgente signo derreando-se pela louça e tal acontecimento não entrou de corpo inteiro em seu campo de visão ou de acepção do que existe em seu circuito. Daí saltam sobre seus pés as cenas incorpóreas, as lembranças sem raiz, o esquecimento do que nem ele sabia se lembrava. E, se lembrava, tudo se desvaneceu na mesma hora em que olhou a xícara e deparou-se com o brilho — ríspido? aveludado? Tal fator ante seus olhos desencadeou a tentativa de captar alguma coisa que, mesmo autêntica, sobra dos lados e transporta-o ao sem-rumo do mapa do qual despontam o enterro, a ausência do filho, a fugaz experiência de viagem com o marinheiro certamente livre da natureza dos tormentos, destes configurados no latejar de sua consciência.

De repente, quando a luz se esvai, vem a opacidade da hora. Dela, escapa a sombra sobre os móveis. O que detonara ato e consciência equivalentes morre asfixiado na bruma. Ainda que os elementos concretos do mundo possam trazer-lhe algum ramo verde contra a aridez, só lhe cabe ter entrada no escaninho subjetivo, esfarrapando as pontes para outros dados que qualquer um localizaria onde está para viver. Sua verdade é perceber que basta olhar para algo e este algo lhe provoca miragens, evoluções fugidias a levá-lo para um beco-sem-saída. Tudo lhe foge: o que foi olhado, o que foi pensado, as deduções entre eles. Gail quer nomear o visto, o vivido, o sentido, quer juntar as diversas metades de máscaras, ainda sabendo que por meio disto não chegará à unidade de rosto, corpo, pensamento. Os achados, dentro e fora, enovelam-se no emaranhado sob impulso primeiro de afugentar ligações.

Não lhe vem sendo possível tocar o terror tão comum aos homens. O vítreo silêncio e a cara da noite espichada fazem Gail reconstruir a história da xícara. Fora comprada em Barcelona, numa loja próxima a um dos edifícios animalescos de Gaudí. Às vezes, duvida: não teria sido em Paris? É de um lugar de consumo chamado turismo. Sem a luz da tarde, anulada pelas cortinas cerradas agora, ela não permite contemplação com inflexões mais justificadas na dinâmica do que é lembrar e sentir medo: ao lembrar, o homem pesa sua história, vê o vivido como passado e constata o encurtamento do espaço. E tal hipótese concreta não joga Gail contra a parede para fazê-lo pesar: deus meu, lá vai a vida e eu aqui… Na púrpura do parêntese que sabe que é, nenhum frio lhe perpassa a espinha. No prosaísmo da xícara, objeto de enfeite, de provável uso, renovam-se os rasgos do centro jamais sob sua conquista.

Só o brilho, à tarde, remete a alguma coisa. É quando Gail recorda-se do marinheiro, tão queimado de sol e sal que os cabelos eram fogos-de-artifício sobre ferrugem velha. E daí? Se algo foi perdido neste capítulo, pouco importa a Gail medir em latitude ou em que raso astral a coisa se despede agora, da qual já se apartou há muito, quando estreitou o corpo moreno e o marinheiro, mordendo sua orelha, disse: um tchia fossehhh voltahhh prra facher o quehhh querrria e tive metohhh.

É esta a questão, afinal? Medo? Medo do quê, se cada lance só é um lance se for buscado com o corpo inteiro, a alma conflagrada, a revolução do sangue entrincheirado em cada ponta de órgão? Gail também ali permaneceu frio, distante, nem incomodado se podia dizer. Ao despedir-se do amigo queimado de tanto lidar com as maresias do mundo, apenas se despediu de um homem. Como há pouco, da mãe no cemitério. Como há muito, do filho que, de tão amado, crestou-lhe o ânimo e não é mais nada, esteja em qualquer cenário que ele, Gail, imaginar.

Ao chegar na cozinha, naquela tarde, e deparar-se com o brilho da xícara, os tentáculos se moveram ligeiramente dentro dele. Tentou captar o sinal. O resultado foi nulo. Ele senta-se, abre o litro de uísque e tem plena consciência da natureza da noite em que navegará outra vez.

Paulo Venturelli

Nasceu em Brusque (SC). Formando-se em Letras na UFPR. Na mesma faculdade concluiu o mestrado. Doutorou-se em literatura brasileira pela USP, com tese sobre Adolfo Caminha e Silviano Santiago. É professor na UFPR. Tem vários livros publicados, entre os quais: O anjo roucoComposições para meus amigosNo vale dos sentidosA casa do dilúvioFantasmas de caligem e A morte.

Rascunho