Nem criador, nem criatura

Escritores, mesmo os de aparência mais inofensiva, são perigosos e quando estão em processo criativo não se pode contar com eles para nada
Ilustração: Carolina Vigna-Marú
01/04/2011

Começar um novo livro significa muitas vezes iniciar um processo de completo isolamento. É desaparecer da vista das pessoas, e, muitas vezes, em si mesmo. O escritor está desde a primeira frase partido. Uma parte dentro de si que, antes da palavra original, era palpável e acessível, de repente, se esconde e se camufla. Propõe um jogo de captura e fuga, se torna um espaço próprio, que o escritor necessita acessar e do qual, muitas vezes, não consegue sair. Por mais que queira estar presente, inteiro no que pensa e faz, muitas vezes é impossível conciliar mente e corpo. Escritores, mesmo os de aparência mais inofensiva, são perigosos. Quando estão em processo criativo — e há aqueles que estão eternamente — não se pode contar com eles para nada. Estão sempre ocupados, escrevendo. Ou pensando sobre o que escreveram ou vão escrever. Não lhes diga que podem parar um instantinho para isso ou aquilo. Não podem. Não repita a pergunta que eles não escutaram por estarem distraídos pensando em outra coisa. Eles nunca vão te responder. Aliás, entenda de uma vez: escritores nunca estão distraídos. Não se engane. Eles simplesmente estão em outro lugar. Não por distração, como se tivessem escorregado desse mundo para outro, mas por escolha.

Há um preço para essa escolha, pago com sacrifício e sofrimento. Não pense que muitas vezes os escritores são cruéis e egoístas por vontade própria. Estão aprisionados pelas garras da ficção, essa é a verdade. Se faltam a um compromisso importante, não é porque não querem, mas não podem. Simplesmente, estão impossibilitados. Todo artista sabe: a arte é exigente. Ela cobra a vida, não aceita pouco, quer o que há de melhor. A paixão, a beleza, o afeto, a sexualidade, a dor, tudo o que o escritor vive não tem início nem fim nele próprio, mas toma rumo desconhecido para algum texto. É usurpado vorazmente pela escrita. Mas, preste atenção, não se trata do relato de fatos reais nem de memórias pessoais, o trajeto da vivência até o papel ultrapassa nosso entendimento. O modo que isso ocorre é obscuro, não se pode prever nem desvendar. Alguns escritores, os mais sofridos, lutam para decifrar o enigma. Se esgotam no esforço de compreender o que se passa. Minam as energias na inútil tentativa de controlar o processo criativo. Outros escritores, os mais raros, aceitam a parte escura do processo como companhia inseparável. Uma sombra extra que se une à sua. Abandonam a rede de segurança sem medir a altura do precipício. Sim, muitas vezes fecham os olhos para não ver o despenhadeiro. Mas acreditam, ou querem acreditar, que a ficção é mais rica do que imaginam as suas referências pessoais, que ela não se contenta com afinidades, identificações, desejos criativos, idéias formais, racionalizadas, ou o que quer que tenha sido estipulado como seu caminho na escrita. Intuem que a ficção se alimenta do que nem se pode desconfiar. Ela arruma a sua própria forma de acontecer. É ela que penetra na sensibilidade do escritor, em sua memória, em seus afetos, e não ao contrário. Há escritores que conjecturam: é a ficção que vai buscar em suas existências o que lhe interessa. Não são eles o criador nem a criatura, mas uma espécie de espectro que ronda e assombra os dois.

Escrever um romance é construir um universo cuja única base sólida é o papel. Todo o resto se edifica no ar. O próprio chão onde se pisa é fruto da imaginação. Não há garantias de que estará ali no próximo passo. Por isso a constante sensação de corda bamba. Se escritores são invasores da vida alheia, sempre observando o outro e capturando-o para si — o seu abismo pessoal — são em proporção maior invadidos, desconstruídos e usurpados por aquilo que observam. O que é alheio também lhe pertence. Ironicamente, quando escrevem, o que é seu torna-se também do mundo. Para alcançar a ficção, trazer à tona outras existências, o esforço interno é imenso. Muitas vidas habitam um escritor. Muitos desejos se somam aos seus. Muitos pontos de vista lhe cobram atenção. Já alertaram aos escritores que misturar-se nunca é seguro. Mas, em contrapartida, eles sabem que, na criação, a segurança raramente é válida.

Apesar do isolamento, é um engano achar que o escritor se esquece da vida lá fora. Do mesmo modo em que necessita dos movimentos e espasmos da sua vida interior para escrever, precisa de tudo o que o mundo lhe oferece. Se o abandona por algum tempo, é porque tomou para si a tarefa de destruí-lo em sua imaginação e recriá-lo com a sua própria voz. Uma tarefa ambiciosa, que muitas vezes o anima e o recompensa, outras vezes o oprime e o embaraça. Entre a vida interior e a exterior, há muito que compor e recompor. Nesse sentido, escritores são corajosos. Pode ser porque, muitas vezes, não sabem dos perigos que correm. Se seguram no primeiro apoio à frente: a caneta e o papel em branco, o caderno ou o computador. E se satisfazem na crença que o maior problema que podem enfrentar é a falta de idéia, um parágrafo ruim ou o bloqueio criativo. Nesse sentido, são covardes. Ou ambos. Não se engane. Escritores podem ser ao mesmo tempo duas coisas, ou até mais. Para eles, a coragem e a covardia nunca foram incompatíveis. Na literatura, é necessário aceitar que as discordâncias se encontram e permanecem em desacordo.

Claudia Lage

Claudia Lage é escritora. Autora do romance Mundos de Eufrásia, entre outros.

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