O enredo

Uma partida de futebol, que nunca tem só 180 minutos, aproxima-se (e muito) da literatura fantástica
01/10/2008

Cada escritor tem seu modo próprio de construir o enredo, a trama de uma história. Edgar Allan Poe, por exemplo, dizia que se deve começar pelo final. Quer dizer, o escritor deve saber exatamente aonde quer chegar e qual efeito pretende causar no leitor durante e, sobretudo, no final da história, e só então, sabendo disso, deve começar a escrever.

Jorge Luis Borges afirmava que seus contos nasciam sempre de um sonho — ele não seria mais do que um mero escriba, uma espécie de secretário de si mesmo, cujo ofício se resumiria a escrever, na vigília, o que o outro ele (este sim o verdadeiro autor) vislumbrara durante o sono.

Ernest Hemingway achava que tudo numa história, todos os detalhes — incluindo, claro, os do enredo — devem ser econômicos. O escritor, para ele, deve cortar qualquer excesso e deixar na página apenas o que de fato valha a pena narrar. Não por acaso, costumava dizer aos jovens escritores que lhe pediam conselhos: escreva como se estivesse passando um telegrama pago do seu próprio bolso.

O enredo é parte essencial de uma história. Pode ser rocambolesco, cheio de idas e vindas, pode ser direto, com começo, meio e fim (nessa ordem), ou pode começar no meio, voltar ao início e terminar no clímax (como no conto A cartomante, de Machado de Assis). E há, claro, contos e romances com enredos que parecem nem existir, como em boa parte da obra de Clarice Lispector. Mas mesmo aí, nesse tipo de narrativa em que nada parece acontecer, algo está acontecendo (nas entrelinhas, nas sombras, de tal modo que o leitor, quando se dá conta, pronto: lá está a história, acontecida à sua frente durante a leitura, sem que ele percebesse).

Outra coisa importante: toda história tem a sua duração. Aristóteles sabia disso e há muitos séculos já falava sobre a importância da duração na tragédia grega. Alguns enredos cabem melhor numa história curta, num conto, outros num romance ou numa novela. E mesmo isso é variável, não há uma receita prévia.

Uma partida de futebol, como toda narrativa, também tem o seu enredo. E também aqui o que prevalece é o imprevisível. Você sabe como começa a trama, mas não sabe como vai acabar (pelo menos nas boas histórias de ficção é assim). Só que, no futebol, há ainda um outro traço a pesar na balança do imponderável. E trata-se justamente da duração.

Mais que 90
Não sei se você já pensou no fato — se não, em que andou pensando durante toda a sua vida que não lhe ocorreu refletir sobre algo tão fundamental? — de que uma partida de futebol não tem um tempo exato de duração. Claro que tem, dirá o leitor mais apressado: 90 minutos. Pois então me responda, o tal leitor que acaba de pensar isso, por favor me diga: qual partida você viu que tenha durado 90 minutos? Nenhuma. E isso porque o árbitro tem o poder de dar acréscimos ao tempo regulamentar, para compensar paralisações de vários tipos, como o tempo gasto para substituições de jogadores, cobranças de pênaltis, atendimento médico, confusões em campo, etc.

Se considerarmos que tudo num jogo, inclusive as paralisações (que, aliás, dependendo do que sejam, podem ser mais emocionantes do que o jogo em si), tudo faz parte do espetáculo, uma partida tem sempre mais do que uma hora e meia. Noutras palavras, você jamais pode saber com exatidão quando a partida vai acabar.

Lembro-me de uma vez em que estava num hotel, em Salvador, aguardando o momento em que o professor que me convidara para dar uma palestra num centro cultural passaria de carro para me apanhar. A palestra havia sido marcada com alguns meses de antecedência e não sei quem foi mais delirante: o professor que marcou o evento para aquele dia ou eu, que aceitei. Só sei que aquilo foi resultado de extremo devaneio: agendar uma conversa sobre literatura para o dia 15 de julho de 1998. Quando a data foi escolhida, ainda não dava para saber, tudo bem, mas talvez se pudesse prever o desacerto de um programa desse justo no dia em que Brasil e Holanda disputariam vaga para a final da Copa da França!

Meu anfitrião, muito gentil, me ligou alguns minutos antes do jogo dizendo que eu não me preocupasse: poderia assistir tranqüilamente à partida no conforto do meu quarto e, quando terminasse, ele estaria me esperando na recepção do hotel. Eu lhe disse, então, que não seria uma boa idéia: caso o jogo terminasse empatado, haveria prorrogação de 30 minutos. Ele, candidamente, me respondeu que não sabia disso e ficou de ligar mais tarde, para combinarmos melhor.

Faltando quinze minutos para acabar o jogo, ele me liga. Não, meu caro, ainda não dá para saber se vai terminar empatado, só dá para saber quando o juiz apitar o final, eu lhe respondi, quase educadamente.

Quem se lembra daquele jogo sabe que terminou empatado: 1 x 1. Teve início a prorrogação. No intervalo da prorrogação, novo telefonema — ele estava a caminho, em 15 minutos estaria no hotel. Novamente fui obrigado a esclarecer as coisas: se a prorrogação terminasse empatada, haveria disputa de pênaltis. E aí fui categórico, procurando manter o mínimo de delicadeza: o jogo não tem hora para acabar, só acaba quando termina, entendeu?!

Muito futebol, pouca literatura
A palestra tinha tudo para ser um fiasco. Não havia público nenhum quando chegamos. Pouco a pouco foram aparecendo as pessoas, algumas com camisa do Brasil e cara de quem não sabia direito o que iria acontecer ali. A saída foi esquecer tudo o que eu havia preparado e partir para o improviso: falamos do jogaço daquela tarde em que o Brasil venceu a Holanda nos pênaltis, por 4 x 2. Emendamos a conversa com outros assuntos. No final da noite, até de literatura falamos (um pouquinho).

E há também o chamado jogo de 180 minutos. Trata-se de uma situação comum em certos campeonatos: a final se dá em duas partidas seguidas e o campeão será o que obtiver mais pontos na soma das duas.

Em caso de empate de pontos, vale o saldo de gols. Numa final assim, como classificar a narrativa: são duas histórias de um mesmo livro, como dois contos de uma coletânea, por exemplo, ou é uma única história contada em duas partes? (Diga-se de passagem, se uma partida não dura 90 minutos, essas duas obviamente não duram 180, até porque, havendo empate no número de pontos e também no saldo de gols, há prorrogação ao final da segunda, que pode ser seguida, claro, por cobrança de pênaltis).

Resumindo a ópera: um jogo é pura ficção. Digo mais: é uma ficção fantástica. Talvez algum dia alguém venha a descobrir — a despeito de qualquer coerência histórica — que o futebol foi uma invenção de Hoffman, Maupassant, Italo Calvino, Cortázar ou algum outro contador de histórias que giram em torno do sobrenatural.

Senão vejamos. Imagine que você pega um livro e, antes de começar a ler, parte para as preliminares: desliza suavemente a mão pela capa, sentindo a textura, cheira as páginas (se for um livro novo, recém-saído da livraria), lê a orelha, a quarta capa, etc. Nesse preâmbulo à leitura você, por curiosidade, resolve ver quantas páginas o livro tem. Digamos que sejam 123. Sim, seu livro tem 123 páginas e você sabe que, ao virar a centésima vigésima terceira estará, irremediavelmente, na última. Não é assim?

Pois um jogo de futebol é como um livro que, ao ser manuseado antes da leitura, tem lá as suas, vamos supor, 123 páginas. Você então começa a ler, se empolga, vai acompanhando de corpo e alma a história e, quando já está no finalzinho, o livro subitamente ganha mais duas páginas, surgidas assim do nada, feito mágica!

Você se surpreende de início mas, como num conto de Kafka, resolve não pensar na estranheza daquilo e segue adiante. Você lê as duas páginas novas e quando a trama parece, agora sim, se resolver de vez, surgem entre os seus dedos nada mais nada menos do que outras cinco páginas.

Você, a essa altura, já nem liga mais para o absurdo da situação e não se espanta nem um pouquinho quando mais umas seis ou sete páginas são emendadas ao seu livro.

Agora me diga com franqueza: é ou não é um conto fantástico? Portanto, quando você se sentar no seu lugar no estádio, ou na poltrona diante da televisão, e começar a assistir a uma partida de futebol, pense: é um conto novo que está começando. E se deixe levar pela leitura, sem nunca saber ao certo quando é que vai acabar.

Flávio Carneiro

É escritor, roteirista e professor de literatura. Autor de A confissão, entre outrosNasceu em Goiânia (GO) e mora em Teresópolis (RJ). Publicou 18 livros — romances, contos, crônicas, infantojuvenis, ensaios — e escreveu dois roteiros para cinema. Foi premiado com o Barco a Vapor e com o selo de Altamente Recomendável para o Jovem, da FNLIJ. Com Histórias ao redor (Cousa), ganhou o Jabuti 2021, na categoria crônicas. Tem contos e romances publicados em outros países, como Itália, Portugal, Colômbia, México, França, EUA, Alemanha. O conto Viva a Revolução! integra seu próximo livro, Paisagem com segredo & outras pequenas viagens, a ser lançado em breve pela Maralto..

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