Manifestações criativas

Entrevista com Ubiratan D’Ambrosio
Ubiratan D’Ambrosio
01/10/2008

Ubiratan D’Ambrosio nasceu em São Paulo, em 1932. É bacharel e licenciado em matemática pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, doutor em matemática pela Escola de Engenharia de São Carlos e pós-doutorado pela Brown University (EUA). D’Ambrosio é professor emérito de matemática na Unicamp; professor do Programa de Estudos Pós-Graduados de História da Ciência da PUC-SP; professor credenciado no Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da USP; e professor do Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática do Instituto de Geociências e Ciências Exatas da Unesp. Foi presidente da Sociedade Brasileira de História da Matemática; presidente do International Study Group on Ethnomathematics; presidente do Instituto de Estudos do Futuro; pesquisador e membro do Conselho Diretor do Núcleo de Apoio à Cultura e Extensão — Arte, Tecnologia e Comunicação, da USP; membro do Conselho Diretor do Institute for Information Technology in Education, da UNESCO, sediado em Moscou; e membro do Conselho Científico do Museu de Astronomia e Ciências Afins, do Conselho Nacional de Pesquisas. Também é fellow da American Association for the Advancement of Science e é presidente Honorário da Sociedade Brasileira de História da Ciência. Já foi coordenador dos Institutos de Pesquisa da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo; chefe da Unidade de Melhoramento de Sistemas Educativos da Organização de Estados Americanos, em Washington; e membro do Conselho da Pugwash Conferences on Science and World Affairs (ONG vencedora do Nobel da Paz de 1995). Em 2001, D’Ambrosio ganhou a Medalha Kenneth O. May, da International Commission of History of Mathematics, e, em 2005, a Medalha Felix Klein, outorgada pela International Commission of Mathematical Instruction. Criador da etnomatemática, publicou as obras Etnomatemática: elo entre as tradições e a modernidade, A era da consciência, Educação para uma sociedade em transição e Temas transversais e educação em valores humanos, entre outras.

• Qual foi seu primeiro contato com a palavra escrita?
Não me lembro do tempo da alfabetização. Acho que aprendi a ler em casa. Bem criança, ganhei a enciclopédia Tesouro da juventude. Gostava muito de ver as bandeiras. Sempre folheava a coleção e lia coisas interessantes. Também gostava da Enciclopédia Jackson, de meu pai. Nunca houve restrição a que eu consultasse a sua biblioteca. Como toda criança, eu colecionava figurinhas de balas e preenchia álbuns. Com os amigos do bairro, trocava e negociava figurinhas. E, algo impensável hoje, colecionava carteiras de cigarro, geralmente com imagens muito bonitas. Também se negociavam trocas de marcas raras. Da minha infância, antes de entrar na escola, em meados da década de 30, lembro disso. Acho que a descoberta da escrita está inserida nisso.

• E a literatura? De que forma ela apareceu na sua vida?
Não me lembro de ler um livro inteiro no curso primário. Com certeza, li alguma coisa. Estudava no Liceu Coração de Jesus, salesiano, e a leitura do catecismo e de trechos bíblicos era importante. De algumas respostas e trechos, lembro até hoje. Os primeiros livros que lembro ter lido foram os de Monteiro Lobato e José de Alencar. Além desses, não me lembro de outros. Na adolescência, com 13 ou 14 anos, lembro-me de ler alguns livros de capa e espada de Michel Zévaco. Meu pai e um tio eram fãs dele e trocavam seus livros. Eu, curioso, comecei a ler e gostei. Fausta e Fausta vencida são dois títulos que me ocorrem. Também nessa época fui apresentado, por colegas de classe, a Pitigrilli [pseudônimo do escritor italiano Dino Segre]. Li vários livros dele, à noite, em segredo, e em seguida escondendo muito bem esses livros proibidos. Agora, lembrando-me daquele tempo, acho que meus pais sabiam, mas faziam de conta que não percebiam essa minha “transgressão dos bons costumes”. Do curso ginasial na Escola Caetano de Campos, lembro de leituras de trechos, principalmente em francês e latim. O começo do De Bello Gallico [texto de Júlio César sobre as Guerras da Gália]. Algo de Balzac. E as poesias de Castro Alves e Gonçalves Dias, que faziam parte do curso. Sem dúvida, havia livros exigidos, mas não me marcaram. De 1948 a 1950, cursei o científico no Colégio Visconde de Porto Seguro. A sensação que tenho, hoje, é de aquele ter sido um curso de introdução à literatura. Foi um curso de estudos clássicos e humanidades. Sem dúvida, foram anos decisivos na minha formação. Fiquei fascinado pela história, o que me acompanha até hoje. Em português, além de Gil Vicente, li Eça de Queiroz, Machado de Assis e vários poetas. Um dos meus professores, Fritz Ackerman, havia feito seu doutorado, na Alemanha, em 1938, sobre a obra poética de Gonçalves Dias. Imagine o quanto as análises dele me impressionaram. Fui muito marcado pela leitura detalhada, comentada e analisada de Os Lusíadas. Li também muito Jorge Amado, Graciliano Ramos e outros, mas não no curso. O curso de filosofia também foi marcante. Várias coisas de Marx e Freud, acompanhadas pelas tragédias gregas. Isso puxava outros filósofos. Nietzsche me impressionou. Em inglês, a leitura dos textos, integrais, de Five tragedies of Shakespeare, comentadas e analisadas; em francês, Balzac e Flaubert; em espanhol, Cervantes, Garcilaso e alguns latino-americanos. Embora o Colégio Visconde de Porto Seguro fosse a Deutsche Schule abrasileirada, as restrições impostas com a entrada do Brasil na guerra ainda estavam frescas. Não aprendi alemão — lamento — e não conheci Goethe, Thomas Mann e tantos outros que só iria encontrar um pouco mais tarde, em traduções. Esses autores muito me marcaram. Em outro momento da vida, aproximando-me dos 40 anos, descobri uma outra direção de leitura, uma maior intimidade com o autor e a busca de algo que ele não quis tornar explícito. Foi uma busca de uma dimensão mística, talvez psíquica, da espiritualidade intrínseca à obra. Situo como o ponto de partida para o redirecionamento de minhas leituras o meu acesso ao livro Love and will, de Rollo May. Aprendi a ler o meu íntimo. Daí foi uma “refascinação” pela história e pela releitura dos clássicos gregos, de Freud, Jung e Reich. Passei a entender Thomas Mann, Aldous Huxley, Hermann Hesse e o impressionante Robert Musil. Também fui muito influenciado pelo pensamento crítico francês do pós-guerra. Particularmente Lacan, Derrida, Sartre, Merleau-Ponty, Foucault e daí por diante. Foi uma forma de me descobrir. O cinema alemão, particularmente Fassbinder e Herzog, como já havia acontecido com Bergman, se encaixaram muito bem no meu crescente interesse pela visão transdisciplinar e transcultural do mundo simbólico. As leituras populares sobre esse mundo simbólico, então best-sellers entre os mais jovens, me atraíram muito. Li, com muito interesse, o J. D. Salinger, e o interessantíssimo Zen e a arte da manutenção de motocicletas, de Pirsig. Essa aproximação com o Oriente, característica do início da segunda metade do século 20, foi e continua sendo, para mim, muito atraente. É o mundo simbólico mostrado no dia-a-dia. O mundo simbólico e imaginário, do qual o passado-presente-futuro (a história no sentido amplo) é parte integrante e dominante no meu modo de pensar. Na verdade, eu sentia que a questão social, como presente no cinema neo-realista, devia necessariamente passar pela questão do indivíduo, na sua intimidade. Passei a ver, no equilíbrio intimidade-alteridade, o significado da felicidade na condição humana. Nesse momento, eu estava muito envolvido com questões de paz, sendo ativo no Movimento Pugwash, do qual fui membro do conselho. O movimento ter recebido o Nobel da Paz foi um grande estímulo para uma releitura mais cuidadosa dos clássicos, principalmente A arte da guerra, de Sun-Tzu, O príncipe, de Maquiavel, Da guerra, de Von Clausewitz e, naturalmente, Guerra e paz. Também Shakespeare me ajudou muito a entender o (des)equilíbrio entre emocional e poder, outra forma de intimidade versus (ou mais?) alteridade. Daí eu ver a paz como a meta maior da humanidade, a única possibilidade de um futuro para a espécie. Mas não simplesmente paz como um acordo ou um armistício entre partes em confronto. Mas paz entendida como um estado em que os conflitos, refletindo a diversidade inerente às espécies, estão conscientemente resolvidos, como conceituei no meu livro A era da consciência. Só é possível obter paz, nessa conceituação ampla, se a abordarmos em suas quatro dimensões, numa relação de dependência mútua, simbiótica: paz individual, paz social, paz ambiental e paz militar. A partir disso, foi natural que eu enveredasse pelas ciências ambientais e, principalmente, por estudos do futuro. A literatura de ficção científica, com cenários de um futuro imaginoso e fantasioso, tem me atraído e se incorporou aos meus cursos e palestras.

• Hoje, que espaço a literatura ocupa no seu dia-a-dia? Ela influencia de alguma forma o seu método de trabalho?
A literatura é parte integrante de meu dia. Mantenho um excelente diálogo com os autores e discuto muito com críticos literários. Gosto muito de crítica literária. Meu método de trabalho aponta para o encontro com o diferente. Hoje, desde já há alguns anos, minha atividade é, fundamentalmente, a história da humanidade, focalizando principalmente a história das religiões, a história da ciência e a história da matemática. Inspirado pela historiografia dos Annales, considero-me um annalense radical. Busco uma história global, tentando entender a aventura da espécie humana, desde suas origens, quando surge a vida. O que podemos saber do comportamento e do conhecimento da espécie humana desde os primeiros hominídeos? Praticamente nada. É muito significativo o pensamento do paleontólogo George Graylord Simpson, o mais respeitado conhecedor de dinossauros no mundo científico, no seu fascinante livro A descronização de Sam Magruder, uma espécie de autobiografia metafórica. Ali se entende a limitação dos historiadores e a importância da narrativa ficcional em estudos históricos. Como historiador, minha interpretação, minha análise das fontes que sustentam, academicamente, um cenário histórico é sempre acompanhada por um colóquio com os ficcionistas que abordam o mesmo cenário. Sendo a ficção uma forma essencial de literatura, esta se integra ao meu trabalho.

• Você possui uma rotina de leituras? Como escolhe os livros que lê?
Não posso falar em rotina. Minha pesquisa e minhas aulas e palestras (que estão integradas à minha pesquisa) guiam, naturalmente, uma seleção de obras de literatura, particularmente de ficção, que tem algo a ver com os temas. Como estratégia pedagógica, tem sido um sucesso. Minhas aulas são procuradas. Dou um curso de humanidades, destacando ciência e matemática como características da espécie humana e integradas na sua evolução. A história da humanidade (insisto, conceituada como o encadeamento passado-presente-futuro) é a busca permanente de sobrevivência — satisfação de necessidades materiais — e transcendência — satisfação de necessidades espirituais —, visando a explicar e entender o real e o imaginário. Em todas as espécies vivas, a sobrevivência é um pulsão de vida. Na espécie humana esse pulsão é solidariamente associado ao pulsão de transcendência. Nessa visão ampla de história, a antiguidade greco-romana é acompanhada por Homero e Virgílio. A emergência da nova matemática na Idade Média é acompanhada pela Divina comédia, e o surgimento da eletricidade, na transição do século 18 para 19, pelo Frankenstein, de Mary Shelley. O filme Robin Hood, de Kevin Costner, ilustra minhas aulas sobre o desenvolvimento da ciência européia após as Cruzadas. Assim, também, a expansão imperial dos Estados Unidos, na segunda metade do século 19, é acompanhada por uma audição da ópera Madame Butterfly, de Puccini. Ao estudar a industrialização, Júlio Verne não pode faltar. A bibliografia das minhas aulas geralmente tem inúmeras referências a obras de literatura, incluindo cinema e teatro. Mas as leituras descomprometidas com minha pesquisa também têm muita importância. Essas não são planejadas, não são “conscientes”. Aparece um livro, que por alguma razão chama a minha atenção, e me entusiasmo para lê-lo. Muitas vezes se tornam valiosos para meu trabalho de pesquisador, mas isso não é determinante na escolha desses livros “descompromissados”. Acontece. Um exemplo: por curiosidade, li Zorro, de Isabel Allende. E ele se incorporou ao meu curso de história da América.

• Você percebe na literatura uma função definida ou mesmo prática?
Claro. Ela amplia nossa experiência, aguça nossa crítica e abre espaço para fantasia.

• Matemática e música são campos habitualmente relacionados. Mas que proximidade pode haver entre matemática e literatura?
Matemática e música se relacionam como manifestações de criatividade. A literatura também é uma manifestação de criatividade. Não concordo com aqueles que relacionam matemática e música, ou matemática e poesia, pelos aspectos formais de ambos, pelas métricas. Essa é uma forma saussurreana de relacioná-las, que enfatiza a forma ou o formal. Isso ofusca o mais importante, que é a criatividade ou o ato de criar. Sou muito mais inclinado pela semântica que pela sintaxe. Igualmente, discuto o qualitativo e o quantitativo, que são a versão matemática do semântico e do sintático. Lamentavelmente, a partir do século 17, principalmente com a adoção da álgebra simbólica, nota-se um reforço do quantitativo, da forma, em detrimento do qualitativo. O século 19 marca a glória do formal. Como educador, tenho advertido para o fato de que hoje, na era das máquinas, inevitáveis e necessárias, o mundo parece ser regido por números e dados facilmente manipuláveis, mas que são aceitos como critério de “verdade”. As máquinas são necessariamente formais e quantitativas. Tenho defendido o retorno ao qualitativo, que é a principal e essencial característica da espécie humana. Conseqüentemente, isso implica em uma valorização do simbólico e do analítico, hoje praticamente desprezados na educação.

• Como formar um leitor no Brasil?
Acho que uma boa prática nas salas de aulas é comentar leituras, trocar idéias, tecer críticas (evitando a distorção de associar a palavra crítica a comentários negativos). Leituras passadas como “lição de casa” ou leituras feitas na própria aula. Minha experiência: quando comecei a dar aulas de matemática, com meus 20 anos, metade do tempo de aula era para a leitura do livro de matemática. Cada aluno (do 1.º ginasial, com 11 ou 12 anos) lia um parágrafo. Eu o comentava com a classe, ouvindo as opiniões e dúvidas deles. Aí, passava para o aluno seguinte. E assim líamos o livro didático adotado. A prática dos meus colegas era se grudar ao quadro-negro, ensinando a resolver problemas, usando o livro apenas como lista de exercícios. Isso era, e ainda é, o mais comum. Os livros são elencos de exercícios resolvidos mais uma lista de exercícios parecidíssimos. Os textos desapareceram. Isso não acontece só com a matemática. Voltando à pergunta, a formação de um leitor é resultado de ler. A escolha de livros interessantes, que podem criar cenários fantasiosos, é o que desperta o reconhecimento de que ler é gostoso e compensador.

Luís Henrique Pellanda

Nasceu em Curitiba (PR), em 1973. É escritor e jornalista, autor de diversos livros de contos e crônicas, como O macaco ornamental, Nós passaremos em branco, Asa de sereia, Detetive à deriva, A fada sem cabeça, Calma, estamos perdidos e Na barriga do lobo.

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