O diário de Nohara (1)

Uma narrativa improvisada sobre um relato meio confessional
01/08/2011

Quantos, ainda, morrerão pensando que “O Anjo Azul” era o apelido da decadente dançarina Lola Lola, a personagem vivida pela magnética Marlene Dietrich, sob as ordens do exigente esteta do cinema Josef von Sternberg, diretor do famoso filme do mesmo nome?

E quantos escritores — e candidatos a escritores — seguirão desperdiçando adjetivos (“decadente”, “magnética”, “exigente”, “famoso”) lançados como arroz de noivos sobre a cabeça convencional da literatura bem casada com o corpo monótono do óbvio?

O Anjo Azul referia o nome do cabaré, designava a casa noturna — como se usa dizer — de atmosfera degeneradamente berlinense (seja lá o que isso tenha terminado por sugerir ou significar) dos anos de 1920, na qual “Lola Lola” cantava sob a nuvem de fumaça de charutos e cigarros essenciais ao clima de uma época na qual as pessoas ainda podiam fumar e morrer em paz, pensando que “Anjo Azul” dizia respeito à personagem da Dietrich sentada num tonel de significados diferentes de tese para tese etc.

Lil Dagover, Lucie Mannheim e dezenas de outras atrizes foram cogitadas para representar o papel da cantora sensual e debochada, mas Marlene foi a escolhida pelo realizador (de nome ornamentado com um falso “von” de suposta nobreza germânica), depois que o protagonista Emil Jannings foi vencido na sua indicação da Mannheim e os produtores também aceitaram a ponderação de Sternberg sobre a Dagover: “Lil já tem mais idade do que requer o papel de uma moça parecida com aquela colegial corrompida que está em nossas cabeças. Ou, pelo menos, na minha — que sou o criador do filme. Vocês estão só pagando a fita”.

Quando encontrei as anotações e o relato de Nohara (que conheceu a bela Lil Dagover, talvez não talhada para o papel, realmente), eu fiquei surpreso de ver até um alemão incorrendo supostamente no mesmo erro a respeito de O Anjo Azul, uma vez que o título de um dos seus manuscritos — O Anjo Pardo — diz respeito a uma pessoa e não um lugar, e talvez pretenda fazer uma analogia que o coloca no rol dos que morreram e ainda morrerão pensando que…

Bem, eu estou me repetindo. A vida é feita de repetições. E Wilhelm K. von Nohara pelo menos já morreu faz tempo, e eu posso finalmente publicar alguns fragmentos do seu “Diário” e de O Anjo Pardo sem maiores problemas, imagino (“vão surgir problemas, sim”, avisou-me alguém que mantém um bem conhecido escritório de advocacia nesta cidade, porém estou indo em frente, e arriscando com os tais problemas que possam surgir).

Quem foi Nohara? Uma única coisa eu sei responder: foi o autor de Brasilien Tag und Nacht, publicado por Rowohlt Velag GmbH, de Berlim, em 1938. Alguém conhece esse livro?

Eu não conheço ninguém que conheça esse livro. E também não obtive praticamente nenhuma notícia substancial sobre W. K. von Nohara, na internet (que é onde se busca tudo, hoje em dia) ou em qualquer outro lugar onde se costumavam buscar informações no mundo horizontalmente retilíneo do passado.

Uma frase assim me dá a certeza — ou alguma certeza — de que as coisas ainda podem estar nos seus lugares, aqui e ali, “no mundo horizontalmente retilíneo” do que resta do passado, do qual eu retiro certos motivos para sustentar a minha primeira intuição, nesse assunto em particular: Nohara era agente nazista, ou era no mínimo simpático ao partido de Hitler e, aqui no Brasil, o que lhe aconteceu talvez tenha exposto na sua alma aquele degrau estranho pelo qual a atração por um membro das “raças inferiores”, toca, no íntimo, alguma corda tensamente inesperada — assim como Lola Lola, a cantora do cabaré “Anjo Azul” consegue despertar a veia sentimental do coração de boi aburguesado do Professor Unrath, a partir da visita (mais ou menos involuntária) que o mestre pomposo faz ao animado antro de perdição dos seus alunos. Mais uma vez, perdoem os adjetivos e as reticências combinadas.

Este é o livro delas?…

Diga, claramente, a outra das duas certezas que você tem sobre Nohara.

Bem, o sobrenome mais nipônico do que teutão não é suficiente para disfarçar um homem não verdadeiramente “fino”, num ambiente de embaixadas onde se fazem brindes com longas luvas brancas envolvendo a cintura impecável de uma farda. É claro que há automóveis de luxo brilhando em jardins úmidos e monóculos cegos por uma explosão de pólvora num romance de espionagem daquela Primeira Guerra que se despediu de um tipo de elegância fanada, quando Nohara era ainda um adolescente vendo subir a inflação aos níveis estratosféricos do pós…

Não, este não é um ensaio. Talvez seja uma narrativa improvisada sobre o material de um diário e um relato meio confessional, cujo perfil indefinido já enseja que se pergunte: “é um livro de Nohara?”

O livro realmente dele — quero dizer, a obra publicada a respeito do Brasil — é um desconhecido volume de capa dura, fartamente ilustrado, escrita por uma daquelas poucas pessoas que foram do círculo reduzidíssimo das relações do Dr. Josef Mengele, nos 14 anos em que o “Anjo da Morte” viveu como fugitivo no interior de São Paulo.

Tem anjos demais aqui, você não acha?

Talvez, mas a mim cabe tentar administrar o céu nada azul de onde estão a emergir, azuis, pardos e negros como o inferno feito do amor de Nohara pela sua Marlene retirada do que parece “lama” (sic) para o europeu que escreve durante a guerra mais suja da história, a guerra do genocídio mais tenebroso que consta das atas da insanidade do ser humano que pode parecer não humano quando você se debruça sobre a lama real e retira um botão de roupa caído no solo revolvido de Auschwitz. Citando Shimshon Ovitz (que tinha dezoito meses de idade quando foi tatuado com o número A-1444 — o horrível registro burocrático tomando quase todo o braço da então criança de colo), a respeito da sua passagem pelo campo de concentração onde mal testemunhou os horrores do complexo Auschwitz-Birkenau, na companhia da mãe e dos tios anões judeus-húngaros: Dei meus primeiros passos no solo amaldiçoado de Auschwitz, e o Dr. Mengele era o homem para o qual eu corria dizendo ‘papai’. Isso arruinou minha vida).

Bem, então não há propriamente “anjos” aqui e em lugar algum realmente, e mesmo o pardo, o anjo brasileiro de Nohara, Marlene dos Santos Silva, mais do que parda, mulata, negra — assim ela seria chamada por uma patroa furiosa, ou por um Mengele na sua rampa de escolha dos condenados à câmara de gás e dos condenados a sobreviverem nos campos da morte —, Marlene, eu digo, não poderia ser um anjo, e não é como isso que Nohara a recorda, não há anjos na terra, não há anjos nem no céu e não há (nem pode haver) anjos no inferno queimando como os fornos do lugar de extermínio disfarçado que é este verdadeiro Vale de Lágrimas (para usar do mais comum dos lugares-comuns).

Gosto muito das expressões consagradas pelo uso. Lugares-comuns são pedras de toque da calma, porque têm o condão de me devolver ao som do rádio, aos diálogos de rádio-teatros fazendo subir o fundo “BG” de roteiros escritos por Ghiaronis e outros autores de dramalhões declamados por atores de paletó e gravatas úmidas em algum estúdio semeado com microfones de haste, sem ar-refrigerado, os morros dos ventos uivantes acoitando urzes fabricadas com solas de sapato riscadas por lixas espanadas e assovios de saliva ainda respigando em minha memória.

“Marlene, então, levanta-se do chão” — e se agarra às pernas de Nohara, como Shimshon se agarrava às botas do Dr. Mengele quando o “bom” doutor visitava o barracão das suas cobaias preferidas, os anões e anãs da Trupe Lilliput, que morreram pensando não só que Marlene Dietrich era o Anjo Azul, mas que Mengele não era assim um monstro tão monstruosamente monstruoso como o mundo costumava pensar. Meu amigo advogado, quando leu o livro sobre eles (por mim emprestado, a contragosto), balançou a cabeça: “Uns escrotinhos, esses anões”.

O trecho que ele acabava de ler, no livro (*) de Yehuda Koren e Eilat Egev, era um dos menos favoráveis à trupe:

“Sara Nomberg-Przytyk, que vivia no mesmo barracão com as anãs, não as admirava:

Em suas memórias — Auschwitz: True Tales from a Grostesque Land —, ela zomba da interminável conversa infantil delas sobre Mengele: ‘Que lindo que ele é, que gentil!’, repetiam a cada minuto. ‘Que afortunadas somos por ele ter se tornado nosso protetor. Que gentil da parte dele perguntar se temos tudo o que queremos’ (sim, elas tinham quase tudo do pouco que ousavam querer — e tinham muito de milhares de furadas de agulhas e outras práticas médico-charlatãs do Mengele-vampiro que mandava coletar, quase diariamente, o sangue das cobaias humanas postas inteiramente à sua disposição — mesmo subalimentadas e enfraquecidas — para as tais ‘experiências’ pseudo-científicas já divulgadas até a náusea). Elas — prossegue Sara — praticamente se derretiam em adoração.

Estavam acostumadas a expor-se em público (sic), e isso era como mais um show para elas. Uma tarde, Mengele entrou no barracão e todas nós ficamos em posição de sentido, incluindo as anãs. Perto delas, parecíamos gigantes. Ele as olhou bem de perto. Então uma delas saiu da fila e se lançou ao chão, abraçou as botas dele e começou a beijá-las. ‘O senhor é tão gentil, tão adorável. Deus deveria recompensá-lo’, sussurrou a anã. Ele não se moveu por um instante, e então simplesmente de desvencilhou dela. Ela caiu e ficou ali, esparramada no chão.”

CONTINUA NA PRÓXIMA EDIÇÃO

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho