🔓 Meninos, eu vi!

150 anos da morte do poeta: Gonçalves Dias ajudou a desenvolver a literatura no Brasil pós-Independência
29/11/2014

Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o sabiá;
As aves que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.
(…)

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Gonçalves Dias por Tiago Silva

Todos nós já lemos ou ouvimos os versos acima. Eles iniciam um famoso poema, Canção do exílio, escrito em 1843 por Antônio Gonçalves Dias. Na época, o maranhense tinha apenas 20 anos, vivia e estudava em Coimbra, Portugal. Com este poema, inaugurava-se um dos temas mais férteis da poesia brasileira, o da saudade da pátria: estar “cá”, no exílio, querendo estar “lá”.

De certa forma, há nesse poema uma ironia trágica. Responsável por inaugurar o tema da saudade da pátria, o próprio Dias não conseguiu morrer em sua terra. Em dezembro de 1862, o poeta estava bastante doente. Com 40 anos, sofria de reumatismo, dizia-se que tinha câncer na garganta. Viajou à França, em busca de outro clima, e correu no Brasil a notícia inverídica de sua morte. Houve grande tristeza e muitos discursos fúnebres, até de D. Pedro II. Dois meses depois, soube-se que estava vivo, e que mandava dizer que “nunca iria morrer”. Pouco depois, ainda doente, sem trabalho e sem dinheiro, comprou passagem no navio Ville de Boulogne, que vinha para o Brasil. O navio, porém, naufragou nas costas do Maranhão, no dia 3 de novembro de 1864, e seu corpo nunca foi encontrado. Dizem que trazia outros trechos de seu mais longo poema épico, Os timbiras.

Neste mês de novembro de 2014 comemoramos 150 anos de sua morte. E a melhor maneira de homenagear um dos maiores poetas do Brasil é lembrarmos por que foi tão grande e como suas obras ajudaram vigorosamente a construir o Brasil na literatura após nossa Independência.

Quanto à Canção do exílio, incrível que este poema ainda circule na memória de tantos brasileiros há mais de 150 anos. Por que será que a maioria de nós sabe declamá-lo se já não somos tão nacionalistas e não nos emocionamos mais com palmeiras e sabiás? Mesmo os mais jovens, cujos livros didáticos investem menos na poesia romântica, hoje chamada de “clássica”. O fato é que a simples memória desses versos em nossos ouvidos já confirma o lugar do poeta na literatura brasileira e muito revela sobre seu estilo, seus temas e seu vigor para escrever. Observe-se a grande precisão dos versos onde o tema do amor à pátria é manifestado com palavras simples e muito precisas —sem nenhum adjetivo —, em ritmo tradicional, mas a serviço da emoção que a saudade da pátria lhe inspirara. Aliás, vários estudos sobre este poema são unânimes: Canção do exílio é a perfeita criação literária de quem conhecia a língua portuguesa “clássica” muito bem, mas a serviço de nova temática, o amor à pátria, que tanto o Brasil precisava desenvolver naquele momento de orgulho nacional.

É claro que a obra reunida de Gonçalves Dias — sua poesia lírica, e principalmente a poesia indianista — criam um universo que excede muito este poema. Porém, como ótima referência, esta mesma canção revela a excepcional originalidade do poeta, que soube, como nenhum outro de sua época, unir a liberdade conquistada pelo romantismo (nacionalista e passional) sem abrir mão completamente dos modelos literários tradicionais que, dada sua formação, conhecia tão bem.

Tal intuição criadora — a de associar a liberdade à tradição — construiu uma obra tão exuberante que Gonçalves Dias é considerado, ao lado do romancista José de Alencar, o fundador da “literatura nacional”. Quer dizer, da literatura com a cara do Brasil, feita por nós brasileiros e para o mundo, poucos anos depois de 1822.

Como revelar o Brasil?
Para os escritores brasileiros (não mais os “portugueses do Brasil”) era preciso, como grande missão patriótica, que se revelasse a “cor local brasileira”, nossa verdadeira identidade para cristalizar o orgulho nacional. Qual seria a identidade brasileira? Não éramos “país do carnaval” ou o “país do futebol”, como somos vistos hoje. Éramos nação recém-nascida, que precisava de um elemento genuíno para nos distinguir das nações europeias (sobretudo de Portugal, a metrópole), e que nos desse uma feição só nossa diante de outras nações.

Assim nasceu a literatura indianista. Na poesia (e antes de José de Alencar), Gonçalves Dias logo teve consciência de seu papel no que se referia à criação de um viés literário rigorosamente patriótico. Apesar de sua sólida poesia de amor, do teatro e dos muitos estudos, o que faz de Gonçalves Dias tão fundamental leitura na escola e na vida, é, afinal, sua poesia indianista.

Muitos o seguiram, até Machado de Assis; mas a sua é a mais incisiva temática e tecnicamente. Imbuído do sentimento nacionalista romântico, o poeta fez muito empenho em ser “o primeiro poeta do Brasil”. Ao tomar como fonte de inspiração o elemento “mais” autêntico de nosso espírito, sua imaginação criadora cresceria, obra após obra, num procedimento artístico original, rico e ousado, diferente da poesia amorosa, completamente tradicional.

Não é apenas por tola tradição que a cultura escolar ainda o lê, ensina e promove. É — e isso, nós professores, temos de reconhecer e revelar aos leitores sempre que pudermos — pela alta voltagem de seus heróis indígenas, que saem de suas tribos para a luta, para a morte honrada e para a glória. Não são poucos os poemas em que se canta esse heroísmo:

Valente na guerra/ Quem há como eu sou? (Canto do guerreiro)
(…) Falam deuses nos cantos do Piaga/ Ó guerreiros meus cantos ouvi (O canto do piaga)
(…) Teus filhos valentes, temidos na guerra,/No albor da manhã quão fortes que os vi! (Deprecação)

Indiferente à dura crítica de historiadores da época, irritados com a “europeização” do indígena, Gonçalves Dias cria poemas e epopeias grandiosas: Tabira, I-Juca-Pirama, Os timbiras (incompleto). Seus heróis épicos serão postos frente a um mundo hostil, onde têm de lidar com as forças da natureza e contra muitos inimigos — os europeus, o de tribos inimigas. Sua bravura, porém, é sempre comovente — como nos conta o jovem herói tupi (o I-Juca-Pirama), que, capturado pelos inimigos timbiras, que, prestes a morrer, precisa fazer um discurso. Um discurso? Sim, o ritual exige que contem suas bravuras antes de morrer como um glorioso herói diante dos inimigos. Quem não o ouviu declamar ?

IV
Meu canto de morte,
Guerreiros, ouvi:
Sou filho das selvas,
Nas selvas cresci;
Guerreiros, descendo
Da tribo Tupi.

Da tribo pujante,
Que agora anda errante
Por fado inconstante,
Guerreiros, nasci:
Sou bravo, sou forte,
Sou filho do Norte;
Meu canto de morte,
Guerreiros, ouvi.
[…]

Para compreender a grandeza de Gonçalves Dias com seus indígenas, temos de acrescentar algo importante à originalidade de seu esforço criador: ao índio brasileiro, como elemento da construção do espírito nacional, devia caber o papel de rebelde na sofrida polarização colônia/metrópole. É disso que tratam seus poemas indianistas. Do herói que se rebela, que luta. E mais: do indianismo nada ingênuo de Gonçalves Dias emerge a consciência do destino atroz que tiveram muitas tribos nas mãos do colonizador. Ou seja, diferentemente da conciliação entre povos que se encontra em José de Alencar, no indianismo do poeta maranhense ecoa muito clara a triste visão dos povos vencidos.

Em O canto do piaga, diz o pajé:

Não sabeis o que o monstro procura?
Não sabeis a que vem, o que quer?
Vem matar vossos bravos guerreiros,
Vem roubar-vos a filha, a mulher!
(…)

Vem trazer-vos algemas pesadas,
Com que a tribo Tupi vai gemer;
Hão de os velhos servirem de escravos
Mesmo o Piaga inda escravo há de ser!
(…)

Na obra deste poeta que tanto canta o amor, a saudade e o heroísmo também está revelada a solidão dos heróis, a dúvida quanto a valores morais, e muitos rituais de violência — todos elementos essenciais para unir a imaginação romântica da época ao espírito brasileiro.

Assim, 150 anos depois de sua morte, para melhor compreender o Brasil, sua história e sua gente, precisamos vencer resistências, vencer o vocabulário e compreender seu talento. Para depois dizermos em voz alta, como o velho cacique timbira:

E à noite nas tabas, se alguém duvidava,
Do que ele contava,
Tornava prudente: “ — Meninos, eu vi!”
(I-Juca-Pirama)

NOTA
Texto publicado originalmente na revista Carta na Escola.

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