O almofadinha e o revolucionário

Humor ácido e ironia estão no centro de "O esquadrão guilhotina", de Guillermo Arriaga
Guillermo Arriaga, autor de “O esquadrão guilhotina”
01/10/2008

Feliciano Velasco y Borbolla de la Fuente era um almofadinha. Só apareceu na frente de Pancho Villa por um descuido. Com cifrões nos olhos, foi mostrar ao guerrilheiro seu invento — invento mesmo, não… era mais o aperfeiçoamento de um —, que certamente ajudaria na matança de prisioneiros: a guilhotina. A lâmina da máquina mortífera brilhava tanto quanto os olhos do advogado de la Fuente. Mas os de Villa demoraram a acender. Queria uma demonstração. Teve uma série delas. Cabeças e mais cabeças rolavam para o deleite do general e para o delírio do advogado almofadinha.

Convencido o poderoso chefão mexicano, só restava a de la Fuente recolher as bolsas de dinheiro, fazer uma mesura qualquer e passar sebo nas canelas. E foi por isso que ele ficou absolutamente sem fala, sem cor e sem chão quando Villa, do alto de sua generosidade, concedeu a ele o posto de primeiro-capitão na valorosa Divisão do Norte. O almofadinha foi premiado com a possibilidade de lutar pelas classes menos abastadas na Revolução Mexicana. Logo ele, um capitalista mal-acabado, sem o menor apreço pelos populares. Mas como dizer não ao temível Pancho Villa? Ainda bem que, além da falta de escrúpulos, o advogado também não tinha grandes ideais. Fazer parte da revolução seria mais fácil do que ele imaginava — ainda mais por ter caído nas graças do general por conta da apresentação da máquina da morte.

Essa falta de ideologia, a subserviência ao poder — qualquer que seja — e o conformismo dão a tônica de O esquadrão guilhotina, do mexicano Guillermo Arriaga. Mas é bom avisar: quem for procurar guilhotinas na revolução mexicana perderá tempo. Apesar de historiador, o sangue de Arriaga é muito mais ficcionista. Guilhotinas fizeram o maior sucesso, quase duas centenas de anos antes, em outra revolução — a francesa. Cabeças ornamentadas por belas perucas rolaram à vontade pela liberdade, igualdade e fraternidade. Entre os mexicanos não há registros do uso dessa arma capital. Os revolucionários mexicanos gostavam mesmo era do fuzilamento de seus prisioneiros e inimigos.

Arriaga é conhecido mundialmente por seus ótimos roteiros (Babel, Amores brutos, Três enterros de Melquiades Estrada e 21 gramas). Quem assistiu a um ou mais deles sabe que as narrativas não são muito lineares. Isso pode fazer o leitor de O esquadrão guilhotina achar que vai ter que se cortar um dobrado para não perder o fio da meada. Mas não é nada disso: o livro recém-lançado — apesar de ter sido escrito há 20 anos — é totalmente linear, de fácil — e muito agradável — leitura. Não que os filmes não sejam bons — muito pelo contrário, são altamente recomendáveis. Mas o livro ambientado na Revolução Mexicana tem um outro apelo. Tem um humor ácido e uma ironia que o deixam muito mais palatável que as películas. Mesmo tratando de tema tão espinhoso quanto uma revolução.

Villa estava a ponto de ditar a ordem mortal quando se aproximou uma das tantas vozes prudentes que o aconselhavam. […]

— General Villa, se vamos executar este senhor é necessário acusá-lo de algo. Não se pode matá-lo simplesmente assim.

— Sim, verdade? Tem razão; General Zapata, de que é acusado este homem?

Zapata ficou pensando um momento.

— De ser espanhol — respondeu-lhe.

— Sim, isso mesmo — afirmou. Vamos executá-lo por ser espanhol.

O pobre réu, que já se havia dado conta das intenções dos revolucionários, pressentia um esforço de defesa.

— Mas, senhores generais — disse esbaforido —, isso não constitui delito algum.

— Sim, sim, é delito — afirmou categórico Villa.

— Mas por quê?

— Por que o digo eu — sentenciou o nortista.

Misturar fatos e personagens históricos — e, portanto, verídicos — com invenções como Feliciano Velasco y Borbolla de la Fuente e sua guilhotina leva o leitor a um saboroso jogo. Até que ponto os personagens que circulam pelo livro realmente existiram? O que é verdade e o que é puro mito ou ficção? Para quem conhece mais da história da Revolução Mexicana não deve ser tão difícil saber. Mas para pessoas que, como eu (confesso!), não tiveram muito contato com esta parte da história latino-americana, não há como saber exatamente sem consultar livros ou o santo google.

No final das contas, não faz muita diferença. A leitura é ótima, rápida, divertida — se o leitor conseguir se despir de qualquer idéia de que o livro tenha pretensões históricas. Porque ele não tem. Usa fatos históricos como pano de fundo para uma alegoria do México de ontem e de hoje. Monta algumas cenas com personagens que existiram e outras com gente que não fez parte daquele momento — e talvez de nenhum momento. Estes personagens desconhecidos, estas situações que não estão nos livros de história não têm amarras, não têm escrúpulos, não têm notas de rodapé. Total licença poética. Para os que não se satisfazem com a ficção não há problemas: há sempre como consultar uma enciclopédia ou visitar uma biblioteca.

O esquadrão guilhotina
Guillermo Arriaga
Trad.: Carla Branco
Gryphus
158 págs.
Guillermo Arriaga
Nasceu na Cidade do México. Formado em Ciências da Comunicação e História, é romancista, produtor, diretor e roteirista de cinema. Além de O esquadrão guilhotina, escreveu outros dois romances: O búfalo da noite (2002) e Um doce aroma de morte, assim como o livro de contos Retorno 201. Guillermo é também premiado roteirista dos filmes Amores brutos, 21 gramas e Babel, pelo qual concorreu ao Oscar de melhor roteiro original em 2007.
Andrea Ribeiro

É jornalista.

Rascunho