O choque do retorno

Romance de Dalembert retrata um Haiti diferente dos estereótipos que a mídia perpetua
Louis-Philippe Dalembert, autor de “O lápis do bom Deus não tem borracha”
01/05/2011

Haiti, país que nos últimos tempos ocupou várias páginas das manchetes de jornais mundiais por causa de devastadores desastres naturais, causando comoção, por um lado, e mostrando traços daquele país, por outro, é o cenário privilegiado escolhido por Louis-Philippe Dalembert para construir a sua narrativa; que por sua vez oferece outras imagens dessa cultura e território caribenhos.

Esse espaço ficcional proposto por Louis-Philippe Dalembert ao leitor brasileiro com o livro O lápis do bom Deus não tem borracha, publicado em 1996 e já traduzido para vários idiomas, mas que está disponível nosso mercado desde 2010, com a tradução para o português de Marcelo Marinho e Fernanda Giglio, uma iniciativa da editora Letra Livre, de Campo Grande, nos faz conhecer outros traços e delineamentos desse país, que teve uma forte colonização francesa a partir do final do século 18. Na verdade, o Haiti foi uma das mais prósperas colônias francesas, produzindo e exportando café, açúcar e cacau.

O lápis do bom Deus não tem borracha é sem dúvida um título arrojado para uma imbricada trama de encontros e desencontros do indivíduo com espaços antes conhecidos que sofreram profundas modificações e não podem mais ser os mesmos. O retorno à terra natal, temática tão tratada na literatura desde os seus momentos mais clássicos, só para lembrar os fios da eterna trama que faz e desfaz Penélope à espera de seu Ulisses, é uma das questões centrais tratadas nesse livro do escritor haitiano.

O romance narra, de fato, o retorno de um indivíduo exilado para Porto-Pinto, um espaço facilmente reconhecível com a capital do Haiti, mediante as descrições e pistas dadas para o leitor. “O homem não ousou embrenhar-se pelo antigo quintal da morada familiar. Vista da rua, pareceu-lhe ridiculamente pequena, enquanto suas lembranças faziam da casa uma cidadela”. O olhar desse “eu” que volta e reencontra os espaços mantidos e resguardados nas lembranças mais ou menos longínquas não pode ser o mesmo de antes. Os anos passaram-se, o personagem cresceu, amadureceu, teve outras experiências e vivências, as quais agora o fazem ver e ler o mundo a partir de uma outra perspectiva de visão, com novos olhares. Quando criança, aqueles mesmos espaços e construções pareciam enormes, como se o abraçassem ou engolissem, contudo, no momento presente, parece haver uma inversão: a casa que nas reminiscências do pequeno menino era uma cidadela, agora parece ser muito menor! A imensa varanda, caracterizada por uma infinitude, que “exigia esforços de titãs” num primeiro olhar, passa a ser percebida, num segundo, como “minúscula” varanda. E comenta o personagem: “Para dizer a verdade, a varanda mais parecia um ordinário puxadinho de um desses moquiços salve-se-quem-puder do Terceiro Mundo”.

Todos esses comentários que apresentam o contraste do que era e do que é, ou melhor dizendo, de como aquele cenário tinha ficado registrado na memória e agora era (re)visto pelo mesmo personagem, já são colocados pelo autor desde a primeira página do livro, que se apresenta marcada com signos (in)visíveis desse percurso pelos meandros da memória. Precisamente na metade da página há o seguinte período: “A varanda fora a segunda decepção nas veredas da memória, após o cortante desconsolo experimentado nas andanças pelas ruas de Porto Pinto, sua cidade natal”. Aqui, o narrador evoca a atenção do leitor para essa espécie de quebra, de choque entre um antes e um depois.

Sem nome
Uma outra característica que chama a atenção na leitura prazerosa desse romance é que ao personagem principal, que sente e sofre com esse descompasso entre o que está registrado no seu “livro de bordo” e o que vê quando reencontra os espaços mais íntimos e caros de sua infância, não é dado um nome. Nome que significa identidade, ser reconhecido por… Ora o que significa não ter um nome? Talvez, a identidade desse protagonista que perambula pelas ruas de Ponto Pinto/Porto Príncipe esteja em cheque assim como estão as suas recordações quando se debatem com a nova realidade e a nova organização dos espaços urbanos. A paisagem, certamente, é outra, está profundamente transformada: as árvores não estão mais onde estavam, a igreja também já não há mais. O incêndio que a dissipou pode ser mais um elemento divisor desses mundos que se chocam. As pessoas que conhecia também desapareceram como as outras marcas, que só restaram e sobrevivem na memória: “Toda a gente conhecida sumira de circulação (…) De sua primeira existência, aqueles que foram próximos estavam agora em debandada pelos quatro cantos do planeta”. Há uma explosão, uma pluralidade que descentraliza e desorganiza tudo o que estava aparentemente em ordem.

O percurso proposto pela narrativa é dividido quatro partes principais: “Abertura”, “Primeira fase”, “Segunda fase”, “Terceira fase”, e mais um “Post-scriptum”. Neste último, o leitor é diretamente chamado para o diálogo. O pronome “você” estabelece essa forte e tensa relação que dá o tom desse curto texto final, que conclui o livro. Uma reflexão sobre a experiência da leitura e de ter lançado “um olhar prenhe de tristeza e de cólera sobre o pântano fétido de Porto Pinto”. Um olhar que comunga com o leitor, mas é revelador, sobretudo, da relação autobiográfica existente nesse romance. O “Post-scriptum” traz como epígrafe uma poesia de Giorgio Caproni (1912-1990) — não Caprone, como saiu na edição brasileira —, bastante significativa, e que remete ao título do livro O lápis do bom Deus não tem borracha. Uma poesia-pergunta, na qual o eu-lírico pergunta o que fazer já que Deus foi embora da igreja e o “zelador” do cemitério abandonou o portão. O poeta italiano não é evocado por Louis-Philippe Dalembert em vão. Há alguns pontos de confluência já numa primeira leitura desse romance e para as problemáticas que estão sendo aqui apontadas. Além dessa primeira poesia, é possível pensar em outras três que remetem à questão do retorno, do abandono e do “eu” na contemporaneidade. Retorno, Revanche, Invocação.

Voltei para lá
onde jamais havia estado

Meu Deus, mesmo se não existes,
por que não nos assistes?

A vida está sempre mais dura?…
Viva a Literatura!…

Esses versos das poesias acima mencionadas respectivamente dialogam com o livro do escritor haitiano. A idéia do espaço conhecido que passa a ser irreconhecível, só não o deixa de ser totalmente por um ou outro elemento, um Deus que é presença e, ao mesmo tempo, ausência e, por fim, a literatura como uma forma de sublimação, mas não de alienação. Um diálogo que pode oferecer e abrir novos caminhos para serem percorridos. Se se pensa na idéia do retorno, na impossibilidade de manter ou de “prender” o tempo, é possível pensar nos famosos versos pessoanos de Lisbon revisited. Álvaro de Campos, heterônimo vanguardista pessoano, muito atento às transformações e tensões da sociedade e com uma forte relação com o espaço urbano lisboeta, é o autor das duas poesias dedicadas à capital portuguesa.

Ó céu azul — o mesmo da minha infância —
(…)
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora e de hoje!

E ainda:

Outra vez te revejo,
Cidade da minha infância pavorosamente perdida…
Cidade triste e alegre, outra vez sonho aqui…
Eu? Mas sou eu o mesmo que aqui vivi, e que aqui voltei,
(…)
Outra vez te revejo,
Com o coração mais longínquo, a alma menos minha.

Os primeiros versos, só para lembrar, são da Lisbon revisited de 1923 e os demais da de 1926. De qualquer forma, o sentimento de estranhamento é o mesmo. O deflagrar-se com as transformações que fazem parte do viver e do dia-a-dia, que para muitos que estão inseridos naquele determinado contexto não são perceptíveis, mas pode ser realmente um choque para aquele indivíduo que chega/retorna. Um choque não só por causa das mudanças mais objetivas, como, por exemplo, a demolição de uma casa antiga para a construção de um grande supermercado, mas que está intrinsecamente relacionado com uma visão e com referências que são, sobretudo, subjetivas e sentimentais. É daqui que advém uma visão traumática da experiência, na qual não há mais a possibilidade de uma dimensão messiânica, como está colocado no título do romance e nos versos de Caproni. De fato, a última frase do “Post-scriptum” é: “Da errância, cheguei a essa fase da humanidade em que o homem não tem outro país senão o tempo em que habita”.

A experiência do vivido serve de matéria-prima para a construção da narrativa ficcional. Como já declarou o próprio Dalembert, seus itinerários e percursos, por mais distantes que sejam do Haiti e de suas origens, trarão sempre alguma coisa, ressonâncias que delineiam sua identidade indelével. Marcas, mais ou menos visíveis, que podem estar no corpo, na fala, nos objetos, nos cenários e são uma presença, mesmo na ausência. O romance foi escrito durante uma temporada em que o escritor passou em Roma, mas logo depois à escritura desse texto, mais exatamente um ano e meio depois, Dalembert retornou à sua terra natal, onde ficou por um breve período. O que se tem é, portanto, traços de um Haiti diferente das imagens e notícias veiculadas e que chegam por meio dos jornais e das redes de televisão, formadores de clichês e estereótipos. Retorno, retornos, encontro, desencontros, enlaces e desenlaces, problemáticas e temáticas sempre presentes na literatura.

O lápis do bom Deus não tem borracha
Louis-Philippe Dalembert
Trad.: Fernanda Giglio e Marcelo Marinho
Letra Livre
192 págs.
Louis-Philippe Dalembert
Nasceu em Porto Príncipe, em 8 de dezembro de 1962. Passou os primeiros anos de sua vida em Bel-Air, bairro popular da capital haitiana. Dalembert atuou como jornalista e em 1986 transferiu-se para a França para dar continuidade aos seus estudos, onde obtém pela Sorbonne o título de doutor em Literatura Comparada, com uma tese sobre a produção literária do cubano Alejo Carpentier. Desde que deixou o Haiti, Dalembert morou em diferentes países e ganhou vários prêmios por sua obra ensaística e ficcional, como o Casa de las Américas, em 2008.
Patricia Peterle

É professora de literatura na UFSC.

Rascunho