O duro regresso para casa

Haitiano relata a dificuldade de reencontrar o seu país após 20 anos de exílio
Dany Laferrière, autor de “País sem chapéu”
01/08/2011

Em quanto tempo de exílio uma pessoa pode deixar de reconhecer o próprio país? Quer dizer, não é exatamente deixar de reconhecer, mas ver e não entender, escutar e não compreender, sentir e não sentir? Afinal, o exilado leva consigo um instantâneo de sua terra no momento em que a deixou, e até certo ponto esse retrato não envelhece, ao passo que o país vai mudando. E não importa se o exilado recebe notícias de lá. O relato é sempre diferente do vivido. Por isso há o choque quando ele retorna depois de um tempo, e quanto mais longo maior é o choque.

Em um resumo bem grosseiro, esse é o tema de País sem chapéu, primeiro livro do escritor haitiano Dany Laferrière lançado no Brasil. Sim, um escritor haitiano. E tenha certeza, há mais no Haiti que o noticiário internacional quer nos fazer acreditar. Não há só desgraça ou miséria, ainda que lá essas coisas sejam abundantes. Há também, a acreditar no que Laferrière relata em seu livro e nas notas explicativas da tradutora Heloisa Moreira, uma literatura fértil e vibrante. Enfim, se o livro é bom, importa de onde ele veio?

O enredo de País sem chapéu é relativamente simples. Um escritor, que pode ser em parte Laferrière, retorna ao Haiti após 20 anos de exílio. Lá ele reencontra sua mãe e uma tia, em primeiro lugar, e depois vai reencontrando todos os personagens de sua infância e juventude (ele deixou o país aos 23 anos de idade). Durante a leitura, aprendemos que o exilado saiu do país durante a ditadura de Baby Doc (Jean-Claude Duvalier) por conta de matérias que ele publicou no que ainda restava de imprensa livre por lá. E aprendemos que seu pai também partiu ao exílio por ter feito a mesma coisa, mas dessa vez durante a ditadura de Papa Doc (François Duvalier). E que o protagonista é um haitiano famoso que aparece freqüentemente na televisão para falar de seu país, ainda que não mais viva lá.

Nova percepção
Ao longo do texto, Laferrière narra o estranhamento desse escritor que sabe estar em lugares conhecidos, mas que não são mais aquilo de que ele se lembra. O confronto entre a memória e a nova realidade constrói uma nova percepção de seu país. Vale lembrar que o livro foi lançado originalmente em 1996, ou seja, o Haiti era apenas (não é um grande consolo) o país mais pobre do mundo, não o país mais pobre do mundo com a maior catástrofe humanitária causada por um terremoto no mundo.

E, por ser no Haiti, onde a religião vodu tem um papel fundamental (de acordo com Heloisa, como poucos haitianos são alfabetizados e sempre poucos o foram, a cultura popular permaneceu muito forte entre o povo, ao contrário de outros países que se europeizaram a medida que se alfabetizavam), há um país real e um país sonhado, onde os mortos continuam andando pelas redondezas. Um pedaço do Haiti é isso: as pessoas acreditam e vivem a certeza de que os mortos estão por aí, e que são capazes de feitos fantásticos, como chegar à Lua antes dos americanos. Laferrière escuta a explicação, mas não a entende, e resume isso em uma frase capital para se entender o livro: “É nisso que dá passar quase vinte anos fora do seu país. Já não entendemos as coisas mais elementares”. Claro, para o leitor que não conhece o Haiti, parece loucura. Mas é como um brasileiro que vai a Portugal, tudo é muito semelhante, mas há algo que não é mais possível entender, apesar da proximidade das duas nações.

Em termos de estrutura, Laferrière separa os dois países que seu protagonista reencontra. O primeiro é o país real, em que ele narra as sensações do escritor exilado em seu retorno e seu estranhamento. O segundo é o país sonhado, em que toda a força do misticismo vodu aparece e a morte é tema constante. Mas, longe de ser algo ruim, aprendemos com Laferrière que para os haitianos a morte não é o fim, mas sim uma continuação da vida. Os mortos do Haiti conversam com os vivos e estes continuam prestando atenção a eles. Ter isso presente é importante para entender a trama de Laferrière, que faz seu protagonista visitar o mundo dos mortos e voltar decepcionado com o clima pequeno burguês que lá encontra.

Para compreender bem o livro, torna-se importante a leitura do texto O imaginário, o espaço, as línguas, escrito por Heloisa Moreira e publicado após o epílogo de Laferrière, esse também importante e intitulado Um pintor primitivo. Neste, Laferrière conta de onde veio a inspiração para escrever País sem chapéu. Depois, Heloisa, com muito talento, traz para o leitor uma série de informações sobre Laferrière, sua obra, como poder lê-la com mais intensidade e sobre o Haiti literário, tão desconhecido para nós. Mas, mesmo que esse ensaio não viesse, País sem chapéu já seria um ótimo livro para conhecermos um país que só aparece, para nós, por suas desgraças.

País sem chapéu
Dany Laferrière
Trad.: Heloisa Moreira
Editora 34
240 págs.
Dany Laferrière
Nasceu em 1953, em Porto Príncipe, capital do Haiti. Seu pai foge do país em 1959, e Dany é enviado para o interior do país para ser criado pela avó. Aos 23 anos, ele deixa o Haiti para evitar ter o mesmo destino de seu colega e amigo Gasner Raymond, assassinado pelos Tontons Macoute, a “guarda pretoriana” dos ditadores Doc. Primeiro, ele vai para Montreal e trabalha como operário em várias fábricas, até publicar seu primeiro livro, em 1985, Como fazer amor com um negro sem se cansar. O romance é o primeiro de uma série de dez que o próprio autor chama de autobiografia americana, escritos basicamente entre 1990 e 2002, período em que residiu em Miami. Em toda essa série, Laferrière usa a sua situação como fonte criadora de seus romances, ao trabalhar as suas memórias e o choque de culturas e sua influência sobre a pessoa.
Adriano Koehler

É jornalista. Vive em Curitiba (PR).

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