O homem da praia

Conto de Michel Laub
Michel Laub por Renato Parada
01/07/2008

Primeiro embaixo, ele diz. A água da banheira é morna, os sabonetes têm formato de coração e morango. Quantos anos você tem? Quarenta, eu respondo. Quando Sérgio toca meus pés, tenho trinta e cinco. Mais adiante, no máximo trinta. Estou a caminho da idade em que usarei biquíni, e o calçadão estará cheio, e irei até a praia de bolsa e batom. Sérgio não estará por perto, mas sei que é questão de tempo até ele também surgir em cena.

A água da banheira é verde por causa dos sais, ouço apenas os pingos esparsos, e quando chego aos vinte e cinco anos me deixo submergir, o corpo inteiro distendido, cada músculo, cada fibra. Sinto apenas a mão de Sérgio, a voz grave falando das minhas pernas. Ele sempre faz questão de falar das pernas, é nessa hora que devo entrar, dizer que peguei sol e fiz exercício a tarde inteira. Tinha muita gente na praia?, ele pergunta. Alguém mexeu com você?

Tenho vinte anos quando conto que um homem mexeu comigo. Um homem, Sérgio murmura. Sim, um homem que estava sentado no quiosque e perguntou aonde eu ia com tanta pressa. O homem levantou e começou a me seguir, contou que morava perto, num prédio a duas quadras dali. E disse mais alguma coisa? Respondo que não, mas sei que Sérgio não acredita. Ele vai insistir até que eu confesse. É para isso que me pôs na banheira, que me deu uma taça de vinho. Faz muito tempo que Sérgio sabe: não há ninguém mais fraca para bebida do que eu.

Aos dezoito anos, uma mulher é fraca para quase tudo. Ela é incapaz de ouvir o convite do homem da praia sem prestar atenção. É o que digo para Sérgio enquanto ele ensaboa meus tornozelos. Ele sobe os dedos pelas canelas, pelos joelhos, e as perguntas se tornam tão incisivas, me obrigando a descrever com tantos detalhes a conversa com o homem da praia, eu entrando no apartamento, ele apanhando as taças no armário, propondo o primeiro brinde, que às vezes chego a embaralhar a história. No momento em que Sérgio toca minhas coxas, eu chego a confundir as datas e esquecer que tenho dezesseis anos quando o homem senta ao meu lado, nós dois no sofá do apartamento, eu já bastante tonta, e me pergunta se estou com calor.

Sérgio sabe o que o homem queria. Mesmo assim, faz questão de insistir: ele pediu para você tirar o biquíni? Ele convidou você para tomar banho?

Minhas respostas são as mesmas de sempre: eu não sabia o que fazer ali, aos quinze anos não imaginava que o homem me levaria pela mão. Estava um dia úmido, tão úmido quanto está hoje, Sérgio sem camisa ao meu lado, as gotas de vapor sobre a testa dele. Sérgio sobe os dedos pelas minhas coxas, é o momento em que mudamos de tom, em que passo a falar quase num sussurro: sim, o homem pediu que eu entrasse na banheira.

Aos catorze anos, você não tem idéia de como pode ser intenso o contato com a água. Você deixa que o homem a ensaboe, e a sensação é tão diferente que pode até mudar sua vida. Naquele momento a minha vida começou a se tornar o que é hoje: não tive filhos, não trabalho, de tarde faço compras ou vou ao cinema ou arrumo algo para me distrair até a hora em que fica escuro, e preciso voltar, e tenho de ser rápida porque Sérgio me espera com impaciência. Já se vão décadas nisso, mas ainda há dias em que Sérgio pede para eu entrar no banho logo que ponho os pés em casa. Em dois minutos já estou ali, pronta para conduzi-lo, os dedos dele percorrendo meu corpo até encontrarem o lugar certo. Então eu fecho os olhos, e respiro fundo, e me preparo para morrer e nascer de novo comandada pela voz de Sérgio, como se o tempo houvesse parado desde que a ouvi pela primeira vez, assim, agora, para sempre, em frente ao quiosque da praia.

Michel Laub

Nasceu em Porto Alegre, em 1973. É autor de Longe da águaMúsica anteriorO segundo tempo e Diário da queda.

Rascunho